terça-feira, 11 de outubro de 2016

A justificação lírica


Contra a dureza da opinião desmistificadora de Alberto Gonçalves, sobre as vaidades mundanas e patrioteiras de um povo parcamente ilustrado sobre a grandeza de um ofício que o sociólogo relativiza, resta-nos debruçar-nos sobre as humildades aparentes - pois logo a seguir desfeitas - de alguns dos nossos poetas, ou outros circunstancialismos das suas exigências pessoais, que também se podem aplicar aos nossos heróis de hoje:
Álvaro de Campos “Tabacaria”
Não sou nada. 
Nunca serei nada.
 
Não posso querer ser nada.
 
À parte isso, tenho em mim
 todos os sonhos do mundo. 

Reinaldo Ferreira:
Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.

Arte pela arte, na postura de Eugénio de Castro, face à muita lida humana na busca dos seus tesoiros:
Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre…
Homem que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida
,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.

Mas há muitas espécies de amor, sem ser apenas “o gosto de um suave pensamento” daí que  possamos todos estar aptos ao entendimento dos versos de Camões, no contexto do nosso António Guterres, felicitando-o, ao invés de o diminuir:
Camões
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não dissesse
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,
Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.
Vejamos também, o grito épico de António Gedeão, justificativo de todos os empreendimentos humanos, em:
Fala do homem nascido:
Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci
Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr
Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder.
minha barca aparelhada
solta rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham
Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu
Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar

O artigo da sabedoria descrente de Alberto Gonçalves:
Os portugueses só não ganham juízo
A humanidade ganha um homem de "causas" e nós não perdemos nada
Alberto Gonçalves
DN, 9/10/16
Em 2011, a Assembleia Geral da ONU dispensou um minuto de silêncio à morte de Kim Jong-il, o divertido maluquinho que mandava na Coreia do Norte. Vaclav Havel, que morreu no dia seguinte e era dos raríssimos estadistas contemporâneos que justificavam o epíteto, não obteve igual "honra". Eis um entre incontáveis exemplos que recordam, aos muito esquecidos, a circunstância de, por definição, a ONU congregar maioritariamente ditaduras e, logo, constituir um antro evitável por qualquer pessoa decente.
É por isso que a extraordinária histeria em redor da nomeação de António Guterres para secretário-geral me soou mais a uma saraivada de insultos involuntários do que à aclamação colectiva que pretendeu ser. O homem certo no lugar certo, nas palavras do dr. Costa? Não é preciso ofender. É verdade que o eng. Guterres deixou, pelo menos aqui, um embaraçoso rasto de inépcia. Mas nem o descontrolo decisivo da despesa pública nem o poder que concedeu a um grupinho de pequenos e médios malfeitores transformam o eng. Guterres no líder ideal de uma organização habituada a relativizar a opressão e o terrorismo. Embora o eng. Guterres não merecesse grande coisa, a ONU merecia bastante pior.
Dado tratar-se de Portugal, porém, estas insignificâncias não vêm a propósito. Enquanto só faltou passear o homem por Lisboa em carro, ou autocarro, aberto, o discurso oficial e o discurso oficioso decidiram fingir - ou, em casos terminais, acreditar - que a ONU é respeitável, que o eng. Guterres recebeu uma prodigiosa distinção, que os seus compatriotas devem rebentar de orgulho e que o país alcançou a glória imortal.
Para já, o objectivo é denunciar os traidores que não desejavam ardentemente a vitória do novo herói nacional. No mínimo, denuncie-se Durão Barroso, que pelos vistos apoiou a candidata búlgara e que possui um carácter baixo a ponto de em tempos ter abandonado o nosso querido país a troco de uma carreira de "prestígio" no "estrangeiro": o eng. Guterres nunca, nunca, nunca faria semelhante. Depois, resta--nos passear a soberba patriótica, inchados por integrar o restrito Olimpo onde cabem o Gana, a Birmânia e o Peru, lugares de origem de alguns dos antecessores do eng. Guterres. O eng. Guterres partilha com cada português a proeza de subir ao "topo do mundo". Esperemos que partilhe o salário.
Tudo isto não significa que o eng. Guterres não possa desempenhar um papel relevante na ONU. O prof. Freitas do Amaral, especialista em assuntos, lembra que o secretário-geral eleito é dado ao "diálogo", capaz de dialogar permanentemente "com todos os países e organizações envolvidos em cada problema", da resolução de conflitos ao combate à pobreza e à luta contra as doenças. Não duvido. Se não mudou desde 2002, o eng. Guterres dialoga tanto que, à conta do aborrecimento, arrisca erradicar dois terços das misérias da Terra. Cansados de o ouvir, inimigos ancestrais acordarão tréguas sem termo, vírus invencíveis farão as malas a caminho de destino indeterminado, e mesmo os pobres perceberão que o seu sofrimento até aí era comparativamente tolerável.
Em suma, a humanidade ganha um homem de "causas" e nós não perdemos nada: é também por causa do eng. Guterres que estamos assim. Como dizia a manchete do Público, todos ganhamos. Excepto juízo.
Segunda-feira, 3 de Outubro
O contragolpe popular
Por falta de tempo e de interesse, não acompanho a actualidade brasileira, como não acompanho a paraguaia, a luxemburguesa e a nepalesa. Mas, deste lado do oceano, a ortodoxia vigente teimou em informar-me que, nos últimos meses, o Brasil foi vítima de um golpe perpetrado pelas elites e destinado a trocar, no poder, uma presidente eleita e um partido amigo dos pobres por um sujeito odiado pelo povo e uma data de quadrilhas ao serviço da burguesia e do imperialismo.
Sobretudo por isso, aguardei com certa expectativa e sede de justiça as eleições municipais de domingo, que inevitavelmente traduziriam a revolta do povo perante tão iníquas proezas. Resultados? O partido do novo presidente (o sujeito odiado pelo povo) ganhou a coisa, com 1027 autarcas e 1,2% de crescimento face a 2012. Diversos partidos que colaboraram no golpe (as demais quadrilhas ao serviço da burguesia e do imperialismo) cresceram abundantemente e ocuparam os lugares seguintes. O partido amigo dos pobres (e da ex-presidente eleita) caiu de terceiro para décimo lugar, encolheu 60%, conseguiu uma única capital estadual (no Acre, atenção) e, para efeitos práticos, quase desapareceu.
É possível explicar isto? Será que houve fraude? Será que as elites locais afinal integram uns 90% da população? Será que, entretanto, dizimaram as classes baixas sem ninguém dar por ela? Será que os brasileiros são estúpidos? Será que a nossa ortodoxia não sabe o que diz ou sabe que o que diz é mentira? A última pergunta é apenas retórica. As anteriores pedem respostas urgentes, sob pena de ficarmos com o mundo ao contrário. Qualquer dia, a realidade é mais credível do que a ortodoxia.


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