Também o ouvi. A comparar-se
com Hitler na questão do holocausto. Sem vergonha nem receio. Deve estar muito
apoiado pela sua máquina de guerra. Mas não acredito que, sendo um povo
religioso, o filipino, se deixe assim retalhar, como se estivéssemos no tempo
das catacumbas. Um discurso ameaçador numa figura caricata. Serena, não como a
de Hitler que exibia grande expressão gutural e facial, com uma formidável
imponência física, David inchado em Golias. Julgava que monstros assim, não
tinham mais assento num mundo chamado de «aldeia global”, com muitos satélites
por cima de todos nós a possibilitar a informação e o controle. Mas foi
ingenuidade, pois nunca como hoje a doutrina do Mal pelo Mal parece tão
difundida, o Mal atraindo o respeito e a
admiração servil dos povos alienados. Enquanto os povos da Europa se mostram
tão correctos e solidários – pelo menos os mais instruídos – o mundo da
demografia em superavit da Ásia e da África sobretudo – que parecia gente
tranquila, alguns até vivendo em condições sub-humanas, mas isso não nos dizia
respeito, de repente forjam os seus ditadores em cópia de ditadores anteriores,
como o Mao chinês, o Estaline russo, e o tão falado Hitler, por motivos
diferentes dos daqueles, é certo. Aliás, tanto Mao como Estaline eram muito apreciados
por muitos dos nossos jovens na altura – e mesmo hoje: por motivos pessoais os
de ontem, de insubordinação e autodefesa; por motivos de ligação afectiva com os povos
humilhados, os de hoje, da democracia. É por essa mesma bondade, que o
presidente das Filipinas, Duterte, promete o holocausto dos pecadores, de que
ele se exclui. É certo que há, por trás de tanta brutalidade arrogante, motivos
políticos provocatórios contra os Estados Unidos e o Ocidente, como bem explica
Jorge Almeida Fernandes. Tanta obscenidade parece de ficção mas não. Um completo
despudor de alma tranquila. Outros mais há, actualmente, e a Ásia é um perfeito repositório, não só de países - formados há muito ou mais recentemente - de gente que governa ou quer governar, e para isso revela todo um potencial destruidor, como de países que parecem tranquilos mas admitem castas, entre as quais os da completa exclusão social.
Mas o Ocidente é culpado. Pela
abertura à violência e ao sexo e tudo o mais, que começa logo na primeira
infância, com os canais televisivos repletos de histórias alienatórias de movimento e violência.
Mas leiamos a magnífica análise de Jorge
Almeida Fernandes, sobre uma história real que o não
parece:
Filipinas: “Choque e pavor”
Público, 08/10/16
Visto
do Ocidente, Rodrigo Duterte, 71 anos, Presidente das Filipinas, é uma figura
grotesca saída de um arcaico ou exótico universo e com as “mãos manchadas de
sangue”. Impõe-se a interrogação: e se, para lá do grotesco, for mais um arauto
de um inquietante mundo novo? Para os filipinos, é um líder credível. Cem dias
após a tomada de posse, está nos píncaros da popularidade. Segundo a última
sondagem, 76% dos inquiridos declaram-se “satisfeitos” com o seu desempenho.
Lembre-se que foi eleito, em Maio, com 38% dos votos. Duplicou a popularidade.
Duterte (na foto) faz
tremer Washington. Ontem, Manila suspendeu as patrulhas marítimas conjuntas com
os americanos no mar do Sul da China. Quer aproximar-se de Pequim e libertar-se
da “dependência dos Estados Unidos”. Sonha com investimentos chineses e
propõe-se comprar armas a Pequim e Moscovo. Os americanos temem um desaire
geopolítico. Os seus diplomatas e militares não se riem. “Com a Administração
Obama a reorganizar os seus interesses na Ásia para servir de contrapeso à
China, a relação com as Filipinas é mais importante do que nunca”, escreve em
editorial o Washington Post. É o “pivot to Asia” que está em causa.
Duterte assume a
responsabilidade pelos “esquadrões da morte” que assassinam e torturam
toxicodependentes e dealers. Fê-lo nos 20 anos em que governou a cidade de
Davao e fá-lo desde que é Presidente: 3300 execuções extrajudiciais, segundo a
ONU e várias ONG. Identifica-se como “ditador, mas um ditador de sucesso”.
Antes de eleito, avisou o Parlamento de que o dissolveria, se tentasse bloquear
as suas iniciativas, passando a governar com a polícia e o exército.
“Filhos
da puta”
Em resposta às críticas
americanas por violação dos direitos humanos, tratou Obama de “filho da puta”,
como antes fizera aos bispos católicos e ao Papa Francisco, em 2015, durante a
sua visita ao país, onde rezou missa em Manila perante seis ou oito milhões de
pessoas.
Há poucos dias evocou
Hitler: “Massacrou três milhões de judeus. Nós temos três milhões de drogados e
eu ficaria feliz em poder massacrá-los. Os alemães tiveram o
Hitler e as Filipinas ter-me-iam a mim.” A seguir pediu desculpa aos
judeus, dizendo não queria negar o Holocausto, mas não desmentiu a inspiração
em Hitler. Pediu desculpa ao Papa e a Obama, dizendo que não quis
ofender as suas mães, mas mantendo o insulto. Ele fala para os filipinos, não
para o exterior. Note-se que figura de Hitler foi popular entre muitos nacionalistas
asiáticos que o viam como um nacionalista antibritânico.
Duterte não deve ser
tomado como mero provocador. Dizem os analistas que está a montar as peças
de um regime autoritário, com uma estratégia nacionalista e populista. Quando insulta o Papa e
Obama, está a lançar uma mensagem subliminar: atacar a Igreja é lembrar os 350
anos da colonização espanhola. Insultar Obama é denunciar a colonização
americana (1898-1946). Por outro lado, mostra aos filipinos que têm um
presidente que não teme dizer o que pensa — a sua imagem de marca.
As Filipinas são o mais
pró-americano dos países asiáticos, com fundas ligações políticas e culturais
com os EUA, que forma as suas elites — e os seus militares. As Filipinas são o
país mais católico da Ásia: oficialmente, 90% de cristãos e 80% de católicos.
Duterte propõe-se mudar o rosto e a mente dos filipinos. Não é regresso ao
passado, ele quer desenhar o futuro: este projecto poderá ser também o seu
calcanhar de Aquiles. Não nos antecipemos.
À
conquista do poder
Duterte venceu as eleições
contra os candidatos do establishment, com muito melhores máquinas
políticas, relações familiares e dinheiro. Mobilizou aliados e designou
inimigos. Era um político conhecido pela sua brutal eficiência. Transformou
Davao de muito perigosa em muito segura. Repetiu a sua retórica contra o crime,
as drogas, as máfias, a corrupção — apelou a “uma política moral”. Denunciou os
adversários como “marionetas da oligarquia”. Venceu graças ao voto
dos jovens, “aos seus ressentimentos acumulados e a um cansaço democrático”,
resume um analista. Foram seduzidos pela sua “figura carismática”.
Defendeu temas de
esquerda, com a eterna e frustrada reforma agrária ou a luta contra a pobreza e
a desigualdade. Piscou o olho ao líder do Partido Comunista, exilado na
Holanda. Atacou frontalmente a Igreja Católica, que se opõe a um programa
maciço de contracepção. E prometeu a legalização do casamento gay.
Ao contrário do que muitos
pensarão, anota o analista Richard Javad Heydarian, as Filipinas acabam de conhecer,
sob a anterior presidência de Benigno Aquino III, um período de grande expansão
económica que fez passar o país “de homem doente da Ásia” a “tigre ascendente
da Ásia”. Mas a pobreza e a desigualdade persistiram e a frustração social
aumenta com a visibilidade do crescimento económico. Tal como a corrupção
cresceu, apesar de casos exemplares: muitos políticos e polícias foram julgados
e a antiga Presidente Gloria Macapagal Arroyo acaba de sair da cadeia.
Resistências
Na política externa,
Duterte tem um argumento forte: a China é um vizinho poderoso e em ascensão com
o qual importa ter boas relações. Isto não implica uma política antiamericana,
mas pode levar à recusa de fazer parte de um sistema de contenção da China. Ao contrário do que se
poderia supor, na reunião da ASEAN no Laos (e depois de ter insultado Obama),
Duterte foi muito saudado por alguns líderes asiáticos, a começar por Shinzo
Abe, que o convidou a visitar o Japão, onde — disse — ele é “muito admirado”.
Os americanos esperam que as posições de Duterte sejam sobretudo uma forma de
pressão sobre Washington, para equilibrar as relações entre os dois países. É
cedo para o saber.
Duterte vai encontrar
oposições muito fortes. Muito depende da frustração das expectativas que criou. Os partidos da
“elite”, de momento à defesa, têm uma grande capacidade de resistência e
mobilização. A Igreja Católica é uma fortaleza, disposta a um compromisso, se o
Presidente se moderar. Duterte está a fazer a corte aos militares. Mas os
especialistas chamam a atenção para a importância dos seus laços americanos.
Não estarão mentalizados para uma viragem de alianças. As guerrilhas islamistas
e a ameaça latente do Estado Islâmico serão motivos de justificação da presença
militar americana.
Duterte inspira-se na doutrina
militar do “choque e pavor” (Shock and awe), baseada no uso de
uma força esmagadora e espectacular para destruir no inimigo a vontade de
combater. Assim fez em Davao, assim promete fazer no país para edificar um
regime autoritário e nacionalista, armado com “esquadrões da morte”.
É mais um sinal dos
tempos.
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