“A
esquerda não se limita a criar pobres, mas alimenta-se da respectiva existência”,
eis uma frase formidável de Alberto
Gonçalves, que também há muito sinto, sem o arrojo de a exprimir, todavia,
agradecendo a Alberto Gonçalves o seu desassombro, não só de a publicar, na sua
confrontação destemida de articulista semanal com as nossas realidades
“emblemáticas”, como na escolha maliciosamente ambígua do seu título: «A
pobreza da esquerda”. Porque eu sempre ouvi dizer que a inteligência reinava na
esquerda, a direita apenas fossava “no pinhal do rei”, como dizia o nosso Zeca Afonso, que não é demais escutar, a
lembrar a antiguidade desses pareceres, muito raivosos contra uma burguesia
malandra, porque sabia o preço da miséria e conseguira sair dela, julgo que com
o seu trabalho, pois assisti à ascensão de alguns, que labutaram bem, mas foram
apunhalados pelos inteligentes que assim salvaram o mundo, mesmo só cantando,
para ficarem na história, ao menos com alguma beleza rítmica e creio que também
o seu bem-estar, que lhes adveio com a fama, provavelmente tendo mudado de
temas ao envelhecer, que já não condiziam com a sua própria ascensão. Já antes
houvera os hippies saídos do ventre burguês bem instalado, que apunhalavam a
família, enjoados do bem-estar material que lhes dera os bons carros, mas preferindo
afundar-se na rebeldia e na revolta, movidos pela insatisfação e por raivas e
carinhos adolescentes que o James Dean tão bem nos soube transmitir, e como
morreu cedo, eternizou-se na sua rebeldia e na sua beleza, não amachucada pelos
desaires do tempo. E tantos mais grupos de jovens que cantaram raivas e
inquietações e amores ardentes, em bofetadas contra a sociedade bem
estabelecida, que era a forma musical de mostrarem o velho conflito de gerações.
Nós por cá também os tivemos, muitos cantores além do Zeca Afonso. E poetas e
outros escritores em barda, que eram mais contra o regime. Mudou-se o regime, a
tal esquerda cavalgou sobre a nação, arrasando e nivelando o mais que podia,
mas as coisas voltaram a uma certa norma, pela acção de um general sensato, que
soube virar o volante a tempo de evitar o caos total. Mas os governantes que
agarraram no naco que lhes coube, atamancando aqui e além, viram-se na
contingência de pedir reforços ao estrangeiro. E agora é que foi o bonito.
Reconstruiu-se o país um pouco, sim, mas também se forjaram fortunas, no rasto
da reconstrução, cada partido fazendo e dizendo das suas, num rotativismo de
expressão antiga, os partidos da esquerda sempre raivosos e sempre de fora, a
acicatar os ódios por meio da expressão caritativa, não ao modo do S. Francisco
de Assis, il Poverello, que a todos amava, irmão de tudo o que existia no
mundo, água, terra, ar e fogo, e o irmão sol, mas ao modo dessa esquerda irada
- os pobrezinhos que fabricava para proveito própria - ou seja, os votos nas
eleições - para continuar a desestabilizar tudo e não permitir nenhumas
diferenças sociais nem o progresso do país, mais dados à esmolinha pelo amor de
Deus. A esquerda representada hoje, em pleno destaque, por um homem de
aparência bondosa e triste, no seu discurso rígido de cepa antiga; por uma
mulher exaltada que defende a natureza, por duas outras mais maneirinhas e
enternecedoras, na sua juventude atraente, mais mexidinha uma, de olhos
mortiços e voz vibrante, miss Piggy exigindo atenção e carinho do seu sapo, a
outra mais soturna, falando doutoralmente com muito saber, um crânio bem acompanhado
de longos cabelos estimulantes.
Tem razão, Alberto Gonçalves, tem sempre razão, estudioso
e directo que é, com a sua dose de humor que muito apraz. Não continuo, pois
exagerei no desvio. Mas concluirei com Zeca Afonso, para amenizar, em escuta
pela Internet:
A pobreza da esquerda
Alberto Gonçalves – Dias Contados
DN, 23/2015
É por estas e por outras que, pelo menos em Portugal, boa
parte da "direita" só merece aspas e, com frequência, uma marretada
na cabeça. Agora certa "direita" deu em criticar o governo por
prejudicar os pobres e, assim, ignorar a sua principal "causa"
(felizmente as aspas ainda não são taxadas). Segundo a tese, há uma contradição
entre a lendária preocupação da esquerda com os desgraçadinhos e as recentes
medidas que mandam os desgraçadinhos apanhar bonés, dos impostos indirectos aos
salários dos administradores da CGD, da punição das pensões mínimas às
tropelias em volta da "sobretaxa" de IRS.
Não vale a pena discutir as medidas, mistura de saque a
tudo o que se mexe e de benesse aos que se encontram em posição de reclamar.
Talvez valha a pena perguntar à "direita" em questão de onde tirou a
extraordinária ideia de que a perpetuação e o fomento da pobreza traem os
"princípios" da esquerda: nem de propósito, esses são os seus fins. E
se o país não se parecesse demasiado a um asilo de lunáticos, o país notaria
que a História está repleta de exemplos alusivos de como o
"progressismo" ideológico é especialista em fazer progredir a
miséria. Não há um único exemplo inverso. E não podia haver, sobretudo quando,
grosso modo, um programa político se fundamenta no ressentimento e no
parasitismo, e o roubo organizado é "justificado" pela crença de que
umas dúzias de fanáticos e oportunistas utilizam melhor o dinheiro do que as
pessoas que o ganharam.
A lamentável ironia disto é que a
esquerda não se limita a criar pobres, mas alimenta-se da respectiva existência. Na oposição, os pobres, reais e imaginários, servem de
argumento eleitoral. No poder, servem de criminosa compensação
"moral": ainda que a esquerda espatife uma economia, espalhe a
desgraça e, nos regimes que consagram os verdadeiros apetites do BE e do PCP,
vulgarize a fome, o "facto" é que agiu com as melhores intenções, invariavelmente
sabotadas por "interferências" internas e externas. É difícil
imaginar patranha tão infantil. Porém, em pleno século XXI (para recorrer a um
desagradável cliché), é espantosa a quantidade de gente que a reproduz e, em
situações de idiotia terminal, a engole.
Lembram-se da "austeridade" de 2011-2015, a
qual, receosa ou injusta consoante os dias, respondeu aos delírios do eng.
Sócrates e, mal ou bem, esforçou-se por devolver a nação a trilhos civilizados?
É impossível esquecer, visto que os "telejornais" andaram quatro anos
a oferecer-nos o rol das vítimas do dr. Passos Coelho, da troika e do
"neoliberalismo" (?): a "austeridade" forçava as crianças a
chegarem subnutridas à escola; a "austeridade" aumentava o número de
suicídios; a "austeridade" desmantelava o sistema público de saúde; a
"austeridade" propagava os divórcios; a "austeridade"
empurrava os jovens para a emigração; a "austeridade" despenteava os
pêssegos carecas; etc.
Quanto ao assalto em curso, que se esgota em si próprio,
que nos aproxima do Terceiro Mundo e que deixará imensas saudades da
"austeridade" (e, aposto, dos delírios do eng. Sócrates), passa na
"informação" televisiva a título de "crescimento",
"redução do défice", "virar de página", o tal "tempo
novo". Até um rating sofrível, antes motivo de galhofa, é hoje uma
celebrada proeza. Porquê? Porque o assalto em curso é de esquerda,
salvo-conduto para que coisas abomináveis sejam encaradas com a devida ternura.
Onde havia maldade gratuita, reina uma caríssima bondade.
A esquerda, cujo admirável combate à desigualdade apenas
se traduz no rendimento (dado que em breve não sobrará nenhum), gosta tanto de
pobres que não se satisfaz com os que há. A esquerda precisa de mais pobres. Os
pobres de espírito precisam da esquerda. E certa "direita" precisa de
juízo.
Sexta-feira, 21 de Outubro
Caça-fantasmas
Ouço na televisão que o objectivo das polícias é vencer o
fugitivo de Arouca (ou de Aguiar da Beira? Como veremos, a incerteza é
omnipresente nesta história) pelo cansaço. Através da mesma estratégia, as
televisões já conseguiram vencer pelo menos um espectador. A esta hora, não sei
quantos especialistas em criminologia emprestaram a sapiência a programas de
carácter diverso. Sei que nem assim o sr. Pedro Dias foi apanhado,
circunstância natural se tivermos em conta que os próprios especialistas não
conseguem chegar a acordo sobre coisa nenhuma. Ora o sujeito beneficia de auxílio,
ora o sujeito anda desamparado. Ora o sujeito está em perpétuo movimento, ora o
sujeito não se mexe. Ora o sujeito passa fome, ora o sujeito come bem. Ora o
sujeito não resiste à intempérie, ora a intempérie são temperaturas primaveris.
Ora o sujeito negoceia cavalos, ora rouba vacas. Ora rouba peúgas, ora
desloca-se em pelota. Ora o cidadão comum fica a contemplar a enxurrada de
fezadas, ora a paciência tem limites.
Entretanto, notícias recentes sugerem que a Judiciária, a
GNR e a PSP no "terreno" também não se entendem. Se calhar, nós é que
estamos por fora dos modernos métodos de investigação. Vão ver que, não tarda,
o sr. Pedro Dias está dentro.
Os Vampiros
José Afonso
No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas Pela noite calada
Vêm em bandos Com pés veludo
Chupar o sangue Fresco da manada
Batendo as asas Pela noite calada
Vêm em bandos Com pés veludo
Chupar o sangue Fresco da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia As portas à chegada
E lhes franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada [Bis]
A toda a parte Chegam os vampiros
Poisam nos prédios Poisam nas calçadas
Trazem no ventre Despojos antigos
Mas nada os prende Às vidas acabadas
Poisam nos prédios Poisam nas calçadas
Trazem no ventre Despojos antigos
Mas nada os prende Às vidas acabadas
São
os mordomos Do universo todo
Senhores à força Mandadores sem lei
Enchem as tulhas Bebem vinho novo
Dançam a ronda No pinhal do rei
Senhores à força Mandadores sem lei
Enchem as tulhas Bebem vinho novo
Dançam a ronda No pinhal do rei
Eles
comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada
Eles comem tudo E não deixam nada
No
chão do medo Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos Na noite abafada
Jazem nos fossos Vítimas dum credo
E não se esgota O sangue da manada
Ouvem-se os gritos Na noite abafada
Jazem nos fossos Vítimas dum credo
E não se esgota O sangue da manada
Se
alguém se engana Com seu ar sisudo
E lhe franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada
E lhe franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada
Eles
comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada
Eles comem tudo E não deixam nada
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