terça-feira, 25 de outubro de 2016

Filosofias de vidas


A esquerda não se limita a criar pobres, mas alimenta-se da respectiva existência”, eis uma frase formidável de Alberto Gonçalves, que também há muito sinto, sem o arrojo de a exprimir, todavia, agradecendo a Alberto Gonçalves o seu desassombro, não só de a publicar, na sua confrontação destemida de articulista semanal com as nossas realidades “emblemáticas”, como na escolha maliciosamente ambígua do seu título: «A pobreza da esquerda”. Porque eu sempre ouvi dizer que a inteligência reinava na esquerda, a direita apenas fossava “no pinhal do rei”, como dizia o nosso  Zeca Afonso, que não é demais escutar, a lembrar a antiguidade desses pareceres, muito raivosos contra uma burguesia malandra, porque sabia o preço da miséria e conseguira sair dela, julgo que com o seu trabalho, pois assisti à ascensão de alguns, que labutaram bem, mas foram apunhalados pelos inteligentes que assim salvaram o mundo, mesmo só cantando, para ficarem na história, ao menos com alguma beleza rítmica e creio que também o seu bem-estar, que lhes adveio com a fama, provavelmente tendo mudado de temas ao envelhecer, que já não condiziam com a sua própria ascensão. Já antes houvera os hippies saídos do ventre burguês bem instalado, que apunhalavam a família, enjoados do bem-estar material que lhes dera os bons carros, mas preferindo afundar-se na rebeldia e na revolta, movidos pela insatisfação e por raivas e carinhos adolescentes que o James Dean tão bem nos soube transmitir, e como morreu cedo, eternizou-se na sua rebeldia e na sua beleza, não amachucada pelos desaires do tempo. E tantos mais grupos de jovens que cantaram raivas e inquietações e amores ardentes, em bofetadas contra a sociedade bem estabelecida, que era a forma musical de mostrarem o velho conflito de gerações. Nós por cá também os tivemos, muitos cantores além do Zeca Afonso. E poetas e outros escritores em barda, que eram mais contra o regime. Mudou-se o regime, a tal esquerda cavalgou sobre a nação, arrasando e nivelando o mais que podia, mas as coisas voltaram a uma certa norma, pela acção de um general sensato, que soube virar o volante a tempo de evitar o caos total. Mas os governantes que agarraram no naco que lhes coube, atamancando aqui e além, viram-se na contingência de pedir reforços ao estrangeiro. E agora é que foi o bonito. Reconstruiu-se o país um pouco, sim, mas também se forjaram fortunas, no rasto da reconstrução, cada partido fazendo e dizendo das suas, num rotativismo de expressão antiga, os partidos da esquerda sempre raivosos e sempre de fora, a acicatar os ódios por meio da expressão caritativa, não ao modo do S. Francisco de Assis, il Poverello, que a todos amava, irmão de tudo o que existia no mundo, água, terra, ar e fogo, e o irmão sol, mas ao modo dessa esquerda irada - os pobrezinhos que fabricava para proveito própria - ou seja, os votos nas eleições - para continuar a desestabilizar tudo e não permitir nenhumas diferenças sociais nem o progresso do país, mais dados à esmolinha pelo amor de Deus. A esquerda representada hoje, em pleno destaque, por um homem de aparência bondosa e triste, no seu discurso rígido de cepa antiga; por uma mulher exaltada que defende a natureza, por duas outras mais maneirinhas e enternecedoras, na sua juventude atraente, mais mexidinha uma, de olhos mortiços e voz vibrante, miss Piggy exigindo atenção e carinho do seu sapo, a outra mais soturna, falando doutoralmente com muito saber, um crânio bem acompanhado de longos cabelos estimulantes.
Tem razão, Alberto Gonçalves, tem sempre razão, estudioso e directo que é, com a sua dose de humor que muito apraz. Não continuo, pois exagerei no desvio. Mas concluirei com Zeca Afonso, para amenizar, em escuta pela Internet:Parte superior do formulárioParte inferior do formulário
A pobreza da esquerda
Alberto Gonçalves – Dias Contados
DN, 23/2015
É por estas e por outras que, pelo menos em Portugal, boa parte da "direita" só merece aspas e, com frequência, uma marretada na cabeça. Agora certa "direita" deu em criticar o governo por prejudicar os pobres e, assim, ignorar a sua principal "causa" (felizmente as aspas ainda não são taxadas). Segundo a tese, há uma contradição entre a lendária preocupação da esquerda com os desgraçadinhos e as recentes medidas que mandam os desgraçadinhos apanhar bonés, dos impostos indirectos aos salários dos administradores da CGD, da punição das pensões mínimas às tropelias em volta da "sobretaxa" de IRS.
Não vale a pena discutir as medidas, mistura de saque a tudo o que se mexe e de benesse aos que se encontram em posição de reclamar. Talvez valha a pena perguntar à "direita" em questão de onde tirou a extraordinária ideia de que a perpetuação e o fomento da pobreza traem os "princípios" da esquerda: nem de propósito, esses são os seus fins. E se o país não se parecesse demasiado a um asilo de lunáticos, o país notaria que a História está repleta de exemplos alusivos de como o "progressismo" ideológico é especialista em fazer progredir a miséria. Não há um único exemplo inverso. E não podia haver, sobretudo quando, grosso modo, um programa político se fundamenta no ressentimento e no parasitismo, e o roubo organizado é "justificado" pela crença de que umas dúzias de fanáticos e oportunistas utilizam melhor o dinheiro do que as pessoas que o ganharam.
A lamentável ironia disto é que a esquerda não se limita a criar pobres, mas alimenta-se da respectiva existência. Na oposição, os pobres, reais e imaginários, servem de argumento eleitoral. No poder, servem de criminosa compensação "moral": ainda que a esquerda espatife uma economia, espalhe a desgraça e, nos regimes que consagram os verdadeiros apetites do BE e do PCP, vulgarize a fome, o "facto" é que agiu com as melhores intenções, invariavelmente sabotadas por "interferências" internas e externas. É difícil imaginar patranha tão infantil. Porém, em pleno século XXI (para recorrer a um desagradável cliché), é espantosa a quantidade de gente que a reproduz e, em situações de idiotia terminal, a engole.
Lembram-se da "austeridade" de 2011-2015, a qual, receosa ou injusta consoante os dias, respondeu aos delírios do eng. Sócrates e, mal ou bem, esforçou-se por devolver a nação a trilhos civilizados? É impossível esquecer, visto que os "telejornais" andaram quatro anos a oferecer-nos o rol das vítimas do dr. Passos Coelho, da troika e do "neoliberalismo" (?): a "austeridade" forçava as crianças a chegarem subnutridas à escola; a "austeridade" aumentava o número de suicídios; a "austeridade" desmantelava o sistema público de saúde; a "austeridade" propagava os divórcios; a "austeridade" empurrava os jovens para a emigração; a "austeridade" despenteava os pêssegos carecas; etc.
Quanto ao assalto em curso, que se esgota em si próprio, que nos aproxima do Terceiro Mundo e que deixará imensas saudades da "austeridade" (e, aposto, dos delírios do eng. Sócrates), passa na "informação" televisiva a título de "crescimento", "redução do défice", "virar de página", o tal "tempo novo". Até um rating sofrível, antes motivo de galhofa, é hoje uma celebrada proeza. Porquê? Porque o assalto em curso é de esquerda, salvo-conduto para que coisas abomináveis sejam encaradas com a devida ternura. Onde havia maldade gratuita, reina uma caríssima bondade.
A esquerda, cujo admirável combate à desigualdade apenas se traduz no rendimento (dado que em breve não sobrará nenhum), gosta tanto de pobres que não se satisfaz com os que há. A esquerda precisa de mais pobres. Os pobres de espírito precisam da esquerda. E certa "direita" precisa de juízo.
Sexta-feira, 21 de Outubro
Caça-fantasmas
Ouço na televisão que o objectivo das polícias é vencer o fugitivo de Arouca (ou de Aguiar da Beira? Como veremos, a incerteza é omnipresente nesta história) pelo cansaço. Através da mesma estratégia, as televisões já conseguiram vencer pelo menos um espectador. A esta hora, não sei quantos especialistas em criminologia emprestaram a sapiência a programas de carácter diverso. Sei que nem assim o sr. Pedro Dias foi apanhado, circunstância natural se tivermos em conta que os próprios especialistas não conseguem chegar a acordo sobre coisa nenhuma. Ora o sujeito beneficia de auxílio, ora o sujeito anda desamparado. Ora o sujeito está em perpétuo movimento, ora o sujeito não se mexe. Ora o sujeito passa fome, ora o sujeito come bem. Ora o sujeito não resiste à intempérie, ora a intempérie são temperaturas primaveris. Ora o sujeito negoceia cavalos, ora rouba vacas. Ora rouba peúgas, ora desloca-se em pelota. Ora o cidadão comum fica a contemplar a enxurrada de fezadas, ora a paciência tem limites.
Entretanto, notícias recentes sugerem que a Judiciária, a GNR e a PSP no "terreno" também não se entendem. Se calhar, nós é que estamos por fora dos modernos métodos de investigação. Vão ver que, não tarda, o sr. Pedro Dias está dentro.

Os Vampiros
José Afonso

No céu cinzento sob o astro mudo 
Batendo as asas Pela noite calada
 
Vêm em bandos Com pés veludo
 
Chupar o sangue Fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo 
E lhes franqueia As portas à chegada
 

Eles comem tudo Eles comem tudo
 
Eles comem tudo E não deixam nada [Bis]

A toda a parte Chegam os vampiros
Poisam nos prédios Poisam nas calçadas
Trazem no ventre Despojos antigos
Mas nada os prende Às vidas acabadas

São os mordomos Do universo todo
Senhores à força Mandadores sem lei
Enchem as tulhas Bebem vinho novo
Dançam a ronda No pinhal do rei

Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada

No chão do medo Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos Na noite abafada
Jazem nos fossos Vítimas dum credo
E não se esgota O sangue da manada

Se alguém se engana Com seu ar sisudo
E lhe franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada

Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada


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