Chegou-me
por email o texto que segue, por supuesto com intenção de júbilo por “sermos
reconhecidos lá fora” – neste caso em Espanha, pois que vem num jornal
espanhol - o elogio aos portugueses e aos eleitos Guterres e Durão, respectivamente
para a direcção das Nações Unidas e a da União Europeia.
Não sei bem se o retrato não terá antes uma conotação
sardónica, no confronto entre um povo mais aguerrido, orgulhoso e inconformista – o povo espanhol – e
o povo da simpatia subserviente, que sabe línguas (para melhor se desenrascar
lá fora, pois que os ingleses nem os franceses nem os espanhóis abdicam da sua,
mais conhecida universalmente).
Não,
não fiquei orgulhosa com o retrato – deles, os eleitos, e nosso, os lusos
esforçados, da simpatia entorpecedora.
Também
me incomodou o texto glorificante do historiador Rui Tavares, que
transponho, por me interessarem os dados históricos, mas de que discordo no tom
glorificador do tal “rapaz do mundo” o mundo do “deixai vir a mim as
criancinhas”, que não sei se terá consequências funestas na Europa e no Mundo, provocadoras
de convulsões como, de resto, já se está a ver. Afinal, Guterres nada perde com
essa política de abertura, não é ele o prejudicado financeiramente, só tem que
apelar para os bons sentimentos democráticos e de humanidade para com os povos
aflitos – ou interesseiros – que se esgueiram dos seus países, esquecido Rui
Tavares das normas anteriores das descolonizações, sobre os povos com a
doutrina do direito aos seus países de origem. Afinal, os tais povos agora fogem
deles, dos seus países, porque viram que os aborígenes que os governam são bem mais
malandros que os que os tinham ocupado muitos séculos antes, com direitos
próprios que lhes foram amputados grosseiramente. Fora Guterres de outro
partido mais à direita que não colheria as loas entusiásticas de Rui Tavares.
Outro
jovem, João Miguel Tavares, repõe os argumentos, retrata com ironia o
mesmo caso Guterres, lembra o Primeiro Ministro que foi, «padrinho de
gente pouco recomendável» de uma governação anterior do seu país, que foi
deslizando para o poço, segundo me lembro, numa subjectividade de antipatia, reconheço,
talvez simplesmente por ser socialista emplumado e balofo de falsa – ou interesseira
- cordialidade. Agora, sem ruído, foi
deslizando no palco de uma eleição com muito apoio dos seus congéneres
lusitanos, sorrindo apenas, numa decência de comportamento aparentando humildade
concordante, mas atenta, santo padre reverenciado e abençoando, numa expectativa desgastante que terminou no “habemus papam”. Um artigo com a graça preocupada do jovem e
sensato articulista, João Miguel Tavares.
1º Texto de email:
«Vede com que reverência o credibilíssimo Jornal El
País, da Espanha, olha actualmente para os Portugueses :
El Pais
El Pais
Otro triunfo de la
diplomacia portuguesa
Lisboa 6 OCT 2016
(El saliente secretario general de la ONU,
Ban Kin-moon, conversando con Antonio Guterres durante una cumbre de la ONU en
Ginebra, Suiza, en 2014. MARTIAL TREZZINI EFE)
La elección de António Guterres es un triunfo de su empeño personal, pero también es un triunfo de la diplomacia portuguesa, incluso un triunfo de la carrera diplomática en general, como actividad profesional.
En un intervalo de dos años, dos
portugueses se han situado en la dirección de la Unión Europea (José Durão
Barroso, 2004-14) y en la dirección de las Naciones Unidas (António
Guterres, 2016), incomprensible si se mide por el tamaño del país, de
apenas 10 millones de habitantes. Pero el tamaño no importa.
Mirando un poco más hacia atrás habría que
recordar que el dictador Salazar maniobró hasta convencer a Franco para no
aliarse con Alemania en la Segunda Guerra Mundial o que Portugal es miembro
fundador de la OTAN, señales ambas de que el país tiene ojos para mirar más allá de sus
fronteras. En la ONU fue miembro bianual del Consejo de Seguridad
derrotando a las candidaturas de Alemania y Canadá.
En Portugal no cambian los embajadores en
función del color del Gobierno, y todos son de carrera.
Tanto en el caso de Durão Barroso como en el de Guterres coinciden unas características comunes de aversión a la confrontación, frente al tan hispano “de entrada no”, el “de entrada sí”, del diálogo constante y alargado, haya o no haya decisiones (la mayoría de las veces no las hay). Ambos responden a virtudes congénitas del portugués como son la paciencia y el respeto. Bajo ninguna circunstancia, por extrema que sea, se llega al desaire o al insulto. El portugués ni toca la bocina ni dice palabrotas (“mierda”, por ejemplo).
Tanto en el caso de Durão Barroso como en el de Guterres coinciden unas características comunes de aversión a la confrontación, frente al tan hispano “de entrada no”, el “de entrada sí”, del diálogo constante y alargado, haya o no haya decisiones (la mayoría de las veces no las hay). Ambos responden a virtudes congénitas del portugués como son la paciencia y el respeto. Bajo ninguna circunstancia, por extrema que sea, se llega al desaire o al insulto. El portugués ni toca la bocina ni dice palabrotas (“mierda”, por ejemplo).
Pero a esa personalidad individual y
colectiva del alma portuguesa, de un país que no irrita a nadie -como otros
muchos - se le añade la preparación profesional. Hace diez meses,
Portugal cambió de un Gobierno conservador a uno socialista. El vuelco
ejecutivo no significó ningún baile en sus embajadas. Las embajadas portuguesas
son dirigidas - sin excepción - por profesionales de la carrera, y estos no
cambian en función del color del Gobierno. El nuevo ejecutivo solo ha nombrado
a dos embajadores y por su jubilación.
La discreción diplomática fue el arma
secreta con la que se tumbó la zafiedad política de Junckers y Merkel.
Desde que en diciembre Guterres anunció su
candidatura a la ONU, todo el cuerpo diplomático portugués, sin fisuras,
comenzó a trabajar por él y en el más absoluto de los sigilos. Nadie
salió, por su puesto, a hablar mal de Guterres, pero tampoco nadie salió a
hablar bien. Los elogios sobre su candidato se decían en privado,
metódica y pacientemente, a cada uno de los 193 embajadores de la ONU. La discreción
diplomática fue el arma secreta con la que se tumbó la zafiedad política de
Junckers y Merkel.
Pero hay otra cualidad, no menor, que
permite a este pequeño país distinguirse en el mundo: su educación
lingüística. No hay dirigente portugués que no hable inglés y español,
por lo menos. El citado Barroso, como Guterres o como los actuales
dirigente del país, el presidente Rebelo de Sousa y el primer ministro Costa,
se mueven con total comodidad en los escenarios internacionales gracias a su
don de lenguas. No necesitan intérpretes para hablar con Merkel, Hollande o
Teresa May. En seis meses, Rebelo de Sousa ha departido cara a cara con más
dirigentes internacionales que Rajoy y Zapatero juntos en sus años de Gobierno.
Esa cercanía, esa afabilidad con todos, sin prepotencias y sin menosprecios,
al final acaba dando sus frutos.
2º e 3º textos: do Público,
respectivamente de 7 e 8 de Outubro:
De Rui Tavares:
António, um
rapaz do mundo
O nosso primeiro presidente da república eleito, Manuel
d’Arriaga, era um advogado entusiasta do direito internacional e autor de
panfletos pacifistas. Dei por mim a perguntar-me, ao notar ontem que um
português fora escolhido secretário-geral da Organização das Nações Unidas no
dia do 106º aniversário da República Portuguesa: que diria ele ao imaginar tal
coisa?
A
pergunta é ociosa, a resposta bastante menos. Para imaginar tal coisa seria
primeiro conseguir imaginar a existência de algo como a ONU. O sonho de uma
organização internacional para todas as nações do mundo existia pelo menos
desde o panfleto de Immanuel Kant sobre A Paz Perpétua. Mas não passava disso
mesmo, um sonho. No tempo de Manuel de Arriaga, os conflitos resolviam-se
através do sistema que após o Congresso de Viena ficara conhecido como “o
concerto das nações”: os impérios decidiam as coisas entre ele. Até deixar de
funcionar. Com uma guerra na Crimeia primeiro, outra entre a França e a Prússia
depois, e outra entre a Rússia e o Japão mais à frente, o sistema do foi
demonstrando as suas fraquezas até ao seu colapso completo, na Iª Guerra Mundial.
Manuel
d’Arriaga morreu em 1917, durante a Grande Guerra, e não chegou a ver nascer a
Sociedade das Nações (SdN) que no seu início em 1920 pareceu ser o sonho
concretizado de pacifistas como ele. Foi o seu rival republicano Afonso Costa
quem de Portugal se empenhou mais no passo seguinte do sistema internacional
(chegou a presidente de uma sessão extraordinária da SdN em 1926, pouco antes
de a ditadura o demitir do seu cargo na delegação portuguesa em Genebra). A SdN
falhou e com ela veio a ainda mais terrível IIª Guerra Mundial.
Este
esboço chega para entender a responsabilidade do cargo de António Guterres e o
preço que todos pagamos por cada falhanço do sistema internacional. A eleição
de Guterres é, claro, um sucesso tremendo da diplomacia portuguesa, inimaginável
para qualquer Ministro dos Negócios Estrangeiros desde Almeida Garrett. O que a
torna tão especial, porém, é o mérito do candidato. António Guterres foi bem
apoiado pelo governo português e revelou desde o início estar muitíssimo bem
preparado para o cargo, mas o mais importante é ter sido eleito mantendo a sua
independência em relação aos grandes poderes mundiais. António Guterres foi
aceite por americanos e russos, mas não é o homem de uns nem de outros. Sendo
europeu, não é certamente o homem da UE, mesmo passando hoje em claro a triste
figura que a Comissão Europeia e alguns governos no Conselho fizeram neste
processo. E sendo português e ocidental, disse na sua candidatura muitas coisas
— sobretudo a favor da imigração — que muitos políticos portugueses e
ocidentais não têm coragem de dizer por acharem que lhes destrói a carreira.
A
independência será então o principal ativo de Guterres nos próximos anos. Bem
precisamos dela, numa altura em que predomina o novo nacionalismo e até a
primeira-ministra britânica afirma que “quem é cidadão do mundo não é cidadão
de nenhum lado”. Pelo contrário, um cidadão do mundo é alguém que sente mais
ainda a sua responsabilidade cívica perante os humanos e o planeta.
Podemos
orgulhar-nos por Guterres ser um rapaz de Lisboa. Mas o orgulho maior será se
ele conseguir preservar as Nações Unidas neste momento de crise internacional e
feio sentimento anti-cosmopolita.
De João Miguel Tavares:
Santo
António de Nova Iorque
Nós
não temos meio termo, pois não? Uma pessoa põe-se a ler as notícias, as
reportagens, os perfis e os artigos que foram escritos a propósito da vitória
de António Guterres e fica um bocadinho confusa. Isto foi uma eleição ou uma
canonização? Guterres é o sucessor de Ban Ki-moon, Kofi Annan e Boutros-Ghali
ou é o quarto pastorinho de Fátima? Eu já estava habituado a este género de
unanimidade delirante nos jogos da selecção nacional e nas aparições de
Cristiano Ronaldo. Mas com um político vivo – alguns mortos, é certo, também
ganham súbitas qualidades celestiais – acho que é a primeira vez. Meus senhores
e minhas senhoras, que xaropada.
Não
comecem já a bater, ok? Ainda há dois dias escrevi um texto, nesta mesma
página, onde declarava a minha felicidade patriótica pela vitória de Guterres.
Não estava a mentir. Não estava a fingir. Sim, fiquei contente por ele vir a
ser o próximo secretário-geral das Nações Unidas, como qualquer português, com
excepção de Mário David, o Miguel de Vasconcelos que se vendeu a Kristalina
Georgieva. É verdade que o discurso de Guterres foi tão aborrecido em português
como em inglês e em espanhol, mas até nisso senti algum conforto – eis que
regressa a boa e velha picareta falante.Inteligente, fluente, certinho e chato,
numa fusão cada vez mais perfeita entre a carreira política e a missão
sacerdotal.
Como
pai, tenho orgulho de poder apontar para a televisão e dizer aos meus filhos:
“Vejam, meninos, este senhor nasceu em Lisboa, como vocês; estudou em Lisboa,
como vocês; parte da sua família é da Beira Baixa, como a vossa; e agora ele é
chefe das Nações Unidas, como um dia vocês também poderão ser, se saírem mais à
vossa mãe do que ao vosso pai.” Percebo perfeitamente este tipo de sentimento e
acreditem que o partilho, sem ironias. O que já não consigo perceber, por mais
voltas que dê à moleirinha, é que as páginas dos jornais e as notícias da
televisão se transformem num relambório onde toda a complexidade de uma
personalidade como a de António Guterres seja terraplanada e silenciada, porque
não vamos ser desagradáveis e interromper com uma pedrinha cinzenta a
engrenagem da sua ascensão aos céus.
António
Guterres foi primeiro-ministro durante sete anos e esteve durante quase duas
décadas na primeira linha da vida pública portuguesa. Conhecemos as suas
qualidades, que têm sido devidamente realçadas, mas também conhecemos os seus
defeitos, que é como se se tivessem eclipsado. Parece que ao longo da vida a
única pessoa que Guterres chamou para trabalhar ao seu lado foi Angelina Jolie.
Não foi. Também chamou Armando Vara e José Sócrates. Tal como Cavaco chamou
Duarte Lima ou Dias Loureiro. Foi padrinho de gente pouco recomendável, com
quem conspirou, que usou e protegeu durante muito tempo. Isto não tem de ser
sublinhado a caneta fluorescente, mas também não pode ser eliminado do seu
percurso. Pelo contrário. O que eu quero é saber se o Guterres de 2016 é o
mesmo de 1996. Saber de que forma dez anos na ACNUR mudaram a sua vida e a sua
personalidade. Se continua indeciso e conciliador ou ficou mais decidido e
interveniente após tudo aquilo que viu e ouviu nos lugares mais desolados do
mundo. São estas questões que merecem ser respondidas, e isso pressupõe a
espessura de um homem e não a estreiteza de um anjo. É sobre isto que um
jornalismo que se quer adulto, e não provinciano, deve reflectir. Parem com as
hagiografias. Portugal já tem um Santo António. Não precisa de outro.
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