sábado, 22 de outubro de 2016

«Menino do Bairro Negro»


Um artigo violento este de Alberto Gonçalves, que a maioria de nós talvez reprove, no ataque sem tréguas a um compatriota, cidadão do mundo como outro qualquer que se propusesse a tão espinhoso cargo, talvez movido por nobres ideais, neste caso de ajuda humanitária, que me parece de difícil solução, num mundo envolvido nas lutas sem tréguas dos seus fanatismos primários ou outros motivos que a avidez e a maldade acompanham. É bem feroz o artigo de Alberto Gonçalves, no desprezo irónico pelos anteriores ocupantes do cargo que António Guterres vai ocupar, transformado «no líder ideal de uma organização habituada a relativizar a opressão e o terrorismo», organização essa que considera  um “antro evitável por qualquer pessoa decente”.
A verdade é que nunca a ONU, parece ter evitado quaisquer focos de guerra e destruição que se deram e dão no mundo, movida sempre pelas causas que uma doutrinação política de esquerda faz crer que é a mais nobre, pretendendo trazer para a ribalta os eternos condenados aos bastidores. Já Zeca Afonso o entoava, no tempo em que vivíamos na morosidade inconsciente dos nossos trabalhos, confiantes numa estabilidade que de repente se revelou irrisoriamente falsa: «Menino sem condição, irmão de todos os nus, tira os olhos do chão, vem ver a luz”. Ele, sim, o Zeca, tinha esperança: “Menino do mal trajar, um novo dia lá vem, só quem souber cantar virá também”.  E nós comovíamo-nos com o seu canto, sem saber o que se preparava na sombra: «Negro, bairro negro, bairro negro, onde não há pão, não há sossego…”  E repetíamos, seduzidas com a voz e a previsão, cantando com ele o seu refrão: “ Olha o sol que vai nascendo, anda ver o mar, os meninos vão correndo, ver o sol chegar”…
Provavelmente Guterres ainda canta a canção, é do seu tempo, mas não me parece que com grande efeito, não mais do que os que o antecederam, em todo o caso, na ONU, e cujos locais de nascimento Alberto Gonçalves cita - «o Gana, a Birmânia e o Peru» - na intenção maliciosa de minimizar o posto a que Guterres ascende. De facto, não mais se viram gentes da Europa ou dos Estados Unidos a ocupar esse cargo de Secretário Geral da ONU, ocupadas que estavam essas gentes, provavelmente, a “forrar” os patacos do seu saber prevenido. E por isso se diz que os ricos de hoje são em maior quantidade e qualidade e os pobres também, os pobres  anteriores acrescentados de muitos dos que iam trabalhando e forrando o que podiam, sem grandes ambições, classe média que se afundou com a massificação trazida pelos agentes  do “sol nascendo”.
Ao menos, que António Guterres tenha um bom vencimento que não repelirá, evidentemente, em favor dos “meninos” “do bairro negro”. Cuja segunda estrofe acrescento, ainda embalada pelo canto triste do nosso Zeca Afonso, que a Internet me faz escutar novamente: “Se até dá gosto cantar, se toda a Terra sorri,  Quem te não há-de amar, menino, a ti? Se não é fúria a razão, se toda a gente quiser, um dia hás-de aprender, haja o que houver.” E o refrão, não esqueçamos o refrão, tão apelativo para todos nós, até mesmo para António Guterres: «Olha o sol que vai nascendo…»
Voltemos a página sobre o “canto” satírico de Alberto Gonçalves:
Os portugueses só não ganham juízo
DN, 9/10/16
Em 2011, a Assembleia Geral da ONU dispensou um minuto de silêncio à morte de Kim Jong-il, o divertido maluquinho que mandava na Coreia do Norte. Vaclav Havel, que morreu no dia seguinte e era dos raríssimos estadistas contemporâneos que justificavam o epíteto, não obteve igual "honra". Eis um entre incontáveis exemplos que recordam, aos muito esquecidos, a circunstância de, por definição, a ONU congregar maioritariamente ditaduras e, logo, constituir um antro evitável por qualquer pessoa decente.
É por isso que a extraordinária histeria em redor da nomeação de António Guterres para secretário-geral me soou mais a uma saraivada de insultos involuntários do que à aclamação colectiva que pretendeu ser. O homem certo no lugar certo, nas palavras do dr. Costa? Não é preciso ofender. É verdade que o eng. Guterres deixou, pelo menos aqui, um embaraçoso rasto de inépcia. Mas nem o descontrolo decisivo da despesa pública nem o poder que concedeu a um grupinho de pequenos e médios malfeitores transformam o eng. Guterres no líder ideal de uma organização habituada a relativizar a opressão e o terrorismo. Embora o eng. Guterres não merecesse grande coisa, a ONU merecia bastante pior.
Dado tratar-se de Portugal, porém, estas insignificâncias não vêm a propósito. Enquanto só faltou passear o homem por Lisboa em carro, ou autocarro, aberto, o discurso oficial e o discurso oficioso decidiram fingir - ou, em casos terminais, acreditar - que a ONU é respeitável, que o eng. Guterres recebeu uma prodigiosa distinção, que os seus compatriotas devem rebentar de orgulho e que o país alcançou a glória imortal.
Para já, o objectivo é denunciar os traidores que não desejavam ardentemente a vitória do novo herói nacional. No mínimo, denuncie-se Durão Barroso, que pelos vistos apoiou a candidata búlgara e que possui um carácter baixo a ponto de em tempos ter abandonado o nosso querido país a troco de uma carreira de "prestígio" no "estrangeiro": o eng. Guterres nunca, nunca, nunca faria semelhante. Depois, resta--nos passear a soberba patriótica, inchados por integrar o restrito Olimpo onde cabem o Gana, a Birmânia e o Peru, lugares de origem de alguns dos antecessores do eng. Guterres. O eng. Guterres partilha com cada português a proeza de subir ao "topo do mundo". Esperemos que partilhe o salário.
Tudo isto não significa que o eng. Guterres não possa desempenhar um papel relevante na ONU. O prof. Freitas do Amaral, especialista em assuntos, lembra que o secretário-geral eleito é dado ao "diálogo", capaz de dialogar permanentemente "com todos os países e organizações envolvidos em cada problema", da resolução de conflitos ao combate à pobreza e à luta contra as doenças. Não duvido. Se não mudou desde 2002, o eng. Guterres dialoga tanto que, à conta do aborrecimento, arrisca erradicar dois terços das misérias da Terra. Cansados de o ouvir, inimigos ancestrais acordarão tréguas sem termo, vírus invencíveis farão as malas a caminho de destino indeterminado, e mesmo os pobres perceberão que o seu sofrimento até aí era comparativamente tolerável.
Em suma, a humanidade ganha um homem de "causas" e nós não perdemos nada: é também por causa do eng. Guterres que estamos assim. Como dizia a manchete do Público, todos ganhamos. Excepto juízo.
Segunda-feira, 3 de Outubro
O contragolpe popular
Por falta de tempo e de interesse, não acompanho a actualidade brasileira, como não acompanho a paraguaia, a luxemburguesa e a nepalesa. Mas, deste lado do oceano, a ortodoxia vigente teimou em informar-me que, nos últimos meses, o Brasil foi vítima de um golpe perpetrado pelas elites e destinado a trocar, no poder, uma presidente eleita e um partido amigo dos pobres por um sujeito odiado pelo povo e uma data de quadrilhas ao serviço da burguesia e do imperialismo.
Sobretudo por isso, aguardei com certa expectativa e sede de justiça as eleições municipais de domingo, que inevitavelmente traduziriam a revolta do povo perante tão iníquas proezas. Resultados? O partido do novo presidente (o sujeito odiado pelo povo) ganhou a coisa, com 1027 autarcas e 1,2% de crescimento face a 2012. Diversos partidos que colaboraram no golpe (as demais quadrilhas ao serviço da burguesia e do imperialismo) cresceram abundantemente e ocuparam os lugares seguintes. O partido amigo dos pobres (e da ex-presidente eleita) caiu de terceiro para décimo lugar, encolheu 60%, conseguiu uma única capital estadual (no Acre, atenção) e, para efeitos práticos, quase desapareceu.

É possível explicar isto? Será que houve fraude? Será que as elites locais afinal integram uns 90% da população? Será que, entretanto, dizimaram as classes baixas sem ninguém dar por ela? Será que os brasileiros são estúpidos? Será que a nossa ortodoxia não sabe o que diz ou sabe que o que diz é mentira? A última pergunta é apenas retórica. As anteriores pedem respostas urgentes, sob pena de ficarmos com o mundo ao contrário. Qualquer dia, a realidade é mais credível do que a ortodoxia.»

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