Há
dias, a minha filha Paula saiu-se a dizer que estava a adorar “A ilustre
casa de Ramires”, que andava a ler, como obra de maturidade de Eça e
concordei, achando graça por eu própria o ter à cabeceira, para as
espreitadelas nocturnas das insónias, a deliciar-me com a arte com que Eça traça
os espaços físicos, temporais e sociais da sua criatividade, e assim me livrar
do cansaço das notícias bombardeadas diariamente, onde há muita aflição e
desacato, a acrescentar às preocupações de cada um.
É
a história de um fidalgo, Gonçalo Mendes Ramires, entressachada com a história
dos seus antepassados, na quietude daquele espaço solarengo onde uma Torre se
erguia – a velha Torre dos Ramires - cuja história se fundia com a dos inícios
da nação, e mesmo anterior a ela, situada na aldeia de Santa Ireneia, perto de
Vila Clara, pertencente a Oliveira. São doze capítulos onde, à mestria do
descritivo rico de pormenor dinâmico e estridente no referente às envolvências bélicas
dos antepassados - trazendo-nos à memória os livros de Herculano e a sua
linguagem repassada dos termos do estridor heróico medieval e, de empréstimo, os
romances históricos de Walter Scott - se associa o habitual discurso realista e
impressionista, colorido, conceituoso, poético, de frase longa e extraordinária sensibilidade
imagística, que a cada passo ressalta e nos lembra os descritivos polifacetados
e requintados de outras suas obras-primas, que a graça imortaliza. Não resisto
a transcrever os parágrafos introdutórios, que nos localizam no tempo presente
e remetem para esse passado, por conta da simbólica Torre, palco de acções
relevantes, que Gonçalo Mendes Ramires se propõe narrar, a pedido de um seu
amigo da Faculdade, José Castanheiro, fundador do semanário “A Pátria”, de
intenção patriótica e onde Gonçalo havia publicado “D. Guiomar”, no seu
terceiro ano de Coimbra – em que reprovara mas ganhara fama literária – sobre uma
história de adultério vingado pelo esposo castelão atraiçoado, tema baseado num
poema esquecido de um seu Tio Duarte, já morto, tal como seu pai, que morrera
no seu quarto ano. Eis a introdução:
«Desde
as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho, o Fidalgo da
Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita
cor de rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes
Ramires (que naquela sua aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada
e vistosa Vila Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos reconheciam pelo
Fidalgo da Torre), trabalhava numa Novela Histórica, “A Torre de D. Ramires” destinada
ao primeiro número dos ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÒRIA, revista nova, fundada
por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do
Cenáculo Patriótico, em casa das Severinas.
A
livraria, clara e larga escaiolada de azul, com pesadas estantes de pau-preto
onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de carneira, grossos fólios
de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas,, uma de
peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada de varanda
frescamente perfumada pela madressilva, que se enroscava nas grades. Diante
dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa – mesa imensa de pés
torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada
nessa tarde pelos rijos volumes da História Genealógica, todo o Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do “Panorama”, e ao canto, em
pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos.
E daí, da sua cadeira de coiro Gonçalo Mendes Raires pensativo diante das tiras
de papel almaço, roçando pela testa a rama da pena de pato, avistava sempre a
inspiradora da sua Novela, - a Torre, a antiquíssima Torre quadrangular e negra
sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca de hera no
cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoura
bem cortadas no azul de Junho robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes
Ramires desde os meados do século X»
Segue-se
a narrativa da novela histórica, iniciada com um Ordonho Mendes, Senhor de
Treixedo e de Santa Ireneia, casado com uma condessa , filha do Rei de Leão,
primeiros donos, pois, do Solar de Santa Ireneia, (anterior ao próprio Condado
Portucalense), de sucessivos Mendes Ramires, surgindo como nobres e afoitos
auxiliares dos Reis de Portugal, em conhecidos lances históricos, ou em
empreendimentos de ruína, ou como figuras de obesidade ou até de
intelectualidade como fora a de Damião Ramires, avô de Gonçalo, participante
nas guerras civis liberais, “arrastando uma existência reumática em Santa
Ireneia” traduzindo “Valério Flaco para vernáculo”. O pai
de Gonçalo fora um dos oscilantes da política, ora Regenerador, ora Histórico,
que «vivia em Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas
escadarias do Banco Hipotecário e pelo lajedo da Arcada, até que um Ministro do
Reino, cuja concubina, corista em São Carlos, ele fascinara, o nomeou (para o
afastar da Capital), Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel
formado com um R no terceiro ano.»
E
após a introdução, segue-se, nesse capítulo primeiro, faiscante síntese sobre
os antepassados do protagonista Gonçalo Mendes Ramires, onde não faltam os
referentes vocabulares bélicos e dinâmicos que encontrávamos em Herculano - quando
Herculano era parte dos programas escolares, forçando-nos arduamente à consulta
do dicionário - o narrador omnisciente conduzindo uma trama narrativa, em que a
Torre figurará como símbolo das eras passadas, de valentia, ardor, lealdade para
com o rei e actos vingativos de uma crueldade primitiva nas ofensas à honra
pessoal, contraste vigoroso com o herói actual, personagem mais branda e
flexível, em atitudes de permanente ambiguidade – ríspido e autoritário, ou meigo
e apiedado, ora poltrão e amedrontado, ou simpático e gentil. Sonhador e
ambicioso, as ambições pessoais de notoriedade política e literária fá-lo-ão
recuar para posições de deslealdade para com aqueles que ama, apesar dos
escrúpulos de uma consciência bem formada. Fruto de uma sociedade em mudança, mais
debilitada fisicamente, mas mais protegida intelectualmente, esses dados são
pretexto para um descritivo magistral de análise psicológica com a agudeza
crítica sobre os jogos do poder e as crises de consciência que nos transportam
à actualidade, mas certamente também, ao homem de todos os tempos, na
volubilidade dos seus comportamentos e respectivas crises de consciência. Desta
forma, teremos, de certa maneira, mais uma personagem-tipo, não representativa de
uma classe social, mas da própria nação portuguesa, como se verá no retrato
final do protagonista feito por um dos amigos, o elegante João Gouveia:
Eis,
pois, a história de um fidalgo de muito antiga cepa, que, para responder ao
desafio de um seu companheiro de Coimbra, se dispõe a traçar, para uma revista de
cariz patriótico uma novela sobre um dos
seus antepassados primeiros – Tructesindo Ramires - herói façanhudo, que, para
vingar a morte de seu filho às mãos do rival Lopo de Baião - o condenará a uma
morte bárbara e vilipendiosa, com sanguessugas de uma ribeira lodosa sugando-lhe
o corpo nu, alçado num poste, enquanto à volta os besteiros gozam e comem, ao
som dos berros do condenado e perante a expressão fixa de Tructesindo sobre o
desgraçado, na satisfação da vingança, quadro final numa história que vai
alternando com o ritmo de vida do último descendente – Gonçalo Mendes Ramires.
Sensível e bom, como o provará sucessivas vezes, com figuras da aldeia que vão
perpassando na história, mas também indeciso e poltrão, perante a ameaça de
violências, de que a história com Casco é exemplo – um compromisso de
arrendamento das suas terras ao Casco, seladas com um aperto de mão e mais
tarde desfeito por uma promessa mais avultada, o que provocará a reacção violenta
de Casco, e em Gonçalo o pânico e a acusação imediata a responsáveis pela ordem,
o Governador Civil de Oliveira, André Cavaleiro . Mas ao saber da infelicidade
da família de Casco exigirá que o soltem, além de os ajudar. É verdade que o
grande problema de Gonçalo é o pouco rendimento que recebe das suas terras,
daí a ambição de um cargo de deputado que o faz aproximar-se o vaidoso André
Cavaleiro, Governador Civil de Oliveira, antigo namorado da irmã, nos seus
tempos de estudante, com quem cortara relações por aquele a ter abandonado sem explicações.
É certo que a frágil Gracinha casara com o bom Barrolo – Bacoco na opinião dos
mexeriqueiros – mas entre os seus escrúpulos receosos de um reatamento de relações com aquele, pela
irmã que estremece, e a sua ambição, prevalece esta, com efeito sobre o
reatamento discreto da relação entre os dois.
Trata-se,
pois, de uma obra extraordinariamente rica, tanto na intercalação de planos do presente
e do passado, que uma velha Torre acentua na evocação desse passado de
fortaleza,como no acompanhamento do enredo presente, de contraste com aquele, pelos traços de fraqueza do actual representante. E todavia, chegará
a vez de Gonçalo, armado de um chicote antigo, encontrado pelo criado Bento no
sótão, mostrar o seu arrojo em se defender de rapazes atrevidos que o provocam.
O feito será elogiado, quer pelo povo da aldeia e arredores, como pelos jornais
e pessoas gradas do país. Gonçalo atingirá a fama, será eleito deputado. Mas
isso não o deslumbra, fazendo penitentemente a sua mea culpa, considerando a
relatividade da sua glória e quanto arriscara por ela. São páginas do capítulo
onze de grande dimensão humana. Durante quatro meses, é, em Lisboa, um
deputado mundano, realçado nos jornais, fazendo o seu amigo João Gouveia “encolher
os ombros, rosnando: «Desandou em janota». “
Mas
o espanto é grande com a notícia de que iria partir para Moçambique, onde
arranjara uma concessão – um prazo - na Zambézia, depois de ter hipotecado a
sua quinta de Treixedo e para onde partira com o seu criado Bento.
O
capítulo XII será o remate de uma história artisticamente concebida, com os
preparativos para receber o bem sucedido fidalgo na sua fazenda em África, quatro anos passados sobre os sucessos primeiros. É aí que os três amigos de Gonçalo
– o sincero e atroador Titó, o santo Padre Soeiro e o Administrador janota Gouveia
sentados num banco donde se avista Vila Clara – conversando sobre Gonçalo,
concluem identificando-o com um símbolo da Pátria, em frases que resumem um carácter e que são
reveladoras igualmente da funda afeição de Eça pelo seu país, que em anos mais
recuados tentara fazer despertar do marasmo pela crítica irónica e no final da
vida lhe deixava o seu grande amor com esta obra, com “A Cidade e as Serras”, com as”
Lendas de Santos”, de uma expressão linguística e conceitual de extraordinária
arte.
"- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mondes. E sabem
vocês, sabe o senhor Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a
franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor Padre
Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente
muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia. A
generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, sentimentos de
muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o
leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático,
sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em
apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique,
que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um
fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança
terrível de si mesmo que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e
aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui
pegada à sua velha torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a
África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me
lembra?
- Quem?...
- Portugal.
Os
três amigos retornaram o caminho de Vila-Clara. No céu branco uma estrelinha
tremeluzia sobre Santa Maria de Craquede. E Padre Soeiro, com o seu guarda-sol
sob o braço, recolheu à torre vagarosamente, no silêncio e doçura da tarde,
rezando as suas ave-marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os
homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal,
tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras".
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