Valha-nos Deus! Gostamos mesmo
de mastigar os nossos ódios, de preservar as nossas pústulas para contaminar os
ares das lembranças futuras, dos males passados que poderão atear sempre novos
ódios, “num perpétuo movimento” tal como o “sonho”, comparado por
António Gedeão ao “bichinho álacre e sedento, de “focinho pontiagudo, que
fossa através de tudo”. Mas o sonho compreende-se, que leva ao progresso. Não
o ódio, que, no poder, conduz à ferocidade reivindicativa, ao despudor da exigência
descontrolada, ao apontar continuado do dedo acusador em vez de disciplinar,
educando no sentido da compreensão do significado de uma liberdade consciente
das suas limitações, o que só se consegue com a educação, em todos os seus sentidos.
Eu compreendo que se preservem os bastiões da glória, os brasões plantados da
nossa saga marítima, os monumentos da criatividade, as grutas com os desenhos
pré-históricos, as antas e o túmulo de Mausolo, se já não tivesse desaparecido
nas ventanias do tempo, os quadros e vestuários dos grandes artistas – da Amália
cada vez mais estimada na superioridade do seu engenho, que Taborda da Gama
evoca, a propósito da liberdade manietada.
Mas preservar os instrumentos
do mal, para quê? A Bastilha foi tomada em 14 de Julho de 1789 e destruída uns meses
depois. Fez-se uma revolução a partir dessa tomada, uma revolução desmedida, no
ódio e no furor sanguinários que ceifaram vidas, mas destruiu-se essa prisão do
Estado, símbolo de um poder absoluto que os filósofos iluministas ajudaram a
demolir. Demoliu-se a prisão e celebrou-se a data como festa da nação. E
passou-se além. “Outre”, diriam os franceses, que mais do que nós, que não
fizemos senão imitá-los, há muito mais tempo deram asas à sua ambição
libertária e igualitária.
Por isso, compreendendo, embora, os sempre
hábeis argumentos de João Taborda da Gama, discordo da sua obsessão de manter o
símbolo de um poder absoluto que se despreza, muito evocado com a nossa
vibratilidade incendiária, e acho, sim, que seria desperdício arrasar o forte
de Peniche, engrandecido de um passado, embora severo. Pelo contrário, dar-lhe
o destino de lugar aprazível, para refeições à beira-mar, parece-me uma
saudável atitude, que leva a preservar o passado com um espírito folgazão, de espaço
para bons repastos, em que somos peritos, e para prováveis bailes acompanhando
aqueles. Na alegria de uma liberdade consciente, que as salas de museu ao lado
ajudarão, provavelmente, a reprimir nos seus excessos, num pensamento de
moderação por comparação com os que a
não tiveram.
Prisão política
João Taborda da Gama
DN, 2/10/16
Preservar património é dever. Concessionar monumentos é
necessidade. Fazer um hotel no Forte de Peniche é barbárie.
A preservação do património é um dever do Estado, e não é
porque está escrito na Constituição. Não se trata de deleite intelectual, de
diletantismo estético, de pôr o povo a pagar os luxos dos ricos que adoram ver
castros celtas - trata-se do Estado ser o Estado. A existência passada e a
ideia de continuidade do Estado, enquanto instituição e comunidade, sente-se
nas paredes de um castelo, no interior de um museu, na gravação de um cântico
antigo.
Num mundo real, de recursos limitados e de escolhas alternativas,
nem todo o património vai poder ser preservado. Há espaço que era ocupado por
um lindo palácio que tem de ceder a uma escola, ou a habitação social, ou a uma
estrada, vai sempre haver algumas ânforas e cromeleques debaixo de
autoestradas. Estas escolhas são a essência da política pública do património,
um ato intencional de história em si: a campa do Salazar ou o forte de Peniche?
O novo Museu dos Coches ou um museu sobre Portugal e a escravatura? Feitas as
escolhas, a equação financeira pode recomendar, para que se preserve mais,
melhor ou mais rápido, a junção de privados. Mas nem sempre será fácil em
Portugal tendo em conta a fraca tradição de mecenato, a forte tradição de
compadrio, e a natural inabilidade lucrativa do património sem se lhe alterar a
função. Ou seja, a medida anunciada pelo governo de concessionar a privados a
recuperação e rentabilização de património é positiva, sobretudo num contexto
de muito turismo e pouco dinheiro, mas a inclusão do forte de Peniche é
injustificável.
No fundo é sempre a questão do papel e das fronteiras do
Estado: se deve promover o maior investimento privado na recuperação das
cidades (muitas vezes basta sair da frente e deixar as pessoas dizerem o que
querem fazer com as suas casas), por outro lado deve ser firme, canino, na
preservação dos lugares da sua memória, sem hagiografia ideológica mas com
sentido de... Estado. Não é coerente querer limitar a quem pode a família de
Alfama arrendar o quarto dos fundos e enfiar um hotel de cinco estrelas no
Forte de Peniche.
E não é apenas pela memória direta dos que lá estiveram
presos e dos seus que voltam mais ou menos a Peniche, na medida da sua paz com
a sua própria história. É precisamente porque Peniche os ultrapassa, é mais do
que todos os que lá estiveram presos, as suas famílias de sangue e políticas,
que o Estado não deve, não pode abrir mão do forte a troco de uns cobres que
serão patacos no gigante orçamental. Estes dois níveis, pessoal e transpessoal,
da luta política é maravilhosamente retratado na entrevista feita em 2008 por
Anabela Mota Ribeiro a Saldanha Sanches e Maria José Morgado, em que contam o
episódio de uma camisa com buracos de bala e sangue de Saldanha Sanches que às
tantas é deitada para o lixo, alegadamente por ter traça, mas naquilo que parece
um ato de renúncia a qualquer hagiografia (neste sentido também a entrevista de
Mário Crespo a Saldanha Sanches em Peniche, que pode ser vista na internet).
Peniche era uma prisão. E mais do que uma vala comum, uma
câmara de tortura, um campo de concentração, uma prisão de presos políticos é o
símbolo mais forte da fragilidade da liberdade. Peniche era uma prisão onde se
cumpriam penas, penas que estavam escritas na lei, na lei escrita por juristas,
ensinados por professores de Direito, penas aplicadas por juízes em julgamentos
com prazos, data marcada, processos, papéis, carimbos. Uma prisão como Peniche
epitomiza a facilidade com que a lei cobre e permite tudo.
Pouco importa se no Le Peniche, ou The Peniche, ambos
nomes fortíssimos, se mantém do outro lado da sala dos pequenos-almoços o
pequeno museu, se ficam algumas das celas com a decoração de origem de fronte
para as suites com jacuzzi, se o parlatório, intacto, continua preservado por
debaixo do The Blue Peniche Spa. Tudo isso é irrelevante perante a necessidade
de manter aquele colosso branco tal qual está. Podia estar melhor o museu,
podia estar mais bem recuperado, mas nem sei se seria melhor. Colossal, branco
e húmido, como imortalizado pela lente de João Pina na capa do Por Teu Livre
Pensamento (Assírio e Alvim, 2007). O título do livro é a primeira estrofe do
poema de David Mourão Ferreira, cantado por Amália, conhecido como Fado de
Peniche. O título é Abandono, uma mulher que conta a noite que fica depois de o
terem levado para longe, por seu livre pensamento, o silêncio. E a história da
democracia está também nesse ligeiro desleixo que se sente hoje no forte, como
em outros lugares de resistência, porque o sentido da revolução foi também
esse, de abrir todas as cadeias, como no poema de Manuel Alegre já não sei em
que fado da Amália. Hoje o abandono já não vive nela, mas no forte.
É preciso poder ir ao forte, estar por lá, deambular nas
celas, no recreio, sem bares de gin tónico nem massagens ayurvédicas, ouvir o
vento, ouvir o mar, como ao menos ouviam os que lá estavam, e perceber, por
fim, a irredutibilidade da liberdade. O que queremos do Estado é pouco, mas é
muito, é que se limite a manter o colosso branco na sua mão, as portas abertas,
as celas vazias.
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