Na Quadratura do Círculo desta semana o
primeiro tema foi também sobre Guterres, de quem forçosamente o país deveria
estar orgulhoso, e os três participantes mostraram que estavam, tanto mais que
o aparecimento da nova candidata proposta à última hora, protegida de Angela
Merkel e outros pares não pareceu bem a nenhum deles, Pacheco Pereira achando que
essa manobra era bem espelho de desagregação europeia, com membros de primeira
e de segunda, numa nova política de blocos, a Alemanha, derrotada da guerra,
aspirando a um papel pleno nas relações internacionais. Mas a manobra, segundo
Jorge Coelho, foi humilhante para Merkel
e Lobo Xavier considerou que, o não ter sido curto-circuitada a eleição, mostrara
que tal manobra fora a tempo detectada por todos, na sua deselegância. Julgo
mesmo que ela apressara a eleição de Guterres a quem se reconheceu superioridade e mérito, e suja a manobra.
Na minha opinião de leiga, receio que, com o seu pendor
humanitário, a sua política de integração seja contraproducente para uma Europa
já tão castigada com a invasão humana actual, que esconde forçosamente variadas
intenções. A verdade é que recordo, de Guterres, as fotos com as criancinhas do
oriente, e isso pareceu-me sempre uma pose artificial, amparada pela máquina mediática,
de um apelo ao modo do “deixai vir a mim as criancinhas”, que talvez a Europa não
possa ou não queira seguir. Por isso receio que a sua política seja factor de conflito,
paralelo ao que se passa neste nosso rincão, os partidos de esquerda exigindo
protecção para as suas gentes, sem olharem a meios, indiferentes à
inexistência de fundos, a viver do dinheiro alheio…
Também João Miguel Tavares escreve sobre António
Guterres, com dados precisos:
Tão
bons lá fora, tão maus cá dentro
Público, 06/10/2016
A
dimensão do país, a sua equidistância e o temperamento português com certeza
ajudaram à concretização deste improvável feito
A eleição
de António Guterres para secretário-geral da ONU é, sem
dúvida, um feito extraordinário, tendo em conta tudo aquilo que ele tinha
contra si. Não vinha do sítio certo (nasceu no Ocidente, e dizia-se
que esta era a hora de uma figura de Leste), não tinha o sexo certo
(é homem, e dizia-se que tinha chegado a vez de uma mulher) e não
tinha o discurso certo (adoptou sempre uma postura humanista e pró-refugiados
que se dizia poder afugentar a Rússia e a China). Ainda por cima, Guterres teve
de enfrentar uma adversária de última hora, que muitas consideravam
favorita. Mas de cristalino Kristalina só tinha o nome, e acabou por ser
fragorosamente derrotada na votação de quarta-feira, no que foi uma vitória da
transparência, como Marcelo sublinhou, e bem.
Custa-me
olhar para estas votações como se estivéssemos a assistir a um jogo da selecção
nacional, mas o patriotismo está inscrito nos nossos genes e acaba por ser mais
ou menos inevitável sentir algum orgulho por um português atingir o mais
elevado patamar na hierarquia das Nações Unidas – uma instituição que, por
muitos defeitos que tenha, impede há mais de 70 anos a eclosão de um novo
conflito mundial. Guterres tem os princípios, a cultura, a experiência e
a capacidade de negociação necessárias para o cargo. Imagino que continue a não
ter, como nunca teve, a capacidade de decisão e a firmeza necessária para dar
murros na mesa. Mas o secretário-geral da ONU também não tem uma mesa onde
dar murros. A mesa que conta é a do Conselho de Segurança, e aí António
Guterres não tem assento.
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A
competência técnica e a sua personalidade redonda terão sido essenciais para a
vitória, como, de certa forma, já havia acontecido na Europa com Durão Barroso.
Não há outro país no mundo inteiro, seja grande ou pequeno, que tenha tido
dois cidadãos seus a ocupar os lugares de presidente da Comissão Europeia e de
secretário-geral da ONU – o cargo mais elevado da política europeia e o cargo
mais elevado da diplomacia mundial. A dimensão do país, a sua equidistância
e o temperamento português com certeza ajudaram à concretização deste
improvável feito. Com uma dobradinha de tamanho calibre, Portugal mais parece a
Suíça das relações internacionais.
Contudo,
ao mesmo tempo que a minha costela patriótica sente alegria por António
Guterres, e lhe deseja a melhor sorte do mundo, a minha costela realista não
consegue deixar de sentir uma enorme melancolia por ver a disparidade entre os
feitos que estes dois homens alcançaram internacionalmente e as limitações que
revelaram enquanto primeiros-ministros de Portugal. Barroso e Guterres não são
diferentes do canalizador português do Luxemburgo ou da porteira de Paris: a
qualidade que lhes foi reconhecida no estrangeiro nunca foi revelada cá dentro.
Não
é possível olhar para isto sem apreensão. É absurdo que quem tem talento para
chegar a presidente da Comissão Europeia ou secretário-geral da ONU não tenha
qualquer talento para desempenhar o cargo de primeiro-ministro de Portugal
– e tanto Guterres como Durão falharam redondamente em São Bento, cada um à
sua maneira. Ora, o mal não pode estar apenas nestas pessoas. O mal tem
de estar nas insuficiências estruturais do país e na tremenda inércia das suas
instituições, que secam os melhores. É por isso que ao mesmo tempo que fico
feliz por Guterres cresce a minha desilusão em relação a Portugal. A sua
vitória pessoal é um espelho da nossa derrota colectiva.
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