Na
verdade, sempre que ouço António Costa enfrentando os seus adversários políticos
com a costumada postura risonhamente alfinetada de ironias marcadas por um
sabor rançoso ao déjà vu e entendu de quarenta anos e mais, num
programa de desastre sempre adiado, de pequenas vitórias e promessas de mais e de
contínuas derrotas sempre pendentes, como a tal espada, e continuando a
desmantelar as verdades dos adversários e a prometer melhorias e até a cumprir
com algumas, dando-se mesmo a pequenas gentilezas de dispensar os
aniversariantes dos seus trabalhos nos seus aniversários, além das horas repostas
nas 35 horas semanais em vez das 40 impostas no anterior governo a mando dos tróikas,
a boca sempre cheia de doçuras distribuídas para nos dar alento, eu
regozijo-me, apesar dos cortes de que se fala e as falhas na Saúde e nas
Escolas serem muitas e perversas, como as passagens de ano dos piores alunos, e
a falta de subsídio para as refeições, mas maior é o silêncio acerca disso,
virando nós a preocupação nacional para os Trumps exteriores do mundo que
desaba, receosos de que os Estados Unidos nos desamparem, se Trump vencer, o
que será mal feito e mau sintoma de envilecimento generalizado. Paulo Rangel desmascara
tudo isso, com conhecimento de causa, espero que não lhe surjam amargos de boca
por tal. O título do seu artigo é específico, no tom trágico do sintagma nominal com o respectivo adjectivo da
pendência, a prever desastre. Mas a varinha mágica do novo governo inspirado na
extorsão, deverá brevemente sanar tudo isso, com dinheiro à vista, como
poderoso maná caído dos céus. E a inquietação dá lugar ao entorpecimento
bacoco, que é característica do nosso entorpecimento, com um Santo António
valendo-nos ou o dom Sebastião “quer venha ou não”, que não somos gente
de análise racional, preferindo a liberdade de que falou Pessoa: Ai que
prazer / não cumprir um dever, /Ter um livro para ler / e não o fazer…
A ruptura iminente dos
serviços públicos
1. Não se pode deixar
passar em claro um desenvolvimento da situação social do país que tem sido
disfarçado e escondido por uma ardilosa estratégia de comunicação – uma
“novilíngua” orwelliana e um linguajar de propaganda – a que voltarei
noutra crónica. Existe um silêncio sepulcral e inexplicável à volta da
situação periclitante dos serviços públicos no país, que só uma imprensa
complacente e a domesticação dos sindicatos pode explicar. É hoje
manifesto que os serviços de saúde estão à beira da ruptura. Para quem
diz defender o Estado social e o Serviço Nacional de Saúde, este Governo e
os seus cúmplices da esquerda radical desferiram um golpe brutal no sistema,
sem qualquer paralelo nos últimos quarenta anos. A quantidade de
consultas e cirurgias que têm sido adiadas sem explicação plausível é
crescente. A quantidade de exames que não podem ser realizados por falta de
manutenção dos aparelhos dos hospitais é incontável. A subida vertiginosa da
dívida dos hospitais, que deixaram de fazer pagamentos, é escandalosa. Ao
contrário do que foi sempre propalado pelos actuais detentores do poder – que
agora destroem sem apelo nem agravo o serviço público de saúde –, o anterior
Governo, pela mão de Paulo Macedo, fez um enorme esforço para tornar
sustentável e solvente o sistema de saúde. E, isso sim, é defender,
garantir e cultivar o Estado social. Estes senhores – que gastam e haurem a
palavra “social” de tanto a usarem – não se coíbem de, para esconder o
despesismo estéril a que se votaram, fazer cativações que afectam os mais
elementares e indispensáveis cuidados de saúde. Não culpo o Ministro da
pasta nem a sua equipa que, em boa verdade, parecem ter uma visão da
sustentabilidade futura do sistema e gostariam de continuar na boa direcção do
Governo anterior, mesmo que com correcções de rota. É o embuste de Costa
e de Centeno – apadrinhado pelo Bloco e pelo PCP – que é responsável por este
abandono da saúde, prejudicando todos os cidadãos e, em especial, os mais
pobres e vulneráveis. O foguetório da devolução imediata e total de rendimentos
tem um preço e os portugueses estão a pagá-lo do modo mais duro: o vibrar de um
golpe de misericórdia na qualidade do sistema de saúde, por certo a mais
importante conquista social da nossa democracia
2. O colapso iminente dos
serviços públicos, porém, não fica por aqui. Na educação, onde se encenou um
início regular do ano lectivo, a ruptura dos serviços escolares está instalada. Basta pensar na
falta de pessoal auxiliar em quase todas as escolas, cujo recrutamento foi
travado pelas cativações que garantem a sempre evocada reposição integral de
rendimentos, para perceber as graves deficiências de funcionamento que o
sistema enfrenta. Já não bastava a política surrealista do Ministro da Educação
e dos seus inefáveis Secretários de Estado, só faltava mesmo a falência das
mais básicas condições de funcionamento das escolas. As esquerdas
radicais e o PS não se calam com a defesa da escola pública, mas a verdade é
que tudo estão a fazer para a destruir, impedindo na prática o seu
funcionamento. Defender a escola pública não é gritar desaustinadamente contra
as instituições privadas, a Igreja Católica ou o sector social. Isso é fácil, é
audível, mas não resolve nenhum problema de alunos, pais, professores, auxiliares
e de todos os que diariamente trabalham para qualificar os jovens portugueses.
Defender a escola pública e o papel social do Estado no ensino e na educação é
não fazer cortes abruptos, que impossibilitam o normal funcionamento das
escolas. Para levar a cabo a política de rendimentos a que se
vincularam, Costa, Centeno, Mário Nogueira, o PCP e o Bloco não hesitam em
privar o sistema escolar de recursos absolutamente indispensáveis ao quotidiano
das escolas. Para quem enche a boca com o Estado social e o ensino público, aí
está a grande hipocrisia orçamental.
3. O único sector em que
não subsiste ainda um estranho silenciamento, próprio da paz podre que antecede
todos os movimentos de colapso e derrocada, é o sector dos transportes
públicos. Aí a vergonha em que se tornou a ruína do metropolitano de Lisboa,
embora não faça títulos, já não é escondida nem simplesmente comentada em voz
baixa. O esgotamento dos bilhetes que já havia acontecido no metro do Porto e
que obriga a longuíssimas filas e aos mais atávicos incómodos para os
passageiros é apenas a ponta visível do iceberg. A supressão de carreiras
dentro das várias linhas, os atrasos sistemáticos, a paragem do material
circulante por falta de dinheiro para manutenção são a prova provada de que este
Governo e os seus apoiantes radicais, para fazerem flores com certos sectores
da população, deixam o Estado social à míngua. E, de uma assentada, mesmo a
esses sectores que dizem beneficiar, dão com uma mão o que tiram com a
outra. Dão-lhes através da reposição mais alguma disponibilidade
financeira, mas depois suprimem cuidados hospitalares, deixam a escola a
funcionar em modo intermitente, privam-nos de transporte colectivo. E muito
provavelmente a pouca folga que ganharam é despendida no colmatar das brechas e
crateras que o Governo PS-Bloco-PCP abriu e continua a abrir no Estado
social.
4. Ainda nem todos
tomaram consciência de que o Governo e os seus parceiros, para se ufanarem de
eventualmente atingir a meta do défice – propósito que dantes execravam –,
estão a escavacar o Estado social. Não o fazem no plano da legislação, nem o
admitem no plano do discurso, mas desmantelam-no todos os dias, sufocam-no até
limites inauditos, põem-no sob a pressão da penúria, do adiamento e do
esvaziamento. Não deixa de ser irónico que Portugal, enquanto
esteve sob assistência financeira internacional e sob o controlo férreo da
troika, tivesse os serviços sociais a funcionar melhor e mais eficazmente do
que nestes dias de aparente e celebrado relaxe e alívio. Ainda vamos acabar a
concluir que “geringonça” trata pior o Estado social do que a troika…
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