Enviou-me João Sena mais uns artigos do excelente
blog «A Bigorna», de que transcrevo dois, o primeiro, uma curiosa
notícia sobre o movimento de Abril 74, equiparado às nossas castas touradas, de
brilho e sem sangue de morte, na arena. O segundo, uma conscienciosa análise do
Fascismo, por tradução do autor do Blog, David Martelo. O texto sobre Valmy é
igualmente de interesse, é claro, bem como o sobre a evolução dos meios de combate.
I
Encontram-se disponíveis
3 novos artigos:
1. VALMY 1792 –
BERÇO DA GUERRA TOTAL
Logo na 1.ª batalha das
Guerras da Revolução Francesa, foi possível constatar que se havia iniciado
algo de novo em matéria militar. Goethe, que acompanhava as tropas prussianas,
não teve dúvidas em registar: Deste lugar e deste dia em diante começa uma
nova era na história do mundo, e todos vocês podem afirmar que presenciaram o
seu princípio.
Começara a guerra
total.
2. FASCISMO – UMA
DOUTRINA DE RAIVA E MEDO – por Madeleine Albright
Na obra “Fascism: A
Warning”, publicado no passado mês de Abril, a ex-Secretária de Estado de Bill
Clinton, que teve de abandonar a sua Checoslováquia natal, em 1939, no
seguimento da invasão hitleriana, aborda o tema do Fascismo e os sinais do seu
recrudescimento no mundo de hoje. O texto que aqui se reproduz é parte substancial
do Capítulo Um da referida obra.
3. EVOLUÇÃO DOS
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO COMBATE NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Desde que o homem
começou a utilizar a guerra como instrumento da política, não tem cessado de
evoluir o peso e a preponderância relativa dos chamados Elementos Essenciais do
Combate (EEC). São eles: o fogo, o choque, o movimento, a protecção e o
comando/ligação.
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II
1º TEXTO: “Os portugueses sempre tiveram uma maneira
muito sua de fazer as coisas. Mesmo aquele sangrento espetáculo ibérico, a
tourada, adquire em Portugal uma característica especial, cavalheiresca, pois o
touro nunca é morto. Na semana passada, um grupo estreitamente coordenado de
oficiais do exército aplicou essa tradição civilizada a um ato muitas vezes
violento: um golpe militar”.
Newsweek - 6 de Maio de 1974
2º TEXTO: FASCISMO – UMA DOUTRINA DE RAIVA E MEDO1
Madeleine Albright
Em Janeiro de 1991, George H. W. Bush disse ao
Congresso que “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da humanidade... e a
liderança da América foi decisiva para que fosse possível.” Do
outro lado do Atlântico, Havel acrescentou, “a Europa está a tentar
criar uma ordem historicamente nova através do processo de unificação... a
Europa em que ninguém mais poderoso será capaz de oprimir alguém menos
poderoso, na qual não voltará a ser possível resolver disputas pela força.”
Hoje, decorrido mais de um quarto de século, devemos perguntar o que é que
aconteceu a esta inspirada visão; porque parece que está a desvanecer-se em vez
de se tornar mais límpida? Porque é que, conforme refere a Freedom House, está
agora a democracia “debaixo de fogo e em retirada”? Porque há
muitas pessoas em posição de poder procurando minar a confiança do público em
eleições, nos tribunais, nos media e – na questão fundamental do futuro da
Terra – na ciência? Porque é que se permitiram que tamanhas e perigosas
divisões se desenvolvessem entre ricos e pobres, citadinos e rurais, os mais
instruídos e os menos? Porque é que os Estados Unidos – pelo menos
temporariamente – abdicaram da sua liderança nos assuntos mundiais? E
porque razão, decorridos que foram estes anos do século XXI, estamos outra vez
a falar acerca do Fascismo? UMA RAZÃO, SEJAMOS FRANCOS, É DONALD TRUMP. SE
PENSAMOS NO FASCISMO como uma ferida do passado, que quase tinha cicatrizado,
pôr Trump na Casa Branca foi como rasgar a ligadura e escarafunchar a crosta.
Para a classe política em Washington, D.C. – Republicanos, Democratas e
Independentes –, a eleição de Trump foi tão alarmante que teria causado,
num filme mudo dos velhos tempos, que um comediante apertasse o seu chapéu com
ambas as mãos, o enterrasse as orelhas, saltasse no ar e caísse estatelado de costas.
Os Estados Unidos já antes tiveram presidentes imperfeitos; de facto,
nunca tivemos outro tipo, mas nunca tínhamos tido um chefe do executivo, na era
moderna, cujas declarações e acções se afastam tanto dos ideais democráticos.
Desde os primeiros tempos da sua campanha, e já na Sala Oval, Donald Trump
falou asperamente acerca das instituições e princípios que criaram os
fundamentos do governo aberto. No exercício do seu cargo, tem degradado
sistematicamente o discurso político dos Estados Unidos, demonstrado um
espantoso desdém pelos factos, caluniado os seus predecessores, ameaçado de
“prender” adversários políticos, temse referido a jornalistas consagrados como
“inimigos do povo americano”, tem espalhado falsidades acerca da integridade do
processo eleitoral dos E.U.A., fomentado insensatamente políticas económicas e
comerciais nacionalistas, vilificado imigrantes e os países donde provêm, e
alimentado uma intolerância paranóica contra os seguidores de uma das
principais religiões mundiais. Para os dirigentes políticos de outros
continentes que denotam tendências autocráticas, estes impulsos constituem uma
graça. Em vez de desafiar as forças antidemocráticas, a toda a hora ouço a
mesma questão: se o presidente dos Estados Unidos diz que a imprensa mente
sempre, como é que Vladimir Putin pode ser censurado por fazer a mesma
asserção? Se Trump insiste que os juízes não são isentos e classifica o sistema
criminal americano como irrisório, como poderemos parar um líder autocrático
como Duterte das Filipinas de desacreditar o seu próprio aparelho judiciário?
Se Trump acusa políticos da oposição de traição, só por não aplaudirem os seus
discursos, que moral tem a América para protestar contra o encarceramento de
prisioneiros de consciência noutros países? Se o líder do país mais poderoso do
mundo entende a vida como uma luta sem piedade, na qual nenhum país pode ganhar
a não ser à custa de outro, quem levantará a bandeira da cooperação
internacional, sabendo que os problemas mais complicados não podem ser
resolvidos de nenhuma outra maneira? Os líderes nacionais têm o
dever de pugnar pelos melhores interesses dos seus países; isso é um truísmo.
Quando Donald Trump fala de “pôr a América em primeiro lugar”, está a
proclamar o óbvio. Nenhum político sério propôs colocar a América em segundo. O
objectivo não é o problema. O que distingue Trump de todos os
presidentes, desde o miserável trio de Harding, Coolidge e Hoover, é a
sua concepção de como os interesses da América devem ser melhor promovidos.
Ele entende o mundo como um campo de batalha, no qual cada país tem a intenção
de dominar todos os outros; onde as nações competem, como promotores de
imobiliário, para arruinar os rivais e espremer cada penny de lucro, sem
negociar. Dada a experiência que a vida lhe deu, podemos ver como Trump
podia pensar dessa maneira e há certamente casos, na diplomacia e no comércio
internacionais, onde é evidente a separação entre vencedor e vencido. No
entanto, pelo menos desde o final da 2.ª Guerra Mundial, os Estados Unidos têm
advogado que as vitórias são mais prontamente obtidas e mais facilmente
mantidas através da cooperação do que por nações agindo isoladamente. A
geração de Franklin Roosevelt e Harry Truman defendeu que os Estados fariam
melhor apostando em segurança, prosperidade e liberdade repartidas. O Plano
Marshal de 1947, por exemplo, fundamentou-se no reconhecimento de que a
economia americana estagnaria se os mercados europeus não estivessem aptos a
comprar o que os agricultores e os industriais dos E.U. tinham para vender.
Isto significa que o caminho para pôr a América em primeiro lugar consistiu
em ajudar os nossos parceiros europeus (e asiáticos) a reconstruírem e
desenvolverem as suas próprias e dinâmicas economias. O mesmo pensamento
conduziu ao Programa de Quatro Pontos de Truman, o qual tornou possível a
ajuda técnica americana na América Latina, em África e no Médio-Oriente.
Uma atitude comparável serviu-nos bem no âmbito da segurança. Os presidentes,
de Roosevelt a Obama, procuraram ajudar os aliados a protegerem-se a si
próprios e a empenhar-se numa defesa colectiva contra ameaças comuns. Fizemos
isto não com um espírito de caridade mas porque tínhamos aprendido, pela via
mais dolorosa, que os problemas no estrangeiro, se não fossem enfrentados,
podiam, decorrido não muito tempo, colocar-nos em perigo. Este trabalho
de liderança internacional não é o tipo de tarefa que possa alguma vez ser dada
como concluída. Os velhos perigos raramente desaparecem por completo e os novos
aparecem tão regularmente como o nascer dos dias. Lidar com eles de forma
eficaz nunca foi uma questão de dinheiro e poder. Os países e os povos devem
unir esforços e isso não acontece naturalmente. Embora os Estados Unidos tenham
cometido muitos erros na sua memorável história, têm mantido a capacidade para
mobilizar outros Estados devido ao seu compromisso de liderar na direcção que a
maioria deseja – a favor da liberdade, da justiça e da paz. O
problema que está presentemente diante de nós é saber se, sim ou não, a América
pode continuar a exibir aquela marca de liderança sob a direcção de um
presidente que não parece colocar muito peso tanto na cooperação internacional
como nos valores democráticos. A resposta interessa porque, embora a
natureza tenha horror ao vácuo, o Fascismo dá-lhe as boas-vindas. HÁ NÃO MUITO
TEMPO, QUANDO DISSE A UM AMIGO QUE ESTAVA A TRABALHAR NUM NOVO livro,
perguntou-me: “É acerca de quê?” “Fascismo”, disse eu. Olhou-me perplexo. “Moda
(Fashion)?” perguntou ele. O meu amigo estava menos enganado do que poderá ter
parecido, porque o Fascismo tornou-se, na verdade, algo que pode virar uma
moda, insinuando o seu caminho na conversação social e política como uma vinha renegada.
Em desacordo com alguém? Digam que é um Fascista, ficando dispensados de basear
os vossos argumentos em factos. Em 2016, a palavra “Fascismo” foi objecto
de busca no sítio do dicionário Merriam-Webster, sendo, em língua inglesa, a
segunda mais procurada, só ultrapassada pela palavra “surreal”, a qual sofreu
um súbito crescimento após a eleição presidencial de Novembro. Usar o termo
“Fascista” é revelar-se a si próprio. Para quem milita na extrema-esquerda,
qualquer figura destacada do mundo dos negócios corresponde ao paradigma. Para
outros, numa não-muito-extremadireita, Barak Obama é um Fascista – além de ser
um socialista e um muçulmano encapotado. Para um 3 jovem rebelde, Fascismo pode
aplicar-se a qualquer restrição de uso do telemóvel imposto pelos pais. Quando
as pessoas verbalizam as suas frustrações diárias, a palavra escapa-se de
milhões de bocas: os professores são apelidados de Fascistas, e, de igual modo,
são-no as feministas, os chauvinistas, os instrutores de ioga, a polícia, os
dietistas, os burocratas, os bloggers, os editores, as pessoas que acabaram de
deixar de fumar e os fabricantes de embalagem à prova de crianças. Se
continuarmos a consentir neste reflexo, acabaremos convencidos de que podemos pôr
o rótulo de Fascista em qualquer pessoa ou qualquer coisa que consideremos
exasperante – retirando significado ao que deveria ser um termo poderoso. Então,
o que é o verdadeiro Fascismo e como reconhecemos um seu praticante? Coloquei
estas questões à turma de licenciados a que dou aulas em Georgetown [...] As
perguntas eram mais difíceis de responder do que seria de esperar, porque não
há total concordância nem definições satisfatórias, embora os escritores
académicos tenham gasto oceanos de tinta a tentá-lo. Parece que cada vez que algum
especialista grita “Eureka!” e afiança ter identificado um consenso, surge
o indignado desacordo dos seus colegas. Apesar da complexidade, os meus
estudantes estavam desejosos de obter aprovação. Começaram, debaixo para cima,
nomeando as características que eram, nas suas mentes, mais estreitamente
associadas com a palavra. “Uma mentalidade de nós contra eles, adiantou
um deles. Outro referiu nacionalista, autoritário, antidemocrático. Um terceiro
realçou o aspecto violento. Um quarto perguntou por que razão o Fascismo era
quase sempre considerado de extrema-direita, argumentando que “Estaline era tão
Fascista como Hitler.” Ainda outra notou que o Fascismo é frequentemente ligado
a pessoas que são parte de um grupo de uma etnia ou raça distintas, que estão
submetidas a uma tensão económica e que sentem que lhe têm sido negadas
retribuições de que se consideram merecedoras. “Não é tanto o que as pessoas
têm”, disse ela, “mas o que pensam que deviam ter – e o que temem.” O
medo é a razão pela qual a influência emocional do Fascismo se pode estender a
todos os níveis da sociedade. Nenhum movimento pode florescer sem apoio
popular, mas o Fascismo é tão dependente dos ricos e poderosos como do
homem e da mulher da rua – daqueles que têm muito a perder e daqueles que não
têm absolutamente nada. Esta visão fez-nos pensar que o Fascismo talvez
devesse ser visto menos como uma ideologia política do que como um meio para
conquistar e conservar o poder. Por exemplo, a Itália da década de 1920 incluía
autodesignados Fascistas como força de esquerda (que advogavam uma
ditadura dos despossados), de direita (que defendiam um Estado autoritário e
corporativista) e de centro (que procuravam o regresso à monarquia absoluta).
O Partido Nacional-Socialista alemão (os Nazis) originalmente
congregou apoio em torno de uma lista de exigências que iam ao encontro dos
anti-semitas, dos anti-imigrantes e dos anticapitalistas, mas também
advogava pensões mais altas para os idosos, mais oportunidades de educação para
os pobres, o fim do trabalho infantil e o melhoramento do apoio médico à
maternidade. Os Nazis eram racistas e, nas suas próprias ideias, eram
simultaneamente reformadores. Se o Fascismo se preocupa menos com políticas
específicas do que com a conquista do poder, o que dizer sobre as tácticas da
liderança? Os meus alunos salientaram que os chefes fascistas de que nos
lembramos melhor eram carismáticos. Através de um método ou de outro, cada
um deles estabeleceu uma ligação emocional com a multidão e, tal como a figura
central de um culto, fez vir à superfície sentimentos baixos e muitas vezes
horríveis. É deste modo que os tentáculos do Fascismo se espalham dentro da
democracia. Diversamente de uma monarquia ou de uma ditadura militar
imposta à sociedade desde cima, o Fascismo recebe a energia dos homens e
mulheres que estão preocupados por causa de uma guerra perdida, de um emprego
perdido, da memória de uma humilhação ou por sentirem que o seu país está em
acentuado declínio. Quanto mais doloroso for o fundamento para o ressentimento,
mais fácil é, para o líder fascista, captar seguidores, acenando com a
perspectiva de uma regeneração ou com a promessa de devolver o que foi
subtraído. Tal como os mobilizadores de movimentos mais benignos, estes
evangelistas seculares exploram o quase universal desejo humano de ser parte de
uma proeza significativa. Os mais prendados dentre eles têm uma aptidão para o
espectáculo – para orquestrarem as assembleias de massas com música marcial,
retórica incendiária, ruidosos aplausos e saudações de braço erguido. Para os
partidários, oferecem o prémio de ser membro de um clube de que outros,
frequentemente objecto do ridículo, são afastados. Para construir o fervor,
os fascistas tendem a ser agressivos, militaristas e, quando as circunstâncias
o permitem, expansionistas. Para garantir o futuro, transformam as escolas em
seminários para os verdadeiros crentes, esforçando-se por produzir “homens
novos” e “mulheres novas”, que obedecerão sem questionar nem hesitar. E,
conforme observou um dos meus alunos, “um fascista que lança a sua carreira
sendo eleito para um cargo público reivindicará uma legitimidade que outros não
possuem”. Depois de ascender a uma posição de poder, o que é que se
segue? Como é que um fascista consolida a sua autoridade? Aqui, diversos alunos
começaram a “atirar”: “controlando a informação”; outro logo acrescentou “e por
isso temos hoje tantas razões para nos preocuparmos”. Muitos de nós vimos
a revolução tecnológica como um conjunto de meios para as pessoas de diferentes
posições sociais contactarem umas com as outras, trocarem ideias e
desenvolverem uma maior compreensão sobre as razões pelas quais os homens e as
mulheres agem da forma que o fazem – noutras palavras, para aperfeiçoar a nossa
percepção da verdade. Ainda continua a ser assim, mas agora já não estamos tão
seguros. Existe um perturbante aspecto de “Big Brother” por causa da
quantidade de dados pessoais que têm sido uploaded para os media. Se um
publicitário pode usar essa informação para a fazer chegar a um consumidor, em
função dos seus interesses individuais, o que é que impedirá um governo
fascista de fazer o mesmo? “Suponhamos que eu vou para uma manifestação
como a Marcha das Mulheres”, disse uma aluna, “e que ponho uma fotografia numa
rede social. O meu nome é adicionado a uma lista e essa lista pode ir parar a
qualquer sítio. Como é que nos protegemos contra esta situação?” Ainda
mais preocupante é a habilidade demonstrada por regimes ilegítimos e pelos seus
agentes para espalharem mentiras em websites deceptivos e no Facebook. Mais
ainda, a tecnologia tornou possível às organizações extremistas construir
câmaras de eco de apoio a teorias da conspiração, narrativas falsas e formas
ignorantes de encarar religião e raça. Esta é a primeira regra da decepção:
repetida com suficiente frequência, quase qualquer afirmação, história ou
difamação, pode começar a parecer plausível. A Internet deve ser um aliado da
liberdade e uma porta para o conhecimento; em alguns casos, não é uma coisa nem
outra. O historiador Robert Paxton começa um dos seus livros afirmando:
“O Fascismo foi a maior inovação do século XX e a fonte da maior parte dos seus
sofrimentos.” Ao longo dos anos, ele e outros académicos têm desenvolvido
listas de muitas das características que enformam o Fascismo. Na parte final da
nossa discussão, os meus alunos procuraram compor uma lista semelhante. O
Fascismo, concluiu a maior parte dos alunos, é uma forma extrema de governo autoritário.
Os cidadãos são obrigados a fazer exactamente aquilo que os líderes dizem que
devem fazer, nada mais, nada menos. A doutrina está ligada a um nacionalismo
doentio. Também revoluciona completamente o tradicional contrato social. Em
vez de os cidadãos darem poder ao Estado em troca da protecção dos seus
direitos, o poder começa com o líder e o povo não tem direitos. Sob
o Fascismo, a missão dos cidadãos é servir; a função do Estado é dominar. Quando
se fala acerca deste assunto, é frequente surgirem confusões acerca das
diferenças entre o Fascismo e os conceitos relacionados, tais como totalitarismo,
ditadura, despotismo, tirania, autocracia, etc. Como académica, podia
ser tentada a vaguear nesse matagal, mas como ex-diplomata, estou
primariamente preocupada com acções, não com rótulos. Para mim, um
fascista é alguém que se identifica fortemente e reivindica o direito de falar
em nome de uma nação inteira ou de um grupo, não considera os direitos dos
outros e pretende usar quaisquer meios que sejam necessários – incluindo a
violência – para alcançar os seus objectivos. Dentro deste conceito, um
fascista será provavelmente um tirano, mas um tirano não é necessariamente um
fascista. Muitas vezes, a diferença pode ser vista em quem detém a posse das
armas. Na Europa do século XVII, quando os aristocratas católicos combateram
com os aristocratas protestantes, lutaram pela Bíblia mas 5 concordaram em não
distribuir armas pelos seus camponeses, pensando que era mais seguro irem para
a guerra com exércitos mercenários. Os ditadores modernos também têm tendência
para suspeitar dos seus cidadãos, razão pela qual criam guardas reais e outras
unidades de segurança de elite para garantirem a sua própria segurança. Um
fascista, porém, espera que seja a multidão a protegê-lo. Onde os reis procuram
manter o povo refreado, os fascistas levantam-no de modo que quando começa a
luta, os seus peões têm a determinação e o poder de fogo para serem os
primeiros a atacar. O FASCISMO FEZ O SEU APARECIMENTO NO INÍCIO DO SÉCULO XX,
uma época de vivacidade intelectual e de ressurgente nacionalismo, combinados
com um generalizado desencanto decorrente do insucesso dos parlamentos
representativos em acompanhar o passo de uma Revolução Industrial fundada na
tecnologia. Nas décadas anteriores, académicos como Thomas Malthus,
Herbert Spencer, Charles Darwin e o meio primo de Darwin, Francis Galton,
propagaram a ideia de que a vida é uma constante luta de adaptação, com pouco
espaço para o sentimento e sem garantia de progresso. Pensadores influentes,
de Nietzsche a Freud, ponderaram as implicações de um mundo que, aparentemente,
tinha destruído as suas tradicionais amarrações. As sufragistas introduziram a
noção revolucionária de que as mulheres também tinham direitos. Líderes de
opinião, na política e nas artes, falaram abertamente acerca da possibilidade
de melhorar as espécies humanas através de uma procriação selectiva. Enquanto
isso, invenções espectaculares, como a electricidade, o telefone, os carros sem
cavalos e os navios a vapor, lograram aproximar todas as partes do mundo,
embora essas mesmas invenções tenham posto milhões de agricultores e artífices
no desemprego. Por toda a parte, as pessoas andavam de um lado para o outro,
com as famílias rurais apinhadas em cidades e milhões de europeus a mudar-se,
viajando através do oceano. Para muitos dos que ficaram, as promessas trazidas
pelo Iluminismo e pelas revoluções francesa e americana tinham-se tornado ocas.
Um vasto número de pessoas não conseguia encontrar trabalho; aqueles que o
conseguiam eram, frequentemente, vítimas de exploração ou posteriormente
sacrificadas no sangrento jogo de xadrez da 1.ª Guerra Mundial. Sobre essa
tragédia, escreveu Winston Churchill: “Foram criadas feridas à
estrutura da sociedade humana que um século não conseguirá apagar”. Mas
com a aristocracia desacreditada, a religião sob escrutínio e as velhas
estruturas políticas, como os impérios Otomano e Austro-Húngaro, a
desmoronarem-se, a procura de respostas não podia esperar. O idealismo
democrático proposto pelo presidente Woodrow Wilson foi o primeiro a ganhar
a imaginação pública. Mesmo antes dos Estados Unidos entrarem na guerra, ele
tinha proclamado o princípio de que “todos os povos têm o direito de
escolher a soberania sob a qual desejam viver”. Esta doutrina de
autodeterminação ajudou a garantir, no pós-guerra, a independência de uma mão
cheia dos mais pequenos países europeus e o seu plano para uma organização
mundial concretizar-se-ia na Sociedade das Nações. Wilson, no entanto,
era politicamente ingénuo e fisicamente frágil; a visão global da América não
sobreviveu à sua presidência. Os Estados Unidos rejeitaram a Sociedade das
Nações e, sob os sucessores de Wilson, lavaram as mãos dos assuntos europeus,
num tempo em que a reconstrução do continente não estava a decorrer
satisfatoriamente. Muitos governos que, depois da guerra, começaram em regime
liberal foram confrontados com tensões sociais explosivas, que pareceram exigir
políticas mais repressivas. Da Polónia à Áustria, à Roménia e à Grécia,
democracias inexperientes procuraram levantar voo para depois se despenharem no
solo. No leste, ideólogos soviéticos obstinados reivindicavam legitimidade para
falar pelos trabalhadores de todo mundo, assombrando o sono dos banqueiros
britânicos, dos ministros franceses e dos padres espanhóis. No Centro da
Europa, uma Alemanha ressentida lutou para recuperar o seu pé. E, em Itália,
uma besta desordeira, tendo finalmente chegado a sua hora, avançava em passada
larga pela primeira vez. Albright, Madeleine. Fascism:
A Warning (pp. 4-13). HarperCollins. Edição do Kindle. Tradução de David Martelo –Maio de 2018
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