Dois escritores portugueses que parecem situar-se em pontos opostos de
verve literária: um – ALBERTO GONÇALVES - vibrátil, espirituoso, de olhar
percuciente, desferindo contínuos clarões de mordacidade sobre um status de
miséria espiritual em derrame, numa amplitude de que somos tristes joguetes, se
não mesmo participantes, na trama de sordidez que o conceito de liberdade sem
peias, instalado, teria, forçosamente, que fazer progredir, imparavelmente.
Outro – NUNO CRATO – sereno, claro, directo, arguto, conceituoso,
delicado, e, no entanto, incisivo, tal como o primeiro, o seu espírito
matemático impondo-se na enumeração dos seus pontos de vista claros e
eficientes, luminosos também, pela clareza, forma bem didáctica de transmitir e
educar, seriamente.
Dois escritores que parecem opostos, e o são, de facto, ao nível do seu
discurso, mas que se igualam na inteligência argumentativa e no objectivo
orientador, mau grado a contínua zanga que a verve maliciosa do primeiro
implica. Lendo o primeiro, tornamo-nos mais argutos. Lendo o segundo,
tornamo-nos mais sabedores.
Dois belos espíritos portugueses que nos encantam e merecem um contínuo
galardão do seu país.
Uma semana portuguesa, com
certeza /premium
OBSERVADOR, 25/5/2018
É impressionante como os socialistas exibem uma ignorância tão vasta em
todos os domínios terrestres e, não obstante, conseguem acumular pequenas
fortunas pessoais e, para cúmulo, governar tão bem.
Sábado
Segundo o presidente do Sporting, só os que se fazem de malucos alcançam
o sucesso. Caso a tese se confirme, o indivíduo obterá mais êxito do que as
batatas fritas. Um destes dias, numa das múltiplas intervenções com que
regularmente brinda o público, o sr. Bruno de Carvalho confessava desconhecer o
paradeiro da filha, tragédia que o levou a tomar medidas imediatas: uma
conferência onde divagou, durante duas horas e meia, sobre fragmentos
incompreensíveis de assuntos insondáveis – nenhum relacionado com a criança.
Quando descer a rua em pelota e com uma galinha ao ombro, as pessoas acharão
tratar-se de um momento particularmente lúcido.
Domingo
Os organizadores de um almoço “celebrativo” do “eng.” Sócrates esperavam
300 convivas. Apareceram 100. É fácil gozar com o desesperado empenho dos
presentes, mas será mais útil lembrar a coerência dos ausentes, as incontáveis
criaturas que em incontáveis ocasiões recusaram ver o saque público e
particular de que o país era alvo. Hoje, essa recomendável gente continua a
contestar as evidências, agora ao lado de quem distribui os brindes materiais
ou simbólicos que o “eng.” Sócrates lhe proporcionou um dia. Não é por acaso
que o largo é do Rato. E é larguíssimo.
Segunda-feira
Segundo o Observador noticiou e a generalidade dos “media” omitiu, o dr.
Costa anda a contar patranhas a velhinhos para ganhar uns trocos na especulação
imobiliária. Nada contra. Pior, muito pior, são as patranhas que ele conta ao
eleitorado em peso. Não sei avaliar o que ele ganha com isso, mas um dia alguém
fará as contas daquilo que nós perdemos.
Terça-feira
Camus dizia que a única questão filosófica séria é o suicídio. O pobre
de certeza não imaginava que um dia a eutanásia seria discutida – e,
provavelmente, decretada – no parlamento português. Parece-me um local
adequado, repleto de esclarecidíssimos sujeitos que ora veneram o sr. Maduro
ora oferecem beberetes a dirigentes da bola. Entregar uma fábrica de pirotecnia
a um bando de chimpanzés não daria melhor resultado.
Se sou contra o suicídio em versão “assistida”? Não. Sou a favor? Também
não. Qualquer pessoa capaz de pronunciar “institucional” sem cuspir percebe que
a questão não se presta à habitual infantilidade das “causas”, ou a pretexto
para berreiro em “debates” televisivos em registo sim ou sopas. Ao invés das
questões de “género” e pechisbeques similares, a decisão acerca da morte acaba
por ser um assunto um bocadinho relevante e avesso a “combates” de ociosos. Os
deputados deviam poupar os clichés que lhes iluminam as cabeças para matérias
ao alcance das mesmas.
Entretanto, registo com curiosidade dois factos. O primeiro é a
invocação da liberdade individual para impor o que, afinal, é um processo de
nacionalização e legitimação burocrática. O segundo é a circunstância de o PCP
se opor à eutanásia como nunca se opôs ao estalinismo: em vez de despachar
doentes, os comunistas preferem tratar da saúde aos restantes.
Quarta-feira
Para Sua Excelência, o Presidente da República, “devemos a Júlio Pomar a
abertura de Portugal ao mundo e a entrada do mundo em Portugal”. O perigo de
se produzir cerca de oitocentos obituários semanais é o de esgotar rapidamente
os elogios de circunstância e ter de descambar para hipérboles sem rédea. Além
disso, toda a gente sabe que o responsável por abrir Portugal ao mundo e tal
foi um senhor que tinha uma boîte no Bairro Alto e faleceu há tempos.
Quinta-feira
Entre dois aumentos nos preços dos combustíveis, lá irrompe um
ministrozinho qualquer metido em trapalhadas, perdão, “lapsos”, perdão,
“percalços”. Desta vez, foi um tal Pedro Vieira, que alegadamente é
jurista, a desconhecer as “incompatibilidades” do cargo e da praxe. É
impressionante como os socialistas exibem uma ignorância tão vasta em todos os
domínios terrestres e, não obstante, conseguem acumular pequenas fortunas
pessoais e, para cúmulo, governar tão bem. Têm muita sorte, é o que é. E nós
também.
Sexta-feira
É claro que o sr. Bruno
de Carvalho, proverbial espectáculo de um homem só, não dispõe de relevância
fora do exíguo universo do vaudeville. Infelizmente, as televisões discordam e
há dias que não tratam de outra coisa. Sempre que espreito, apanho com “imagens
exclusivas” do já trágico Campo de Alcochete ou, sobretudo, com “painéis” de
sábios a discutir o futuro do Sporting. Ao que apurei, temos os sábios
apaixonados, que “pensam Sporting”, “sentem Sporting” e “vivem Sporting”, e
temos os sábios isentos, que dizem frases como: “Ainda por cima isto sucede num
momento em que devíamos estar preocupados com o ‘Mundial’”. Todos exalam
pertinência, mas ainda assim aguardo o dia em que um “painel” debata o futuro
de um país cujos “media” foram colonizados pela idiotia terminal. Na verdade, o
debate é escusado.
O meu vizinho Philip Roth /premium
OBSERVADOR, 26/5/2018
Morreu um dos maiores
romancistas das últimas décadas. A emigração portuguesa em Newark conhece bem o
ambiente dos seus romances. Mas talvez o sentido de tolerância nos leve bem
mais perto do escritor
O escritor italiano de
origem judaica Alessandro Piperno dizia que Philip Roth é “o indivíduo que não conheço com quem passei mais tempo em toda a minha
vida”. Não sei se posso dizer o mesmo, pois desde que descobri
este grande escritor que o leio vagarosamente e com imensa contenção. Passei
muitos e muitos dias lendo as suas obras. Mas cada dos seus livros é um
tremendo soco no estômago. Começa por nos envolver aos poucos, com a descrição
das personagens, com as voltas da história, que parece cronológica e linear,
mas se vai completando aqui e ali. Lentamente, Roth vai dando significado à
narrativa, explicando o seu contexto e adensando o retrato das personagens. A
meio, sempre com uma escrita calma e contida, o sentido de tragédia começa a
dominar-nos. Vamos percebendo o conflito gigantesco de todo o romance. Ou
as grandes contradições da história. Acabo sempre os seus livros com uma
sensação de peso, mas também de esperança. Penso sempre que acabei por perceber
mais sobre a vida.
Comecei a ouvir falar de Philip
Roth e a interessar-me por ele apenas em 1997, quando publicou “Pastoral
Americana” e o seu romance foi recebido com estrondoso aplauso pela crítica
norte-americana. Obteve o prémio Pulitzer e
foi considerado pela Time um dos 100 livros mais importantes publicados desde o
aparecimento da revista, em 1923.
Vivia na altura na área
metropolitana de Nova Iorque e muitos dos meus colegas, muitos de cultura
hebraica, falavam de Roth como um dos mais extraordinários escritores
contemporâneos. Conheciam todos os seus romances e liam-nos à medida que iam
aparecendo. Quando comecei a segui-los, embora a um ritmo mais lento, comecei a
percebê-los.
A cultura judaica é um
pano de fundo de toda a sua obra. Muitas das personagens são hebreus
refugiados, ou descendentes de refugiados, como o próprio Roth, que lutam para
se integrar na América urbana e suburbana. Newark, a cidade natal de Roth,
situada na zona metropolitana de Nova Iorque, as suas avenidas, as suas escolas
e as suas lojas são a paisagem dos seus romances.
Para mim, esta paisagem
urbana foi também marcante. Como se sabe, mas é difícil perceber para quem
visite hoje a cidade, Newark era um centro urbano próspero, com um porto que
rivalizava com o de Manhattan, com indústria pesada e muito comércio. A zona
baixa estava semeada de lojas, na sua maioria, ao que se diz, de judeus. A
sua Broad Street era uma enorme avenida, pacífica e sofisticada. Um pouco fora
do centro ficavam as casas da classe média, como a de Summit Street, em que
Roth viveu. Um pouco mais acima, havia ruas muito elegantes,
semeadas de mansões.
Depois das revoltas de
1967, em seguida a um episódio de violência policial contra um
taxista negro, a baixa de Newark foi destruída e as famílias judaicas e outras
de origem europeia largaram a cidade, que entrou num período de destruição,
violência, crime, abandono e pobreza.
Um bairro menos visível
da cidade, o chamado Ironbound, começou a ser ocupado por emigrantes
portugueses, que aí se estabeleceram, com as suas lojas, pastelarias, oficinas
e restaurantes. Era uma zona de habitação menos degradada, mas
mesmo assim económica, e em frente à estação de comboios, a célebre Penn
Station de Newark, ponto de chegada e de partida para o centro de Nova Iorque,
para a zona suburbana rica de Nova Jérsia, para a Pensilvânia e, mais longe,
para Baltimore e Washington.
Os portugueses
revitalizaram o Ironbound e começaram a criar um bairro de gente trabalhadora
que, em grande parte, ajudou e continua a ajudar a recuperação de Newark.
A minha ligação com
Newark vem, como a de muitos outros portugueses, das idas frequentes ao
Ironbound, ao supermercado Seabra, à Marisqueira, ao Talho Lopes e a tantas
outras lojas. Atravessei inúmeras vezes a baixa de Newark e zonas menos calmas
da cidade. Fui a escolas, trabalhei como orientador de estudantes portugueses
em Newark, colaborei com o Clube de Estudantes “Os Lusíadas”, ajudei a
organizar sessões públicas no Museu, colaborei na programação cultural do novo
“Performing Arts Center”. Trabalhei perto, numa universidade. Foram anos bons.
Ao ler Roth reconhecia a
cidade, as ruas, a Biblioteca Pública, o Museu, e imaginava as lojas e a
prosperidade passada. Sentia-me vizinho de Philip Roth.
Sentia-me vizinho também
na atitude moral perante o fanatismo e a intolerância. O ponto de vista de Roth
perante a sua cidade destruída pelos conflitos raciais é paradigmático: não
condena a fonte da indignação que cresceu ao ponto de a sua cidade ser
destruída, prefere falar da cidade. Nunca há nele uma réstia de racismo, mas há
uma tristeza profunda pela intolerância. No seu extraordinário “Casei com um
Comunista”, uma das personagens recusa-se a abandonar Newark depois das
revoltas e é morta com um tiro na cabeça, gratuitamente disparado por um dos
novos habitantes da cidade. No seu igualmente extraordinário “A Mancha Humana”
há uma vida destruída pelo extremismo académico intolerante, pelo controlo
policiesco das expressões consideradas politicamente incorretas. Mas o leitor
verá (é melhor não estragar a surpresa a quem não leu o romance!) a ironia
desse controlo ao perceber quem era, afinal, o “manchado” perseguido.
Resta dizer que Roth não
é apenas um grande narrador de histórias – essa arte extraordinária que fez de
nós humanos, contradizendo o desprezo pós-moderno pelo amor às narrativas, no
sentido clássico do termo (não, nem tudo é apenas texto!). Roth é um grande
escritor. Ao lê-lo percebe-se que há uma história, mas percebe-se também que há
literatura, que há palavras, que há frases, que há parágrafos belos, que por
detrás de tudo há o trabalho subtil e meticuloso de um grande artesão da
escrita. Lendo-o, ficamos em boa companhia.
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