Retomo o artigo de JORGE WEMANS, de que coloquei, no texto
precedente do meu blog, apenas o seu início, e agora reponho na totalidade. Parecendo-me
um discurso ético, sereno e nobre nas suas premissas, achei que nos serve a
carapuça e nos poderia ensinar ou fortalecer – se o quiséssemos - preceitos de
respeito e educação que atropelámos, numa tal doutrinação sem eira nem beira,
ou seja, sem doutrina pedagógica que, apoiada em alvares preceitos de liberdade
sem contenção, se permite macular as normas ao menos do bom senso, já que a indisciplina
trazida com a imposição da democracia, tudo levou de raso, sem lei nem roque. Eu
também cliquei para a Sic, na altura das várias reportagens, mas nunca me
demorei aí, na repugnância pelo alarde patenteado no interrogatório severo ou
cínico, de "justiceiros altivos", esfacelando, na sua posição de carrascos impunes e brejeiros, as
mais elementares regras de civismo e educação, ainda que para pessoas também
atropeladoras dos normais preceitos éticos… Não julgara possível tal
espectáculo, apesar da liberdade a todos os ventos, instituída há 44 anos, entre
nós, os do dorso curvado ante o poder, a que nos habituaram as discrepâncias
sociais, desde sempre instituídas, neste país pequenino, de hábitos consuetudinários.
Ao texto de J.W. seguem-se alguns comentários de apreço,
fortalecedores da nossa esperança no efeito positivo que esse e outros textos
poderão ainda ter, sobre nós, os, realmente, "da mansarda”, sem ofensa para Álvaro de Campos.
OPINIÃO
A insustentável leveza dos filmes do senhor
procurador
Não me recordo de ter assistido, em democracia,
a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e juízes.
JORGE WEMANS
PÚBLICO, 28 de Abril de 2018, 6:43
Só a impunidade soprada pelos ventos de
populismo que assola a Europa pode explicar o que tenho ouvido e lido como
defesa da “grande reportagem” da SIC construída com base nos filmes dos
interrogatórios dos arguidos do processo Operação Marquês. Não encontro
outra explicação. E o que vejo assusta-me.
Vamos por partes.
1. A tal “grande reportagem” que a SIC montou com a divulgação dos
filmes dos interrogatórios tem zero de investigação própria e nada de factos
novos. O seu roteiro segue o discurso da acusação e a dita reportagem não é
mais do que a ilustração dos milhares de páginas em que aquela se deu a
conhecer. Ou melhor dizendo: os milhares de páginas impressos como certificado
de tudo quanto sobre o caso já tinha sido tornado público pela via de
flagrantes e repetidos atropelos ao segredo de justiça.
A suposta reportagem da SIC, entre outros atropelos éticos que não vêm
agora ao caso e que não têm que ver com o segredo de justiça, rebaixa-se ao
hediondo de substituir o preceito deontológico de “ouvir todas as partes com
interesses atendíveis na matéria” pelos filmes em que os arguidos respondiam ao
interrogatório policial. Ou seja, para simular que respeitava aquele
dever deontológico, a SIC “foi ouvir” os acusados defenderem-se das acusações
por ela lidas e ilustradas a partir do texto da acusação através... do próprio
interrogatório a que foram submetidos! Não me recordo de ter assistido,
em democracia, a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e
juízes. Total confusão de papéis, completa mistura de planos e violação
declarada dos deveres para com os acusados e para com o público. Não estou a
falar de lei, estou a falar de deontologia jornalística.
Divulgar à exaustão e sob a capa de peça
jornalística imagens captadas durante interrogatórios só pode resultar da
procura de audiência a todo o custo, ou da vontade de incentivar o desejo de
realizar justiça pelas próprias mãos.
2. Pior do que esta “grande reportagem” com guião e imagens
extraídos dos processos realizados por quem conduziu a investigação foi o
desagrado que ela provocou na atual procuradora-geral da República. “Desagrado?”
— senhora procuradora!... Claro que a ouvimos também dizer que vai
mandar instaurar novo inquérito, mas essa parte era para rir, não é verdade?
Quantos inquéritos já mandou instaurar desde que este folhetim da Operação
Marquês começou? Nomeadamente os relativos aos crimes de violação do
segredo de justiça que continuam e continuarão impunes. Alguém foi demitido,
suspenso, ou incomodado? Não continuam procurador e juiz titulares da
investigação impávidos e serenos sem se deixarem afetar pelos recorrentes
crimes em que o seu trabalho se viu envolvido? O crime desagrada-lhe,
senhora procuradora? Então, quando o condena (se foi isso que
fez...), não faça logo a injunção para a necessidade de todos os operadores
judiciários repensarem comportamentos nesta matéria. Ou caminhamos para
regulação e legislação retroativas, esponjas branqueadoras de comportamentos
imperdoáveis do aparelho que dirige?
Mas nesta tragédia de levezas alegretes à portuguesa, as cenas dos
próximos episódios ainda seriam mais negras. Como quase sempre nos media portugueses,
em que o que falta em matéria de informação sobra em opinião, boa
parte desta veio mostrar que afinal estava tudo certo. Que a luta contra a
corrupção, o desmascarar das trapaças dos poderosos, ou o interesse público se
sobrepunham a tudo e a todos.
3. Sabemos quanto a corrupção de altos
responsáveis políticos, empresariais, financeiros, académicos e culturais é um
dos principais cancros da sociedade portuguesa e da nossa vida democrática. A Operação Marquês investigou a
corrupção ao mais alto nível. Mas não há importância ou singularidade de um
processo judicial que suspenda todos os direitos dos investigados, confira
exceção absoluta de procedimentos legais, substitua os tribunais pelo
julgamento popular, dispense a prova por existir convicção. Estes são os
fundamentos do populismo que, como é sabido e é tristemente patente nesta
Europa a que nos deixámos chegar, opera sempre do mesmo modo: escolhe e
denuncia impasses políticos verdadeiros e problemas sociais reais; explica-os
através de origens deturpadas e razões falsas; e propõe-se resolvê-los através
de medidas radicais, excecionais e antidemocráticas.
Sorrateira ou explicitamente, são estes pressupostos que baseiam boa
parte da opinião publicada a favor da “grande reportagem” da SIC. Não, não há nenhum “interesse público” que
justifique a difusão das imagens dos interrogatórios. As expressões dos
arguidos em interrogatório, o conteúdo do que ali dizem e o modo como se
exprimem nada provam, nem são factos relevantes no apuramento da verdade. Só
quem nunca foi sujeito a interrogatório por parte daqueles que lhe retiraram a
liberdade pode supor que essa é uma situação “normal”. Mas, mesmo não a
tendo vivido na pele, deve perceber que nesse contexto absolutamente excecional
ninguém é como é. E, sobretudo, que ninguém naquela situação se preocupa
com a sua eventual performance perante as câmaras. De resto, o populismo
reinante opera também esta “confusão” entre duas coisas bem distintas: o que
são as provas aduzidas pela acusação e o que são factos provados em tribunal.
Nada se encontra definitivamente provado antes de este se pronunciar, ouvida a
defesa e avaliadas as provas por ela apresentada. Phil Graham daria uma volta
no túmulo se alguém lhe traduzisse a glosa portuguesa da sua célebre frase [1]
que parece ter cristalizado neste desastre: “Os tribunais trabalham para a
história, os jornalistas para o momento”!
4. Duas coisas são certas. A primeira, pouco importante e de nível
pessoal: se alguma vez for sujeito a investigação policial, exigirei uma
máscara antes de responder a quaisquer perguntas que me queiram fazer. Não
quero correr o risco de me ver envolvido nestas cenas degradantes. A
segunda, mais decisiva: a luta contra a grande corrupção em Portugal acaba de
dar um gigantesco passo atrás. E, para o seu recuo, mais do que a
desastrosa “grande reportagem” da SIC, contribuíram os seus alegretes
defensores, exultantes com a pornográfica exibição das “provas” que reforçam as
suas convicções. Minar a administração da Justiça sobrepondo-lhe o
julgamento popular, substituir a prova pela convicção e retirar à vida
democrática os procedimentos formais que também a caracterizam — aí está toda
uma agenda para o sólido desenvolvimento do populismo à portuguesa.
1-Rascunho de uma história que nunca será completa acerca de um mundo que
nós verdadeiramente nunca percebemos”
Alguns comentários:
29.04.2018
Estou cem por cento de
acordo, desde o título à última frase! Acrescentaria algo: a derivação para a
ironia de mau gosto com que algumas perguntas foram formuladas. Afinal, o juiz
de instrução não é o das liberdades e garantias? Não sendo de crer, apesar disso,
que juiz e procurador estejam de conluio neste crime de publicitação dos vídeos,
sugere-se à SIC uma reportagem sobre uma temática de envergadura maior: quem
anda no MP ou na PJ a furar segredos de justiça? Oxalá a SIC tenha coragem de o
fazer Não só seria um trabalho profícuo, no domínio da corrupção, como um bom
furo jornalístico quando a "fonte" do processo Marquês secar ...
29.04.2018
Parabéns pelo excelente
artigo. Também não percebo como é que até agora não houve consequências para
quem ganha a vida a violar o segredo de justiça e a „fazer fugir“ informações.
Fazem falta responsáveis com coragem para assumir erros e construir soluções. A
situação é insuportavelmente ridícula, o populismo é insuportavelmente perigos
28.04.2018
Muito bem escrito.
Subscrevo!
Lisboa 28.04.2018
Subscrevo a indignação, e
sobretudo acompanho o articulista na sua reflexão relativamente ao papel do
"jornalismo" praticado por alguns dos meios de comunicação social. Ao
episódio ainda haveria de acrescentar o triste papel de Ricardo Costa, qual
paladino das notícias "à minha maneira e como eu digo". Triste.
28.04.2018
Mas a grande questão está mesmo no papel
desempenhado pelos magistrados e, assim sendo, no pretendido com essa
intervenção. Porque a questão da Ética e do Segredo de Justiça, essas já foram
deitadas às malvas há muito tempo; precisamente por aquilo que os magistrados
pretendem com tudo isto. Alguns dirão, preparar a opinião pública para a
bondade - eles dizem verdade - dos seus argumentos e convicções; contudo, não é
só por isso, é muito mais - visa instrumentalizar, pela contaminação, as outras
áreas do poder, e assim reforçar o seu. Estamos perante um processo de
judicialização da sociedade, nos quais o poder legislativo, por incúria e
omissão, e o poder executivo, por demissão e indecisão, têm amplamente
contribuído. Veja-se o caso da norma sobre o concurso para professores.
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