Um curioso email enviado por João
Sena, com os seguintes dizeres em antetítulo: «Maria José Morgado é muito
clara. Claro que quem se sente não é filho de boa gente (e terá muitos
"irmãos" em outros quadrantes). Palavras para quê?», e apresentou,
seguidamente, em youtube, uma entrevista já antiga de Ricardo
Costa à jurista, que me deixou admirada, pela frontalidade das suas
críticas a um status de abandalhamento moral, no nosso país, de uma democracia
cuja táctica em julgamento é uma rapidez que se exige e que tudo faz para
atrasar as decisões. Ouvindo-a, julguei que fosse de “direita”, mas a Internet que
a minha curiosidade procurou, esclareceu-me do contrário, tendo sido de longa
data apoiante da mudança que juntou Mário Soares e seu marido, em prisão comum,
segundo a transcrição que dela faço:
É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tendo ingressado
na magistratura do Ministério Público em 1979. Ligada à Polícia Judiciária, assumiu o comando da Direcção
Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (2000-02) e, em 2006 é nomeada procuradora-geral adjunta
do Tribunal da Relação de Lisboa. No mesmo
ano assumiu a coordenação da investigação de casos polémicos como o Apito Dourado
ou a alegada corrupção na Câmara Municipal de Lisboa.
Figura directamente
ligada ao desenvolvimento do processo "Apito Dourado", é uma voz
publicamente activa contra a corrupção em
Portugal.
Participa no
programa Prós e Contras, da RTP1, em 27 de maio de
2003, sob o título O poder local serve
bem os cidadãos?
Filha de pais
transmontanos, de Acácio Augusto Morgado, nascido em Carlão,
concelho de Alijó, e de Joaquina Rodrigues Capelo, natural da freguesia
de Salto,
do concelho de Montalegre, a viverem em Lisboa.»
Gostei a valer do seu discurso
frontal, denunciando o «esbanjadouro» em que se tornou este país, a
morosidade de uma justiça que exige rapidez e tudo faz para a eternizar, até
prescreverem os processos dos crimes mais grados, referiu que o 25 de Abril é
uma “abstracção para os discursos oficiais”, insistindo em que “o medo voltou”,
por falta de perspectiva de vida. Em mudança de cenário, ouvimo-la também em
mesa de mais circunstância, com deputados que se sentiram gravemente atingidos,
embora Maria José Morgado se justificasse com a sua visão genérica,
contundente sim, mas não personalizada. O certo é que se ficou por ali, o vídeo
acabou, acrescido de notícias e retratos sobre algumas dessas figuras lesadoras
que então protestaram e que a Justiça favorece, no arrastamento dos tais
processos da indignação de Maria José Morgado..
Mas leio também a crónica de João Miguel Tavares, a respeito de um Pablo
Iglésias a quem o fascínio do bem-estar o faz comprar mansão de luxo, e regozijo-me
igualmente como sempre, com a coerência dos seus argumentos de uma ética
esclarecida, apesar de comentários negativos que cheguei a ler, sobre o seu
excesso crítico.
Mas o Público de vez em quando
corta-me o acesso aos seus textos, o que voltou a acontecer. Este ainda escapou,
que dá conta de um activista de esquerda espanhol, em pecado de desobediência aos seus anteriores protestos generosos. Lá, como cá..
OPINIÃO.
Pablo Iglesias e uma casa de 600.000 euros
O problema é a coerência –
ou a falta dela –, desde logo por causa de um tweet de 2012, em que
Iglesias dizia sobre Luis de Guindos: “Entregarias a política económica de um
país a alguém que gasta 600 mil euros num apartamento de luxo?” Pela boca morre
o peixe.
JOÃO MIGUEL TAVARES
Público, 22 de Maio de 2018
O caso atingiu tal
dimensão em Espanha que Pablo Iglesias decidiu referendar a sua continuidade
como líder do Podemos e como deputado da nação: até que ponto o responsável
máximo por um partido de extrema-esquerda, com um discurso fortemente
anticapitalista e crítico dos desvios burgueses, pode dar-se ao luxo de comprar
uma vivenda com piscina no valor de 600 mil euros? A partir desta terça e
até domingo, meio milhão de espanhóis, simpatizantes do partido que está em
segundo nas sondagens, vão decidir o destino político de Iglesias e da sua
companheira, Irene Montero. A ascensão dos millennials e
a explosão das redes sociais permitiram a rápida proliferação de projectos
políticos alternativos como o Podemos, mas há um avesso que os novos demagogos
não acautelaram devidamente: o escrutínio das acções está cada vez mais
apertado e a hipocrisia mata.
O que começou como uma
bonita história de amor acabou por abrir uma crise sem precedentes, que se
correr mal pode vir a custar a cabeça a Iglesias e a Montero, ambos deputados,
namorados e com gémeos a caminho. Por amor às crianças por nascer, o casal
pediu um empréstimo de 560 mil euros para comprar uma casa no campo,
argumentando ter rendimentos suficientes para pagar 1600 euros mensais ao longo
de 30 anos. Qual é o problema, então? O problema é a coerência – ou a falta
dela –, desde logo por causa de um tweet de 2012, em que
Pablo Iglesias dizia sobre Luis de Guindos, recém-nomeado vice-presidente do
Banco Central Europeu (ficou com o lugar de Vítor Constâncio) e até há pouco
ministro da Economia espanhol: “Entregarias a política económica de um país
a alguém que gasta 600 mil euros num apartamento de luxo?”
É preciso pontaria: 600
mil euros, exactamente o valor que Iglesias e Montero estão agora a pagar pela
sua casa. Pela boca morre o peixe e pela boca pode muito bem ter morrido
Iglesias. O comunismo e o socialismo sempre foram filhos da burguesia, desde os
tempos de Karl Marx até ao actual elenco do Bloco. Os dedos de uma mão devem
chegar para contar as grandes figuras de esquerda que saíram realmente do
proletariado, e, se olharmos para as personalidades fundadoras dos partidos
de esquerda portugueses – Álvaro Cunhal, Mário Soares, Francisco Louçã –, não
encontramos qualquer trolha, nem um único camponês. Encontramos sempre filhos
da burguesia com educações privilegiadas. O próprio Iglesias é um académico,
com uma mãe advogada e um pai professor. Donde, quando se aproxima a hora
de criar os próprios filhos, é natural que lhes queira dar o melhor, o que
significa abrir os bolsos e assumir o estatuto de privilegiado. E é aqui que
começam os curtos-circuitos.
Em Espanha, alguns
militantes do Podemos, críticos de Iglesias e Montero, invocam o exemplo de
José Mujica, ex-Presidente do Uruguai – aquilo é que é um homem de esquerda!
Mas quem é que quer viver de chanatos no meio das cabras e galinhas? Os que
dizem “não devemos ser da casta”, “devemos viver próximos daqueles que
representamos”, podem estar excelentemente intencionados, mas apenas
alimentam a velha confusão da extrema-esquerda: promover o empobrecimento dos
ricos, em vez do enriquecimento dos pobres. Enquanto for assim, Iglesias
está tramado. Na era das redes, vai ter de organizar um referendo interno de
cada vez que for apanhado a mergulhar numa piscina privada, em vez de chapinhar
proletariamente numa praia fluvial. Não lhe invejo a sorte – mas ele merece a
sorte que tem.
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