quarta-feira, 23 de maio de 2018

Afinal, o que são 600.000 euros?



Um curioso email enviado por João Sena, com os seguintes dizeres em antetítulo: «Maria José Morgado é muito clara. Claro que quem se sente não é filho de boa gente (e terá muitos "irmãos" em outros quadrantes). Palavras para quê?», e apresentou, seguidamente, em youtube, uma entrevista já antiga de Ricardo Costa à jurista, que me deixou admirada, pela frontalidade das suas críticas a um status de abandalhamento moral, no nosso país, de uma democracia cuja táctica em julgamento é uma rapidez que se exige e que tudo faz para atrasar as decisões. Ouvindo-a, julguei que fosse de “direita”, mas a Internet que a minha curiosidade procurou, esclareceu-me do contrário, tendo sido de longa data apoiante da mudança que juntou Mário Soares e seu marido, em prisão comum, segundo a transcrição que dela faço:

«Maria José Morgado (MalanjeAngola1951) é uma magistrada do Ministério Público português.
É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tendo ingressado na magistratura do Ministério Público em 1979. Ligada à Polícia Judiciária, assumiu o comando da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (2000-02) e, em 2006 é nomeada procuradora-geral adjunta do Tribunal da Relação de Lisboa. No mesmo ano assumiu a coordenação da investigação de casos polémicos como o Apito Dourado ou a alegada corrupção na Câmara Municipal de Lisboa.
Figura directamente ligada ao desenvolvimento do processo "Apito Dourado", é uma voz publicamente activa contra a corrupção em Portugal.
Participa no programa Prós e Contras, da RTP1, em 27 de maio de 2003, sob o título O poder local serve bem os cidadãos?
Militou no PCTP/MRPP e é viúva do fiscalista José Saldanha Sanches.
Filha de pais transmontanos, de Acácio Augusto Morgado, nascido em Carlão, concelho de Alijó, e de Joaquina Rodrigues Capelo, natural da freguesia de Salto, do concelho de Montalegre, a viverem em Lisboa

Gostei a valer do seu discurso frontal, denunciando o «esbanjadouro» em que se tornou este país, a morosidade de uma justiça que exige rapidez e tudo faz para a eternizar, até prescreverem os processos dos crimes mais grados, referiu que o 25 de Abril é uma “abstracção para os discursos oficiais”, insistindo em que “o medo voltou”, por falta de perspectiva de vida. Em mudança de cenário, ouvimo-la também em mesa de mais circunstância, com deputados que se sentiram gravemente atingidos, embora Maria José Morgado se justificasse com a sua visão genérica, contundente sim, mas não personalizada. O certo é que se ficou por ali, o vídeo acabou, acrescido de notícias e retratos sobre algumas dessas figuras lesadoras que então protestaram e que a Justiça favorece, no arrastamento dos tais processos da indignação de Maria José Morgado..

Mas leio também a crónica de João Miguel Tavares, a respeito de um Pablo Iglésias a quem o fascínio do bem-estar o faz comprar mansão de luxo, e regozijo-me igualmente como sempre, com a coerência dos seus argumentos de uma ética esclarecida, apesar de comentários negativos que cheguei a ler, sobre o seu excesso crítico.
Mas o Público de vez em quando corta-me o acesso aos seus textos, o que voltou a acontecer. Este ainda escapou, que dá conta de um activista de esquerda espanhol, em pecado de desobediência aos seus anteriores protestos generosos. Lá, como cá..

OPINIÃO.
Pablo Iglesias e uma casa de 600.000 euros
O problema é a coerência – ou a falta dela –, desde logo por causa de um tweet de 2012, em que Iglesias dizia sobre Luis de Guindos: “Entregarias a política económica de um país a alguém que gasta 600 mil euros num apartamento de luxo?” Pela boca morre o peixe.

JOÃO MIGUEL TAVARES
Público, 22 de Maio de 2018
O caso atingiu tal dimensão em Espanha que Pablo Iglesias decidiu referendar a sua continuidade como líder do Podemos e como deputado da nação: até que ponto o responsável máximo por um partido de extrema-esquerda, com um discurso fortemente anticapitalista e crítico dos desvios burgueses, pode dar-se ao luxo de comprar uma vivenda com piscina no valor de 600 mil euros? A partir desta terça e até domingo, meio milhão de espanhóis, simpatizantes do partido que está em segundo nas sondagens, vão decidir o destino político de Iglesias e da sua companheira, Irene Montero. A ascensão dos millennials e a explosão das redes sociais permitiram a rápida proliferação de projectos políticos alternativos como o Podemos, mas há um avesso que os novos demagogos não acautelaram devidamente: o escrutínio das acções está cada vez mais apertado e a hipocrisia mata.
O que começou como uma bonita história de amor acabou por abrir uma crise sem precedentes, que se correr mal pode vir a custar a cabeça a Iglesias e a Montero, ambos deputados, namorados e com gémeos a caminho. Por amor às crianças por nascer, o casal pediu um empréstimo de 560 mil euros para comprar uma casa no campo, argumentando ter rendimentos suficientes para pagar 1600 euros mensais ao longo de 30 anos. Qual é o problema, então? O problema é a coerência – ou a falta dela –, desde logo por causa de um tweet de 2012, em que Pablo Iglesias dizia sobre Luis de Guindos, recém-nomeado vice-presidente do Banco Central Europeu (ficou com o lugar de Vítor Constâncio) e até há pouco ministro da Economia espanhol: “Entregarias a política económica de um país a alguém que gasta 600 mil euros num apartamento de luxo?”
É preciso pontaria: 600 mil euros, exactamente o valor que Iglesias e Montero estão agora a pagar pela sua casa. Pela boca morre o peixe e pela boca pode muito bem ter morrido Iglesias. O comunismo e o socialismo sempre foram filhos da burguesia, desde os tempos de Karl Marx até ao actual elenco do Bloco. Os dedos de uma mão devem chegar para contar as grandes figuras de esquerda que saíram realmente do proletariado, e, se olharmos para as personalidades fundadoras dos partidos de esquerda portugueses – Álvaro Cunhal, Mário Soares, Francisco Louçã –, não encontramos qualquer trolha, nem um único camponês. Encontramos sempre filhos da burguesia com educações privilegiadas. O próprio Iglesias é um académico, com uma mãe advogada e um pai professor. Donde, quando se aproxima a hora de criar os próprios filhos, é natural que lhes queira dar o melhor, o que significa abrir os bolsos e assumir o estatuto de privilegiado. E é aqui que começam os curtos-circuitos.
Em Espanha, alguns militantes do Podemos, críticos de Iglesias e Montero, invocam o exemplo de José Mujica, ex-Presidente do Uruguai – aquilo é que é um homem de esquerda! Mas quem é que quer viver de chanatos no meio das cabras e galinhas? Os que dizem “não devemos ser da casta”, “devemos viver próximos daqueles que representamos”, podem estar excelentemente intencionados, mas apenas alimentam a velha confusão da extrema-esquerda: promover o empobrecimento dos ricos, em vez do enriquecimento dos pobres. Enquanto for assim, Iglesias está tramado. Na era das redes, vai ter de organizar um referendo interno de cada vez que for apanhado a mergulhar numa piscina privada, em vez de chapinhar proletariamente numa praia fluvial. Não lhe invejo a sorte – mas ele merece a sorte que tem.


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