domingo, 13 de maio de 2018

Um texto que me escapou, e a sua demonstração logo a seguir



Procurando o texto de hoje, de António Barreto, que costuma ser rigoroso na sua pontualidade dominical, dei com o que segue, que tinha escapado às minhas buscas anteriores, de um autor que admiro, no virtuosismo do seu estilo alinhado, seguindo conceitos éticos que também me parecem alinhados, indispensáveis num mundo em desagregação - caso as políticas de “sustentabilidade e resiliência” não tenham efeito restaurador anti poluente (o que não quero crer, por amor das gerações futuras, respeito pelas passadas e presentes, e por esta Terra que nos sustém, “leve como uma andorinha”, mãe ou madrasta, mas sempre admirada e apetecida, até ver, pelo menos.
Uma excelente descrição do racismo, conforme as ideologias dos que o descrevem: implacável na sua superioridade rácica, se pertencer a uma direita abusadora e exploradora; desculpável na sua condição humilhada, de transgressão convertida tantas vezes em puro terrorismo, sendo este prontamente justificado por condicionalismos étnicos, por parte da esquerda parcialmente generosa, na realidade, apenas instigadora de ódio e destruição.
São assim, magistralmente descritos, os «Ódios do tempo presente», em processo argumentativo de alternância, de clareza e subtil ironia.
O segundo texto, de João Miguel Tavares, serve-lhe de exemplo imediato, com a sua crónica arejada e intrépida sobre a nossa corrupção de estimação, e sobre um cronista – Manuel de Oliveira -cronista que coloca o combate ideológico à frente de tudo, incluindo da honestidade intelectual”.
Haveria pano para mangas para comentar «Coisas que me dão a volta ao estômago», mas o artigo de JMT será suficientemente explícito para uma sociedade mergulhada em casus belli e de poluição.

I - Ódios do tempo presente
ANTÓNIO BARRETO
DN, 15/4/18
Chamam-lhes movimentos tribais. Reflexos ou populismo de tribo. Também há quem diga fanatismo e respectivas hordas ou mesmo fanatismo nacionalista. Os mais específicos falarão de supremacia branca, de racismo e de xenofobia. Eis umas tantas designações correntes para estes fenómenos actuais ou ódios contemporâneos. Estes termos parecem estranhamente empenhados em denunciar comportamentos brancos, de preferência europeus e americanos. Todos eles com inimigos declarados: negros, árabes, indianos e chineses e ainda uns acrescentos de muçulmanos, ciganos, romenos e outros imigrantes.
Acontece que estes comportamentos e estes valores, reais e detestáveis, não são únicos e são exactamente iguais a outros, simétricos e também detestáveis, de negros, árabes e indianos, contra os brancos e mesmo uns contra os outros. E todos se parecem com outros, não menos tribais, não menos fanáticos e também totalmente detestáveis: os das claques desportivas, das ideologias partidárias e dos ódios de classe...
Lamentavelmente, há sempre duas medidas. Se o racismo for dos brancos, dos cristãos e dos europeus, não tem perdão. Se for dos negros, dos muçulmanos e dos africanos, tem desculpas.
Se a xenofobia for prática corrente de brancos, europeus e cristãos, trata-se de odiosa forma de estar no mundo, de despotismo de exploradores e de intolerável egoísmo. Se for a rotina de negros, índios, indianos, chineses, árabes e ciganos, são as reacções naturais de defesa e da dignidade.
Se o tribalismo for de partidos políticos ou de classes sociais, é forma superior de consciência de classes e de empenho cívico. Mas se for de nação ou região, é a deriva fascista e o populismo soberanista opressor.
Verdade é que os ódios do tempo presente têm estas formas de se exprimir. Umas são desculpadas pelas modas, outras não, mas todas igualmente destruidoras da razão. No Parlamento, a ira, a falta de cortesia e a agressividade são semelhantes às que se exprimem no estádio de futebol. Está em vigor o princípio segundo o qual o radicalismo adversário é fonte de orgulho e de razão. Quando é exactamente o contrário. A agressividade e a hostilidade adversária são estéreis, destinadas a regimentar e não a fundamentar. Diz-se que a ruptura entre esquerda e direita salva a democracia e clarifica argumentos. Nada mais enganador. Em todos os momentos difíceis da vida de um país, foi necessário fazer convergir esforços e razões. Na vida política e social da democracia, a ruptura não é saudável. Quando acontece, vencem a revolução, o caos, a ditadura e a corrupção.
São os reflexos condicionados que fazem que se julgue a corrupção com dois pesos. Se for da direita, da banca, das grandes famílias, das empresas e dos patrões, é excelente ou inexistente para a direita, mas péssima e condenável para a esquerda. Mas se for da esquerda, dos socialistas, dos comunistas e aparentados, ou não existe ou tem perdão por ser popular, mas péssima e pecaminosa para a direita. Ambas, esquerda e direita, consideram que a única corrupção com direito à existência é a sua própria. Ambas só têm olhos para a corrupção da outra.
Diz-se hoje que a corrupção é de classe e o terrorismo é político. Ora, cada vez mais se percebe que não têm cor nem ideologia, que a esquerda é tão corrupta quanto a direita, que a esquerda recorre tanto ao terrorismo quanto a direita. O terrorismo e a corrupção já não têm ideologia, nem classe, nem política, nem filosofia, nem desculpa! São os ódios do tempo presente. São os inimigos das liberdades e dos direitos dos cidadãos.
Certos estilos de governo e alguns géneros de liderança são também objectos destes dois pesos. Putin, Trump, Fujimori, Chávez, Maduro, Lula, Berlusconi ou Sócrates: bons exemplos do modo como gestos iguais, estilos semelhantes e métodos afins têm uma valoração moral e uma classificação política muito diferentes. Na política, como na guerra. Ou como na banca e nos estádios. O princípio é simples: os meus favoritos podem mentir e roubar; podem enganar e trair; podem matar e destruir: o que lhes peço é que sejam eficientes e destruam os adversários. E que o árbitro não veja.

As minhas fotografias
 ANTÓNIO BARRETO
Vendedor de fotografias no Chiado. Hoje, no Chiado, depois de longas crises de despovoamento e declínio, há de tudo, movimento, música (às vezes estridente e incómoda...), animação, bebidas, compras e turismo. Infelizmente, já saíram muitas das lojas antigas e interessantes, substituídas agora por comércios sem carácter, iguais aos do mundo inteiro. Este senhor encontrou um nicho de mercado e instalou, ou antes, pendurou a sua loja em local que passou a ser o dele. Arranjou maneira de reproduzir fotografias famosas, do bebedouro de Joshua Benoliel a Madonna com máscara ou nua a pedir boleia. Há sempre por ali turistas interessados. Mas o herói daquele comércio é sem dúvida o carro eléctrico, "o amarelo" de Lisboa, o 28...

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II- OPINIÃO
Coisas que me dão a volta ao estômago
Não se trata de averiguar se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos e Macedo), mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos Silva ou Pedro Silva Pereira).
PÚBLICO, 12 de Maio de 2018
Estão a ver aquele artigo de há dois dias onde eu argumentava que a estratégia da esquerda para proteger o PS pós-socrático consistia em elencar todos os casos judiciais que algum dia envolveram a direita, transformando o assalto à democracia de 2005-2011 num estimável passeio, apenas assombrado por duas ou três nuvens cinzentas, tão corruptas como quaisquer outras, e cujo aparecimento ninguém poderia prever? Daniel Oliveira teve a simpatia de demonstrar o meu argumento nesse mesmo dia, num artigo no Expresso intitulado “Vamos então à moralização”. Todas as comparações absurdas que eu defendi que não poderiam ser feitas ele teve o cuidado de as fazer, ensaiando até um paralelismo entre José Sócrates e Pedro Passos Coelho que merece ser transformado em monumento, para que todos aqueles que estejam interessados – e são com certeza muitos – em prestar tributo à desonestidade intelectual, ao fanatismo ideológico e ao calculismo político tenham um sítio onde ir depositar flores.
Para combater aquilo a que ele chama “um movimento de moralização selectiva”, Daniel Oliveira decidiu criticar a “criminalização política por associação”. Isto porque, segundo ele, se a culpa política por associação for para ser “levada a sério”, “todos os anteriores líderes de governo devem ser responsabilizados até às últimas consequências por actos de ministros seus”. E vai daí, dentro daquela lógica imbatível que permite comparar Vale e Azevedo com Ghandi porque ambos são carecas, Daniel Oliveira escreve isto: “O que significa que Passos Coelho está no banco dos réus políticos enquanto Miguel Macedo não for absolvido. Proponho, com base nesta versão radical e inédita de responsabilidade política, que todos os governos sejam passados a pente fino.”
Atenção: Oliveira está alegadamente a ironizar. Ele acha que isto não se deve fazer. Mas como é próprio da boa retórica, está precisamente a fazer o que diz que não deve ser feito, na medida em que coloca Passos e Sócrates no mesmo patamar e inverte a lógica do problema: não se trata de averiguar se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos e Macedo), mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos Silva ou Pedro Silva Pereira). Ora, como eu não tenho Daniel Oliveira na conta de idiota, até porque o conheço, esta confusão não é acidental. Donde, terei de o colocar na conta de “cronista que coloca o combate ideológico à frente de tudo, incluindo da honestidade intelectual”conta bem mais grave do que a da idiotia, porque muito mais prejudicial ao debate público.
De Passos Coelho pode obviamente dizer-se muita coisa. Que as políticas foram más. Que tinha amigos duvidosos. Que o caso Tecnoforma é uma vergonha. Tudo isso é aceitável. Não foi ele, com certeza, o primeiro político a nascer com um par de asas brancas nas costas. Mas Passos escolheu Joana Marques Vidal, recuperou o prestígio do Ministério Público, nunca interferiu com a Justiça (incluindo no caso Macedo) e deixou cair Ricardo Salgado com estrondo. Isso já ninguém lhe tira – e esse é um legado que qualquer pessoa deveria reconhecer, seja socialista, comunista ou bloquista. É que isto não são opiniões. São factos. E andar a manipular factos, ou a querer transformá-los em simples pontos de vista, significa apenas uma coisa: Sócrates está morto, mas o seu legado continua excessivamente vivo.





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