Procurando o texto de hoje, de
António Barreto, que costuma ser rigoroso na sua pontualidade
dominical, dei com o que segue, que tinha escapado às minhas buscas anteriores,
de um autor que admiro, no virtuosismo do seu estilo alinhado, seguindo conceitos
éticos que também me parecem alinhados, indispensáveis num mundo em
desagregação - caso as políticas de “sustentabilidade e resiliência” não tenham
efeito restaurador anti poluente (o que não quero crer, por amor das gerações
futuras, respeito pelas passadas e presentes, e por esta Terra que nos sustém, “leve
como uma andorinha”, mãe ou madrasta, mas sempre admirada e apetecida, até ver, pelo menos.
Uma excelente descrição do racismo,
conforme as ideologias dos que o descrevem: implacável na sua superioridade
rácica, se pertencer a uma direita abusadora e exploradora; desculpável na sua
condição humilhada, de transgressão convertida tantas vezes em puro terrorismo,
sendo este prontamente justificado por condicionalismos étnicos, por parte da
esquerda parcialmente generosa, na realidade, apenas instigadora de ódio e
destruição.
São assim, magistralmente
descritos, os «Ódios do tempo presente», em processo argumentativo de
alternância, de clareza e subtil ironia.
O segundo texto, de João Miguel Tavares, serve-lhe de exemplo
imediato, com a sua crónica arejada e intrépida sobre a nossa corrupção de
estimação, e sobre um cronista – Manuel de Oliveira - “cronista
que coloca o combate ideológico à frente de tudo, incluindo da honestidade
intelectual”.
Haveria pano para mangas para
comentar «Coisas que me dão a volta ao
estômago», mas o artigo de JMT será suficientemente explícito para uma
sociedade mergulhada em casus belli e de poluição.
I - Ódios do tempo presente
ANTÓNIO BARRETO
DN, 15/4/18
Chamam-lhes movimentos tribais. Reflexos ou populismo de tribo. Também há quem diga fanatismo e respectivas
hordas ou mesmo fanatismo nacionalista. Os mais específicos falarão de
supremacia branca, de racismo e de xenofobia. Eis umas tantas designações
correntes para estes fenómenos actuais ou ódios contemporâneos. Estes termos
parecem estranhamente empenhados em denunciar comportamentos brancos, de
preferência europeus e americanos. Todos eles com inimigos declarados: negros,
árabes, indianos e chineses e ainda uns acrescentos de muçulmanos, ciganos,
romenos e outros imigrantes.
Acontece que estes comportamentos e estes valores, reais e detestáveis,
não são únicos e são exactamente iguais a outros, simétricos e também
detestáveis, de negros, árabes e indianos, contra os brancos e mesmo uns contra
os outros. E todos se parecem com outros, não menos tribais, não menos
fanáticos e também totalmente detestáveis: os das claques desportivas, das
ideologias partidárias e dos ódios de classe...
Lamentavelmente, há sempre duas medidas. Se o racismo for dos brancos,
dos cristãos e dos europeus, não tem perdão. Se for dos negros, dos muçulmanos
e dos africanos, tem desculpas.
Se a xenofobia for prática corrente de brancos, europeus e cristãos,
trata-se de odiosa forma de estar no mundo, de despotismo de exploradores e de
intolerável egoísmo. Se for a rotina de negros, índios, indianos, chineses,
árabes e ciganos, são as reacções naturais de defesa e da dignidade.
Se o tribalismo for de partidos políticos ou de classes sociais, é forma
superior de consciência de classes e de empenho cívico. Mas se for de nação ou
região, é a deriva fascista e o populismo soberanista opressor.
Verdade é que os ódios do tempo presente têm estas formas de se
exprimir. Umas são desculpadas pelas modas, outras não, mas todas igualmente
destruidoras da razão. No
Parlamento, a ira, a falta de cortesia e a agressividade são semelhantes às que
se exprimem no estádio de futebol. Está em vigor o princípio segundo o qual o
radicalismo adversário é fonte de orgulho e de razão. Quando é exactamente o
contrário. A agressividade e a hostilidade adversária são estéreis,
destinadas a regimentar e não a fundamentar. Diz-se que a ruptura entre
esquerda e direita salva a democracia e clarifica argumentos. Nada mais
enganador. Em todos os momentos difíceis da vida de um país, foi necessário
fazer convergir esforços e razões. Na vida política e social da democracia, a
ruptura não é saudável. Quando acontece, vencem a revolução, o caos, a ditadura
e a corrupção.
São os reflexos condicionados que fazem que se julgue a corrupção com
dois pesos. Se
for da direita, da banca, das grandes famílias, das empresas e dos patrões,
é excelente ou inexistente para a direita, mas péssima e condenável para a
esquerda. Mas se for da esquerda, dos socialistas, dos comunistas e
aparentados, ou não existe ou tem perdão por ser popular, mas
péssima e pecaminosa para a direita. Ambas, esquerda e direita, consideram
que a única corrupção com direito à existência é a sua própria. Ambas só têm
olhos para a corrupção da outra.
Diz-se hoje que a corrupção é de classe e o terrorismo é político. Ora, cada vez mais se percebe que não têm
cor nem ideologia, que a esquerda é tão corrupta quanto a direita, que a
esquerda recorre tanto ao terrorismo quanto a direita. O terrorismo e a
corrupção já não têm ideologia, nem classe, nem política, nem filosofia, nem
desculpa! São os ódios do tempo presente. São os inimigos das liberdades e dos
direitos dos cidadãos.
Certos estilos de governo e alguns géneros de liderança são também
objectos destes dois pesos. Putin, Trump, Fujimori, Chávez, Maduro, Lula,
Berlusconi ou Sócrates: bons exemplos do modo como gestos iguais, estilos
semelhantes e métodos afins têm uma valoração moral e uma classificação
política muito diferentes. Na política, como na guerra. Ou como na banca e nos
estádios. O princípio é simples: os meus
favoritos podem mentir e roubar; podem enganar e trair; podem matar e destruir:
o que lhes peço é que sejam eficientes e destruam os adversários. E que o
árbitro não veja.
As minhas fotografias
ANTÓNIO BARRETO
Vendedor de fotografias no Chiado. Hoje, no Chiado, depois de longas
crises de despovoamento e declínio, há de tudo, movimento, música (às vezes
estridente e incómoda...), animação, bebidas, compras e turismo. Infelizmente,
já saíram muitas das lojas antigas e interessantes, substituídas agora por
comércios sem carácter, iguais aos do mundo inteiro. Este senhor encontrou um
nicho de mercado e instalou, ou antes, pendurou a sua loja em local que passou
a ser o dele. Arranjou maneira de reproduzir fotografias famosas, do bebedouro
de Joshua Benoliel a Madonna com máscara ou nua a pedir boleia. Há sempre por
ali turistas interessados. Mas o herói daquele comércio é sem dúvida
o carro eléctrico, "o amarelo" de Lisboa, o 28...
9
II- OPINIÃO
Coisas que me dão a volta ao estômago
Não se trata de averiguar
se um primeiro-ministro sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos
e Macedo), mas se os ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem
absolutamente nada do que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos
Silva ou Pedro Silva Pereira).
PÚBLICO, 12 de Maio de 2018
Estão a ver aquele
artigo de há dois dias onde eu argumentava que a estratégia da esquerda para
proteger o PS pós-socrático consistia em elencar todos os casos judiciais que
algum dia envolveram a direita, transformando o assalto à democracia de
2005-2011 num estimável passeio, apenas assombrado por duas ou três nuvens
cinzentas, tão corruptas como quaisquer outras, e cujo aparecimento ninguém
poderia prever? Daniel Oliveira teve a simpatia de demonstrar o meu
argumento nesse mesmo dia, num artigo no Expresso intitulado
“Vamos então à moralização”. Todas as comparações absurdas que eu
defendi que não poderiam ser feitas ele teve o cuidado de as fazer, ensaiando
até um paralelismo entre José Sócrates e Pedro Passos Coelho que merece ser
transformado em monumento, para que todos aqueles que estejam interessados – e
são com certeza muitos – em prestar tributo à desonestidade intelectual, ao
fanatismo ideológico e ao calculismo político tenham um sítio onde ir depositar
flores.
Para combater aquilo a que
ele chama “um movimento de moralização selectiva”, Daniel Oliveira decidiu
criticar a “criminalização política por associação”. Isto porque, segundo ele,
se a culpa política por associação for para ser “levada a sério”, “todos os
anteriores líderes de governo devem ser responsabilizados até às últimas
consequências por actos de ministros seus”. E vai daí, dentro daquela lógica
imbatível que permite comparar Vale e Azevedo com Ghandi porque ambos
são carecas, Daniel Oliveira escreve isto: “O que significa que
Passos Coelho está no banco dos réus políticos enquanto Miguel Macedo não for
absolvido. Proponho, com base nesta versão radical e inédita de
responsabilidade política, que todos os governos sejam passados a pente fino.”
Atenção: Oliveira
está alegadamente a ironizar. Ele acha que isto não se deve fazer. Mas como é
próprio da boa retórica, está precisamente a fazer o que diz que não deve ser
feito, na medida em que coloca Passos e Sócrates no mesmo patamar e inverte
a lógica do problema: não se trata de averiguar se um primeiro-ministro
sabe tudo o que fazem os seus ministros (caso de Passos e Macedo), mas se os
ministros mais próximos de um primeiro-ministro não sabem absolutamente nada do
que ele anda a fazer (caso de Sócrates, Augusto Santos Silva ou Pedro Silva
Pereira). Ora, como eu não tenho Daniel Oliveira na conta de idiota, até
porque o conheço, esta confusão não é acidental. Donde, terei de o colocar na
conta de “cronista que coloca o combate ideológico à frente de tudo,
incluindo da honestidade intelectual” – conta bem mais grave do que a da
idiotia, porque muito mais prejudicial ao debate público.
De Passos Coelho pode
obviamente dizer-se muita coisa. Que as políticas foram más. Que tinha amigos
duvidosos. Que o caso Tecnoforma é uma vergonha. Tudo isso é aceitável. Não foi
ele, com certeza, o primeiro político a nascer com um par de asas brancas nas
costas. Mas Passos escolheu Joana Marques Vidal, recuperou o prestígio do
Ministério Público, nunca interferiu com a Justiça (incluindo no caso Macedo) e
deixou cair Ricardo Salgado com estrondo. Isso já ninguém lhe tira – e esse é
um legado que qualquer pessoa deveria reconhecer, seja socialista, comunista ou
bloquista. É que isto não são opiniões. São factos. E andar a manipular factos,
ou a querer transformá-los em simples pontos de vista, significa apenas uma
coisa: Sócrates está morto, mas o seu legado continua excessivamente vivo.
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