quinta-feira, 3 de maio de 2018

O saldo



Rigor vs. subtileza, qual preferir? Tivéssemos nós mais rigor analítico, mais “esprit géométrique”, que provavelmente não teríamos deixado descambar a nossa sociedade num arrastar cada vez mais impune e cada vez mais volumoso de casos mais e vez mais escabrosos, mais e mais melindrosos, mais e mais indignos de uma sociedade de gente que se preze, espiritualmente falando. Não, não se trata, todavia, de “esprit de finesse”, intuitivo, estilo madame Ariadne Oliver, de um sexto sentido pretensamente e impantemente descobridor do criminoso (bastas vezes ironizado pelo rigor impecável de Hercule Poirot). Trata-se, sim, do nosso pendor fofoqueiro, mesquinho, mais interessado no aparato crítico e medíocre do escândalo revisteiro, destruidor ou fabricador de reputações, que uma educação estreita e permissiva desde sempre possibilita, e que generaliza a toda a sociedade uma característica que, ao que parece, sobre todos nós impende, já desde o “Sei que pareço um ladrão” do nosso malandro António Aleixo....
Mas, depois de ler os argumentos de Ricardo Costa, apesar dos considerandos de Vicente Jorge Silva, que primam pela decência e cavalheirismo “ancien regime”, deixo-me convencer, embora tivesse fugido a sete pés, aquando das tais reportagens da SIC.
Preguiça? Vergonha? Cansaço? Desinteresse? Sentimento de impotência perante o “já não vale a pena”, “somos todos da mesma massa”, como os espertos nos querem fazer crer, muito pessimistas e convenientemente dogmáticos? Leio Vicente Jorge Silva e concordo com os seus argumentos de ética e bom senso. Mas depois de ter lido a bem fundamentada defesa de Ricardo Costa, que sempre achei pessoa honesta e rigorosamente fundamentada, é por ele que me decido. É necessário arrancar o mal pela raiz. Para não continuarmos a saborear os jogos de palavras astutos e eficientes do nosso espertíssimo e rancoroso António Aleixo:
Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.
Quanta ingenuidade, todavia, na pretensão!...

 I- Isto não é jornalismo
É de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si.
VICENTE JORGE SILVA            PÚBLICO, 22 de Abril de 2018
Fui apanhado de surpresa e fiquei, depois, estupefacto, com a divulgação de vídeos de interrogatórios judiciais ou escutas telefónicas a José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e outras personagens da chamada Operação Marquês, num longo folhetim apresentado ao longo da semana pela SIC e SIC-Notícias. É certo que o conteúdo de alguns desses interrogatórios e escutas já fora tornado público por certos órgãos de informação, essencialmente ligados ao grupo Correio da Manhã, mas terá sido a primeira vez que isso aconteceu através de media considerados de referência – e, sobretudo, com uma amplitude e um tratamento dramático verdadeiramente inéditos, sob a responsabilidade editorial de jornalistas prestigiados como Ricardo Costa e Cândida Pinto.
O folhetim da SIC e SIC-Notícias não é uma telenovela – embora alguns dos seus efeitos pareçam inspirados na respectiva fórmula – e pretende apresentar-se como uma Grande Reportagem, que os dois canais gémeos exploraram até à exaustão, na íntegra ou em excertos. Ora, o que vimos só remotamente poderia inserir-se num género jornalístico, a não ser que o jornalismo se tivesse tornado um género subsidiário do Ministério Público ou instrumento da Acusação num processo ultra-mediatizado, convertendo-se numa telenovela triunfal nas guerras de audiências.
A partir do momento em que o telespectador percebe que tem acesso directo às inconfidências involuntárias de arguidos e testemunhas, montadas de forma apelativa e servidas paralelamente por uma bateria de efeitos especiais (gráficos, maquetas, pacotes de dinheiro a deslizar num tapete rolante, fuminhos a simular as cortinas de fumo dos actos de dissimulação dos acusados, filmagens com drones, figurantes e tutti quanti…), é quase impossível resistir aos apelos ao voyeurismo – numa palavra, à encenação. Porque é de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si. Em contrapartida, estamos perante um exemplo acabado da promiscuidade entre o poder judicial e o jornalismo populista, de sarjeta, embora servido com aparências sofisticadas e imaginativas de mise-en-scène.
Evidentemente, não faltará quem argumente que se trata de um serviço público, necessário para desmascarar os malandrins que agem na sombra e em estreita cumplicidade através das malhas secretas da corrupção entre os poderes político e económico. Que se trata de um exercício de higiene cívica para dissuadir os malfeitores, os megalómanos, os incuráveis narcisistas que são incapazes de resistir aos seus impulsos e paixões primárias. Só que não vale tudo. Se os julgamentos na praça pública substituírem os julgamentos nos tribunais – e isto com a cumplicidade culposa dos magistrados que temem pela solidez das suas investigações e dos seus libelos – estaremos a caminhar na direcção do populismo, não da justiça democrática. E, contrariamente às aparências, esta deriva aproveita aos alegados malfeitores para reclamarem o seu estatuto de vítimas de uma conspiração insidiosa e infamante contra o seu direito de defesa ou a sua honra e dignidade.
Na política, na justiça e no jornalismo não vale tudo – e daí a necessidade salutar de não existirem relações promíscuas entre cada um dos campos. A "judicialização" do jornalismo é nefasta quer para o jornalismo quer para a justiça. O jornalismo não pode confundir-se com um contrabando encenado da justiça porque isso, simplesmente, não é jornalismo.
II - OPINIÃO                     Isto não é não jornalismo.
 Por Ricardo Costa               EXPRESSO, 24.04.2018
Uma das decisões mais banais e corriqueiras do jornalismo assenta nas escolhas que se fazem no dia a dia. Que temas se abordam, que destaque se dá a este ou aquele assunto, que ângulos de abordagem se usam. São opções condicionadas por uma série de fatores - que vão do interesse e da novidade até questões tão básicas como o haver ou não jornalistas com tempo, meios e conhecimentos para o fazerem -, que estão e estarão na base de qualquer dia de trabalho numa redação.
Essa é a questão de partida para o atual discussão sobre os trabalhos que a SIC fez sobre a Operação Marquês, com a acusação concluída e, portanto, fora do âmbito do segredo de justiça. Perante a divulgação da acusação mais grave da nossa democracia, que cruza a maior falência bancária do pós-25 de Abril e o colapso da joia da coroa da bolsa portuguesa, o que devem os jornalistas fazer?
Não estou a perguntar o que deve a Justiça fazer nem o que devem os políticos fazer. A justiça deve correr o seu tempo, assente em várias fases processuais e em recursos fundamentais. A política, essa, deve fazer as escolhas que quiser, sendo que uma delas pode ser ignorar que um ex-primeiro-ministro está acusado de uma série de crimes gravíssimos, num processo que envolve o banqueiro privado mais relevante do nosso período democrático e alguns gestores idolatrados.
Se é claro que a justiça não tem de fazer escolhas e que a política se pode escudar nas regras da justiça para justificar as suas omissões, é igualmente claro que os jornalistas têm a obrigação de fazer escolhas. Uma das mais habituais é não fazer nada. Como me ensinaram há muitos anos, editar é escolher. Naturalmente, escolher não fazer nada é sempre uma opção.
Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade.
Mas não fazer nada de jeito, nada de relevante, nada de fundo sobre a Operação Marquês é mesmo uma opção jornalística? Deve mesmo tratar-se este caso como todos os outros ou como as questões do momento que vão e voltam? Ou, neste caso, é uma profunda e determinada opção de não jornalismo?
É mesmo uma opção editorial dedicar mais recursos e tempo a falar dos dramas do consumo do abacate ou do futuro da mobilidade urbana do que da Operação Marquês? A pergunta é demagógica e capciosa, porque qualquer jornal, site, rádio ou televisão fazem dezenas de escolhas diárias em paralelo e umas não anulam as outras. Mas a resposta não é demagógica nem capciosa: não, não deve ser opção editorial não dedicar um esforço sério a este caso. Infelizmente foi a de muitos jornalistas e redações, que se esconderam na confortável sombra de um manto que explica tanto o tempo da justiça como o silêncio tático da política.
Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes (...) é um erro gravíssimo considerar que este caso é apenas um assunto judicial. É judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo.
Quando, no final do ano passado, a acusação deste processo saiu tive necessidade de a ler. São quatro mil páginas, que todos os jornalistas das áreas de política, economia ou nacional deviam obrigatoriamente ler. Felizmente trabalho numa redação onde vários jornalistas se deram ao trabalho de a ler. Os que acompanham a Operação Marquês há anos e anos fizeram-no de forma sistemática e profissional. No fim dessa leitura, decidimos, em conjunto, que se deviam fazer várias reportagens que enquadrassem jornalisticamente o que ali estava, tal é a gravidade e dimensão daquele documento. Podia ser feito de várias maneiras, mas escolhemos três ângulos: as entregas de dinheiro, a casa de Paris e o saco azul do GES.
Acho estranho que muitos tenham preferido a não-escolha. Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes, reduziram este caso a um assunto judicial. Ora este é um erro gravíssimo, porque este caso é judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo. Não dedicar tempo e recursos a este caso é uma omissão jornalística que, na minha opinião, não tem perdão nem justificação.
Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos
Há um tempo para a justiça, há um tempo para a política (?) e há um tempo para o jornalismo. O tempo do jornalismo, neste caso, está a correr há alguns anos, e corre de forma urgente desde que a acusação foi produzida. Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos. Talvez, então, batam com a mão no peito e se encham de coragem para fazer de carro vassoura da 25ª hora . Boa sorte.
O trabalho da SIC levou quatro meses a fazer. A meio desse trabalho, um dos jornalistas envolvidos - e os três (Sara Antunes de Oliveira, Amélia Moura Ramos e Luís Garriapa) acompanham a Operação Marquês desde o início - teve acesso a material dos interrogatórios. Para quem não saiba, os interrogatórios são gravados em áudio há muitos anos e, entretanto, começaram a ser gravados em vídeo. Todos os advogados sabem isso; os que não sabem são incompetentes. Este argumento só não é inútil porque, espantosamente, alguns colegas meus resolveram desenterrar o argumento de que os acusados da Operação Marquês e os seus advogados não sabiam que estavam a ser filmados. Sabiam, mas isso é irrelevante para a questão de fundo.
O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante
Perante aquele material - que está nas mãos de dezenas e dezenas de pessoas ligadas ao processo -, tivemos várias discussões sobre se devíamos ou não usar alguma coisa e, em caso afirmativo, que critérios devíamos ter em conta. Convém explicar que a esmagadora maioria das frases relevantes - sejam as obtidas através de escuta, sejam as dos interrogatórios - já tinham sido divulgadas na acusação, que não está em segredo de justiça, ou em vários trabalhos de jornais e até da SIC. A questão que se colocava era, do ponto de vista jornalístico, a do uso da imagem e, consequentemente, do direito à imagem dos acusados num ambiente negativo, perante juízes de instrução, procuradores ou inspetores tributários.
O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante. Como o interesse não justifica tudo, decidimos que só devíamos usar frases fundamentais para a compreensão da investigação, expurgadas de qualquer coisa que fosse da esfera privada ou íntima, gratuita, jocosa ou acessória. As reportagens foram editadas e reeditadas tendo isso em conta, cruzando a opinião de várias pessoas. Além disso, decidimos usar apenas imagens de acusados (e não de arguidos ou testemunhas), exatamente porque este caso já tem uma acusação pública. Abrimos uma única exceção para Francisco Machado da Cruz, o contabilista que geria o saco azul do BES/GES, por considerarmos o seu testemunho fundamental à explicação da maior falência dos nossos tempos.
A mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça
Já sabia que o peso da imagem é desproporcionado no nosso espaço público, sobretudo junto das elites. Mas é estranho ver um jurista como João Taborda da Gama defender que ver pequenos excertos de interrogatórios é pornografia judicial, quando aquelas declarações já foram publicadas por escrito ou recriadas (com outras vozes ) em vários órgãos de comunicação social e não o fizeram corar. Ou seja, a pornografia é, aos seus olhos, um conceito que assenta na imagem - e não no conteúdo. Livros pornográficos, agora, só sem bonecos. Filmes pornográficos, tudo bem desde que sejam dobrados num espanhol lúbrico; no original é que não. Lido, até passa. Visto e a cores, faz corar. Pois, a mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça.
Isto não é jornalismo, escreveu Vicente Jorge Silva. É sim, Vicente. Isto é um reality show, sublinhou Vicente. Tem razão, mas o reality show não é o jornalismo, é a vida de José Sócrates. E é sobre esse reality show (que só não digo ser pornográfico para não acordar o Taborda da Gama que talvez tenha dentro de mim) que a SIC fez um trabalho jornalístico. É nesse equívoco profundo que assenta a análise de Vicente Jorge Silva. O objeto do trabalho, esse sim, era um reality show.
(...) só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos
Este jornalismo, Vicente, não é um reality show, como não é um pedaço de “cinéma verité” nem uma versão uncut. É jornalismo por estar editado, enquadrado e escolhido, expurgado do acessório, gratuito ou privado. Por ser feito por pessoas que acompanham o caso desde o início, jornalistas altamente especializados, que leram tudo o que existe no processo, que já falaram com os envolvidos, que sabem distinguir o trigo do joio, que fazem escolhas, que editam e enquadram. Que fazem reportagem na rua, que fizeram dezenas e dezenas de trabalhos sobre este caso, que têm fontes, que contam histórias. Esta história só é maior e mais feia do que as que o jornalismo hoje nos contam. O não jornalismo é o que muitos (não) fazem sobre um caso que conheces mal e devias conhecer melhor. Porque foste jornalista e porque, episodicamente, foste deputado. Preferes só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos.
A luta pela liberdade de imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar. A SIC fê-lo, preservando totalmente as testemunhas e arguidos irrelevantes (exceto o contabilista do GES/BES), focando-se nos acusados e usando apenas excertos que são centrais ao processo. Tudo isto num caso que foi (é) a maior ameaça à nossa democracia. Um primeiro-ministro acusado de corrupção passiva? Sim, é um caso extremo de defesa da democracia.
A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres
António Barreto não valoriza este ponto, achando que a justiça ou a política podem ser condicionadas por um trabalho destes, com traços excecionais. Não pode, a justiça seguirá o seu rumo, a política o seu ziguezague encadeado. António Barreto venceu um dos casos mais relevantes de direito à liberdade de expressão, contra o tenebroso Manuel Maria Carrilho. Fez bem em pisar o risco naquele artigo de opinião porque, ao ganhar o caso na justiça, mostrou o valor da liberdade da opinião. A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres.
Não é preciso ir à “Aeropagitica”, de Milton, nem a Stuart Mill para aprofundar este ponto. António Barreto conhece-os de cor. Podíamos ir a casos célebres ou antigos para ver onde se mexeu a fronteira entre o direito à imagem e à privacidade vs. liberdade de informação. Fico só nos mais recentes. Wikileaks, Snowden, Panama Papers, Malta Papers, Football Leaks. Algum documento foi obtido de forma legal? Quantos violavam sigilo fiscal, bancário ou mails privados? O wikileaks estava pejado de piadas de salão de diplomatas americanos sobre os países onde estavam colocados. Os casos recentes de pessoas pagas pelo saco azul do GES violam quantos direitos? Vários, mas em todos estes casos o direito à informação se sobrepôs e os jornalistas souberam usá-los com cuidado e rigor.
O meu amigo Pedro Marques Lopes resolveu, num arroubo adjetivo, dizer que o trabalho da SIC era nojento. Não, Pedro, não é nojento. Nojento é uma palavra que deve ser usada com cuidado. E neste processo todo já há protagonistas de sobra à altura do adjetivo que agora lanças ao vento. Uns pelo que fizeram, outros pelo que calaram, outros ainda pelo não jornalismo que deliberadamente fazem.
Isto não é não jornalismo. Como ex-gestor, Pedro, sabes seguramente que uma dupla negativa resulta num valor positivo. Como nunca foste jornalista, não percebes isso, muito menos as dúvidas que nos assolam ou o que nos move. Quando o caso fechar, juntar-te-ás aos arqueólogos, historiadores e jornalistas de última hora, vais ler os livros que se vão lançar e assistir aos colóquios que se vão fazer em todo o país sobre o caso do século. Eu estarei numa fila lá atrás, ao lado dos meus colegas que assinaram estes trabalhos enquanto esbracejavas indignado. Nessa hora deixaremos a pista aos outros, aos que só pisam terreno confortável. Terás lá o teu lugar e, estou certo, encontrarás um adjetivo à altura.
Este artigo é escrito na qualidade de diretor de informação da SIC

III- OPINIÃO       Isto não é jornalismo (2)
O jornalismo "útil" nestes tempos pouco propícios a estados de alma seria assim um jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que os jornalistas seriam uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys virtuosos disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou procuradores impolutos em cruzada contra os gangsters nos clássicos policiais desprovidos de subtilezas e ambiguidades.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 29 de Abril de 2018
Confesso que não fiquei tão estupefacto com a invocação do "interesse público" para justificar a divulgação das imagens e gravações de interrogatórios da chamada Operação Marquês como ficara com a Grande Reportagem da SIC onde essas imagens e gravações foram inseridas – e da qual constituem a espinha dorsal, ponto este que, fundamentalmente, me levou a escrever a crónica anterior, "Isto não é jornalismo".
Mas se já antecipara essas reacções, não previ que a argumentação apresentada por alguns dos seus autores fosse tão longe na demagogia e no processo de intenções contra aquilo que me parecia ser de uma evidência linear: que a investigação jornalística tem de ser independente, autónoma, aberta ao contraditório e não uma mera encenação subsidiária da investigação judicial, para além das convicções pessoais de cada um sobre a inocência ou culpabilidade das personagens envolvidas num processo (chamem-se eles Sócrates, Salgado, Bava, Granadeiro ou outros…). A partir do momento em que se instala a suspeição de vivermos num regime de corrupção política generalizada (ou, segundo a fórmula populista, "Todos corruptos!") e de que os ladrões da política e da banca não apenas ludibriam o Estado mas vão ao nosso bolso, tudo parece ser legítimo e defensável.
Assim, quem lembre que o jornalismo encenado e "colado" a uma acusação judicial não é jornalismo pode ser suspeito de vários pecados, veniais ou capitais: ligeireza, moleza, condescendência, "neutralidade", ou falta de integridade ética, de pactuar com trocas de favores ou estar ao serviço de interesses inconfessáveis, uma vez que para o "interesse público" quaisquer meios são bons para atingir os fins (ou seja, neste caso, divulgar vídeos e gravações judiciais para apanhar os corruptos em flagrante e podermos julgá-los em tempo útil e oportuno, na praça pública, e não no tempo sem fim dos tribunais).
O jornalismo "útil" nestes tempos pouco propícios a estados de alma seria assim um jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que os jornalistas seriam uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys virtuosos disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou procuradores impolutos em cruzada contra os gangsters nos clássicos policiais desprovidos de subtilezas e ambiguidades.
O caso de Manuel Pinho, divulgado esta semana, em que o antigo ministro da Economia foi acusado de receber avultados pagamentos do BES através de offshores enquanto estava no Governo não podia ser mais oportuno para os justiceiros – e a prova de que tinham razão –, quando, muito simplesmente, o que aqui está em causa é, para já, o silêncio ensurdecedor do ex-governante, a gravíssima falha ética e os crimes de dissimulação que lhe podem ser imputados.
Caros jornalistas, investiguem, pois, este e os demais casos de manifesto "interesse público" mas sem confundirem tal interesse com qualquer deriva justiceira, numa encenação inspirada em "Já chegámos ao Faroeste?". Essa deriva só aproveita, aliás, como já aqui escrevi, aos eventuais ou reais malfeitores.
PS – Lamento que São José Almeida, jornalista por quem tenho muito apreço pessoal e profissional, tenha precisado de invocar o seu título de presidente da Comissão de Deontologia do Sindicato dos Jornalistas para defender, a título pessoal, o "interesse público" da divulgação das imagens e gravações dos interrogatórios judiciais. São José tem todo o direito de ter a sua opinião mas não lhe fica bem recorrer a um estatuto de autoridade sem que, tanto quanto sei, a Comissão de que faz parte se tenha pronunciado sobre este caso (um silêncio, aliás, estranho). E bastava-lhe utilizar o seu espaço de opinião no PÚBLICO tal como eu utilizo o meu, dispensando um colega de redacção de a ouvir como fonte autorizada.

Alguns comentários
Anjo Caído do Outro Mundo 29.04.2018: Acho que é sempre demasiado puritanismo quando se fala de um caso de justiça. O mais das vezes, esse puritanismo serve para usar o véu da presunção de inocência para tapar corrupção e crimes de colarinho branco. Quem se indignou com notícias sobre Pedro Dias, mesmo antes de ele ter sido condenado a 25 anos de prisão? Mas em relação a Sócrates - alto lá, não se pode abrir a boca. Não tive o prazer de ver a "Grande Reportagem", mas se ela versa sobre um processo judicial, qual é o mal de usar imagens (obtidas sem qualquer violação do segredo de justiça) do processo? Porque é que isso é tão grave? Do pouquíssimo que vi, acho que realmente se reveste de interesse público. Ou então de interesse privado - o meu, como cidadão que também fui governada por um primeiro-ministro acusado de corrupção.
Jose   29.04.2018: A Justiça é da responsabilidade do Estado para erradicar a Justiça por mãos próprias, a Justiça popular que emerge em momentos de caos e barbárie. O exercício da Justiça é sempre uma violação das liberdades e um crime só tolerável quando a sociedade, à falta de outra solução o aceita como o mal menor e limite para a preservação da liberdade coletiva. É muito preocupante a avidez pela barbárie que estimula o gáudio popular e a sua irracionalidade. É preocupante cá, que caso for, como é preocupante em qualquer parte do mundo da Indonésia ao Brasil passando pela Espanha onde o terrorismo de Estado se faz passar por Justiça. O mal de usar imagens de pessoas a serem interrogadas é ser ilegal, violar o código penal, violar os direitos individuais dos visados que não autorizaram tais imagens e..
Jose   29.04.2018 : ... com a divulgação de tais imagens fazer uma narrativa popular que condena sem provas nem critérios peso, ponderação ou medida e ainda por cima evita, ou torna mais difícil, o real apuramento da verdade e a ponderada e séria formação da prova. O interesse público fica defraudado por restar, por último, apenas uma lenda sobre os crimes, nunca provados, e pior ainda à custa do crime de destruição de carácter por lapidação pública sem contraditório, sem direito de defesa, mas pelo exercício da barbaridade através da TV, estimular o gáudio popular, o populismo a barbárie em lugar da civilização.
António Cunha  29.04.2018: Talvez apenas 1% dos portugueses, no qual me insiro, tenha achado que a volúpia das imagens do ex primeiro ministro, mostradas em show televisivo não tenham dignificado ou respeitado nem o jornalismo, nem o respetivo código deontológico, nem a Constituição, possivelmente, nem os presumíveis prevaricadores. Devo, igualmente, pertencer ao pequeno grupo de pessoas que acha que a justiça está politizada. Como se explica que tantos exemplos de corruptos da direita que ainda não tenham levado carimbo judicial?! Andam à solta, livres nos seus negócios e negociatas, impunes, enquanto o mundo olha, 'oportunamente', para o único bode-expiatório. Subscrevo o texto sereno e objetivo de VJS.
DNG Lisboa 29.04.2018:   Portanto está à vista a superioridade ética e profissional do sr Ricardo Costa!
Jose 29.04.2018: Pois!
António Cunha 29.04.2018 : Ricardo Costa esteve muito, muito mal com o texto que publicou no Expresso.
Jose 29.04.2018 : Parabéns Vicente Jorge Silva. Nem tudo está perdido na defesa da Civilização contra a Barbárie. Duas semanas seguidas na mesma luta e, acredito, todas as que forem necessárias. Defender a liberdade coletiva exercendo a liberdade individual. Acompanho-o também no P.S. sobre o argumento de autoridade da São José. Deplorável e "não havia necessidade!"
Espectro  Matosinhos 29.04.2018: Quase estava tentado a escrever que jornalistas como o Senhor (sim, merece este tratamento por extenso e tudo) Vicente Jorge Silva já não há, mas admito o exagero e talvez ainda haja mais um ou outro. Não sou lambe-botas de ninguém, mas desde sempre que constato a honradez, a coragem, a preparação intelectual e deontológica de VJS. Um jornalista! LOL

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