Rigor vs. subtileza, qual
preferir? Tivéssemos nós mais rigor analítico, mais “esprit géométrique”,
que provavelmente não teríamos deixado descambar a nossa sociedade num arrastar
cada vez mais impune e cada vez mais volumoso de casos mais e vez mais
escabrosos, mais e mais melindrosos, mais e mais indignos de uma sociedade de
gente que se preze, espiritualmente falando. Não, não se trata, todavia, de “esprit
de finesse”, intuitivo, estilo madame Ariadne Oliver, de um sexto sentido pretensamente
e impantemente descobridor do criminoso (bastas vezes ironizado pelo rigor
impecável de Hercule Poirot). Trata-se, sim, do nosso pendor fofoqueiro,
mesquinho, mais interessado no aparato crítico e medíocre do escândalo revisteiro,
destruidor ou fabricador de reputações, que uma educação estreita e permissiva
desde sempre possibilita, e que generaliza a toda a sociedade uma característica
que, ao que parece, sobre todos nós impende, já desde o “Sei que pareço
um ladrão” do nosso malandro António Aleixo....
Mas, depois de ler os
argumentos de Ricardo Costa, apesar dos considerandos de Vicente
Jorge Silva, que primam pela decência e cavalheirismo “ancien regime”,
deixo-me convencer, embora tivesse fugido a sete pés, aquando das tais reportagens
da SIC.
Preguiça? Vergonha? Cansaço?
Desinteresse? Sentimento de impotência perante o “já não vale a pena”,
“somos todos da mesma massa”, como os espertos nos querem fazer crer, muito
pessimistas e convenientemente dogmáticos? Leio Vicente Jorge Silva
e concordo com os seus argumentos de ética e bom senso. Mas depois de ter lido a
bem fundamentada defesa de Ricardo Costa, que sempre achei pessoa
honesta e rigorosamente fundamentada, é por ele que me decido. É necessário arrancar
o mal pela raiz. Para não continuarmos a saborear os jogos de palavras astutos
e eficientes do nosso espertíssimo e rancoroso António Aleixo:
Sei que
pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.
Quanta ingenuidade, todavia, na pretensão!...
I- Isto não
é jornalismo
É de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação
sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma
genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas,
contraditórias e sem ligação entre si.
VICENTE JORGE SILVA PÚBLICO, 22 de Abril de 2018
Fui apanhado de surpresa e
fiquei, depois, estupefacto, com a divulgação de vídeos de interrogatórios
judiciais ou escutas telefónicas a José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava,
Henrique Granadeiro e outras personagens da chamada Operação Marquês, num longo folhetim apresentado ao
longo da semana pela SIC e SIC-Notícias. É certo que o conteúdo de alguns
desses interrogatórios e escutas já fora tornado público por certos órgãos de
informação, essencialmente ligados ao grupo Correio
da Manhã, mas terá sido a primeira vez que isso aconteceu através
de media considerados de
referência – e, sobretudo, com uma amplitude e um tratamento dramático
verdadeiramente inéditos, sob a responsabilidade editorial de jornalistas
prestigiados como Ricardo Costa e Cândida Pinto.
O folhetim da SIC e
SIC-Notícias não é uma telenovela – embora alguns dos seus efeitos pareçam
inspirados na respectiva fórmula – e pretende apresentar-se como uma Grande
Reportagem, que os dois canais gémeos exploraram até à exaustão, na íntegra ou
em excertos. Ora, o que vimos só remotamente poderia inserir-se num
género jornalístico, a não ser que o jornalismo se tivesse tornado um género
subsidiário do Ministério Público ou instrumento da Acusação num processo ultra-mediatizado,
convertendo-se numa telenovela triunfal nas guerras de audiências.
A partir do momento em
que o telespectador percebe que tem acesso directo às inconfidências
involuntárias de arguidos e testemunhas, montadas de forma apelativa e servidas
paralelamente por uma bateria de efeitos especiais (gráficos, maquetas, pacotes
de dinheiro a deslizar num tapete rolante, fuminhos a simular as cortinas de
fumo dos actos de dissimulação dos acusados, filmagens com drones, figurantes e tutti
quanti…), é quase impossível resistir aos apelos ao voyeurismo –
numa palavra, à encenação. Porque é de uma encenação que verdadeiramente se
trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o
libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente,
com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si. Em
contrapartida, estamos perante um exemplo acabado da promiscuidade entre o
poder judicial e o jornalismo populista, de sarjeta, embora servido com aparências
sofisticadas e imaginativas de mise-en-scène.
Evidentemente, não
faltará quem argumente que se trata de um serviço público, necessário para
desmascarar os malandrins que agem na sombra e em estreita cumplicidade através
das malhas secretas da corrupção entre os poderes político e económico. Que se
trata de um exercício de higiene cívica para dissuadir os malfeitores, os
megalómanos, os incuráveis narcisistas que são incapazes de resistir aos seus
impulsos e paixões primárias. Só que não vale tudo. Se os julgamentos
na praça pública substituírem os julgamentos nos tribunais – e isto com a
cumplicidade culposa dos magistrados que temem pela solidez das suas
investigações e dos seus libelos – estaremos a caminhar na direcção do
populismo, não da justiça democrática. E, contrariamente às aparências, esta
deriva aproveita aos alegados malfeitores para reclamarem o seu estatuto de
vítimas de uma conspiração insidiosa e infamante contra o seu direito de defesa
ou a sua honra e dignidade.
Na política, na justiça
e no jornalismo não vale tudo – e daí a necessidade salutar de não existirem
relações promíscuas entre cada um dos campos. A "judicialização" do
jornalismo é nefasta quer para o jornalismo quer para a justiça. O jornalismo
não pode confundir-se com um contrabando encenado da justiça porque isso,
simplesmente, não é jornalismo.
II - OPINIÃO Isto
não é não jornalismo.
Por Ricardo Costa EXPRESSO, 24.04.2018
Uma das decisões mais
banais e corriqueiras do jornalismo assenta nas escolhas que se fazem no dia a
dia. Que temas se abordam, que destaque se dá a este ou aquele assunto, que
ângulos de abordagem se usam. São opções condicionadas por uma série de fatores
- que vão do interesse e da novidade até questões tão básicas como o haver ou
não jornalistas com tempo, meios e conhecimentos para o fazerem -, que estão e
estarão na base de qualquer dia de trabalho numa redação.
Essa é a questão de
partida para o atual discussão sobre os trabalhos que a SIC fez sobre a
Operação Marquês, com a acusação concluída e, portanto, fora do âmbito do
segredo de justiça. Perante a divulgação da acusação mais grave
da nossa democracia, que cruza a maior falência bancária do pós-25 de Abril e o
colapso da joia da coroa da bolsa portuguesa, o que devem os jornalistas fazer?
Não estou a perguntar o
que deve a Justiça fazer nem o que devem os políticos fazer. A
justiça deve correr o seu tempo, assente em várias fases processuais e em
recursos fundamentais. A política, essa, deve fazer as escolhas que quiser,
sendo que uma delas pode ser ignorar que um ex-primeiro-ministro está acusado
de uma série de crimes gravíssimos, num processo que envolve o banqueiro
privado mais relevante do nosso período democrático e alguns gestores
idolatrados.
Se é claro que a justiça
não tem de fazer escolhas e que a política se pode escudar nas regras da
justiça para justificar as suas omissões, é igualmente claro que os jornalistas
têm a obrigação de fazer escolhas. Uma das mais habituais é não fazer nada.
Como me ensinaram há muitos anos, editar é escolher. Naturalmente, escolher não
fazer nada é sempre uma opção.
Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir
com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como
argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda
incompetência ou inutilidade.
Mas não fazer nada de
jeito, nada de relevante, nada de fundo sobre a Operação Marquês é mesmo uma
opção jornalística? Deve mesmo tratar-se este caso como todos os outros ou como
as questões do momento que vão e voltam? Ou, neste caso, é uma profunda e
determinada opção de não jornalismo?
É mesmo uma opção editorial
dedicar mais recursos e tempo a falar dos dramas do consumo do abacate ou do
futuro da mobilidade urbana do que da Operação Marquês? A pergunta é demagógica
e capciosa, porque qualquer jornal, site, rádio ou televisão fazem dezenas de
escolhas diárias em paralelo e umas não anulam as outras. Mas a resposta não
é demagógica nem capciosa: não, não deve ser opção editorial não dedicar um
esforço sério a este caso. Infelizmente foi a de muitos jornalistas e redações,
que se esconderam na confortável sombra de um manto que explica tanto o tempo
da justiça como o silêncio tático da política.
Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência
bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes (...) é um erro gravíssimo
considerar que este caso é apenas um assunto judicial. É judicial, é político,
é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os
jornalistas devem fazer jornalismo.
Quando, no final do ano
passado, a acusação deste processo saiu tive necessidade de a ler. São quatro
mil páginas, que todos os jornalistas das áreas de política, economia ou
nacional deviam obrigatoriamente ler. Felizmente trabalho numa redação onde
vários jornalistas se deram ao trabalho de a ler. Os que acompanham a Operação
Marquês há anos e anos fizeram-no de forma sistemática e profissional. No fim
dessa leitura, decidimos, em conjunto, que se deviam fazer várias reportagens
que enquadrassem jornalisticamente o que ali estava, tal é a gravidade e
dimensão daquele documento. Podia ser feito de várias maneiras, mas escolhemos
três ângulos: as entregas de dinheiro, a casa de Paris e o saco azul do GES.
Acho estranho que muitos
tenham preferido a não-escolha. Perante o caso judicial mais grave da nossa
democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes,
reduziram este caso a um assunto judicial. Ora este é um erro gravíssimo,
porque este caso é judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa
sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer
jornalismo. Não dedicar tempo e recursos a este caso é uma omissão jornalística
que, na minha opinião, não tem perdão nem justificação.
Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo
sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É
decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa
altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve
sempre à frente dos seus olhos
Há um tempo para a justiça,
há um tempo para a política (?) e há um tempo para o jornalismo. O tempo do
jornalismo, neste caso, está a correr há alguns anos, e corre de forma urgente
desde que a acusação foi produzida. Não dar aos leitores, espectadores ou
ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos
jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o
caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um
ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos. Talvez, então,
batam com a mão no peito e se encham de coragem para fazer de carro vassoura da
25ª hora . Boa sorte.
O trabalho da SIC levou
quatro meses a fazer. A meio desse trabalho, um dos jornalistas envolvidos - e
os três (Sara Antunes de Oliveira, Amélia Moura Ramos e Luís Garriapa)
acompanham a Operação Marquês desde o início - teve acesso a material dos
interrogatórios. Para quem não saiba, os interrogatórios são gravados em áudio
há muitos anos e, entretanto, começaram a ser gravados em vídeo. Todos os
advogados sabem isso; os que não sabem são incompetentes. Este argumento só não
é inútil porque, espantosamente, alguns colegas meus resolveram desenterrar
o argumento de que os acusados da Operação Marquês e os seus advogados não
sabiam que estavam a ser filmados. Sabiam, mas isso é irrelevante para a
questão de fundo.
O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito
à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o
interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente
na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante
Perante aquele material -
que está nas mãos de dezenas e dezenas de pessoas ligadas ao processo -,
tivemos várias discussões sobre se devíamos ou não usar alguma coisa e, em caso
afirmativo, que critérios devíamos ter em conta. Convém explicar que a
esmagadora maioria das frases relevantes - sejam as obtidas através de escuta,
sejam as dos interrogatórios - já tinham sido divulgadas na acusação, que não
está em segredo de justiça, ou em vários trabalhos de jornais e até da SIC. A
questão que se colocava era, do ponto de vista jornalístico, a do uso da imagem
e, consequentemente, do direito à imagem dos acusados num ambiente negativo,
perante juízes de instrução, procuradores ou inspetores tributários.
O direito à imagem é
fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por
vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público.
Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum
caso onde o interesse público seja mais relevante. Como o interesse não
justifica tudo, decidimos que só devíamos usar frases fundamentais para a
compreensão da investigação, expurgadas de qualquer coisa que fosse da esfera
privada ou íntima, gratuita, jocosa ou acessória. As reportagens foram editadas
e reeditadas tendo isso em conta, cruzando a opinião de várias pessoas. Além
disso, decidimos usar apenas imagens de acusados (e não de arguidos ou
testemunhas), exatamente porque este caso já tem uma acusação pública. Abrimos
uma única exceção para Francisco Machado da Cruz, o contabilista que geria o
saco azul do BES/GES, por considerarmos o seu testemunho fundamental à
explicação da maior falência dos nossos tempos.
A mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e
quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não
se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para
não atrapalhar a justiça
Já sabia que o peso
da imagem é desproporcionado no nosso espaço público, sobretudo junto das
elites. Mas é estranho ver um jurista como João Taborda da Gama defender que
ver pequenos excertos de interrogatórios é pornografia judicial, quando aquelas
declarações já foram publicadas por escrito ou recriadas (com outras vozes ) em
vários órgãos de comunicação social e não o fizeram corar. Ou seja, a
pornografia é, aos seus olhos, um conceito que assenta na imagem - e não no
conteúdo. Livros pornográficos, agora, só sem bonecos. Filmes pornográficos,
tudo bem desde que sejam dobrados num espanhol lúbrico; no original é que não.
Lido, até passa. Visto e a cores, faz corar. Pois, a mim, a Operação Marquês
fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa
democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao
retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça.
Isto não é jornalismo,
escreveu Vicente Jorge Silva. É sim, Vicente. Isto é um reality show, sublinhou
Vicente. Tem razão, mas o reality show não é o jornalismo, é a vida de José
Sócrates. E é sobre esse reality show (que só não digo ser pornográfico para
não acordar o Taborda da Gama que talvez tenha dentro de mim) que a SIC fez um
trabalho jornalístico. É nesse equívoco profundo que assenta a análise de
Vicente Jorge Silva. O objeto do trabalho, esse sim, era um reality show.
(...) só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma
opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos
Este jornalismo,
Vicente, não é um reality show, como não é um pedaço de “cinéma verité” nem uma
versão uncut. É jornalismo por estar editado, enquadrado e escolhido, expurgado
do acessório, gratuito ou privado. Por ser feito por pessoas que acompanham o
caso desde o início, jornalistas altamente especializados, que leram tudo o que
existe no processo, que já falaram com os envolvidos, que sabem distinguir o
trigo do joio, que fazem escolhas, que editam e enquadram. Que fazem reportagem
na rua, que fizeram dezenas e dezenas de trabalhos sobre este caso, que têm
fontes, que contam histórias. Esta história só é maior e mais feia do que as
que o jornalismo hoje nos contam. O não jornalismo é o que muitos (não) fazem
sobre um caso que conheces mal e devias conhecer melhor. Porque foste
jornalista e porque, episodicamente, foste deputado. Preferes só conhecer a
história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas.
Isso é para historiadores e arqueólogos.
A luta pela liberdade de
imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com
outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer
democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que
ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar. A SIC fê-lo,
preservando totalmente as testemunhas e arguidos irrelevantes (exceto o
contabilista do GES/BES), focando-se nos acusados e usando apenas excertos que
são centrais ao processo. Tudo isto num caso que foi (é) a maior ameaça à nossa
democracia. Um primeiro-ministro acusado de corrupção passiva? Sim, é um caso
extremo de defesa da democracia.
A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra
Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em
causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os
nossos deveres
António Barreto não
valoriza este ponto, achando que a justiça ou a política podem ser
condicionadas por um trabalho destes, com traços excecionais. Não pode, a
justiça seguirá o seu rumo, a política o seu ziguezague encadeado. António
Barreto venceu um dos casos mais relevantes de direito à liberdade de
expressão, contra o tenebroso Manuel Maria Carrilho. Fez bem em pisar o risco
naquele artigo de opinião porque, ao ganhar o caso na justiça, mostrou o valor
da liberdade da opinião. A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra
Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em
causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os
nossos deveres.
Não é preciso ir à
“Aeropagitica”, de Milton, nem a Stuart Mill para aprofundar este ponto.
António Barreto conhece-os de cor. Podíamos ir a casos célebres ou antigos para
ver onde se mexeu a fronteira entre o direito à imagem e à privacidade vs.
liberdade de informação. Fico só nos mais recentes. Wikileaks, Snowden, Panama
Papers, Malta Papers, Football Leaks. Algum documento foi obtido de forma
legal? Quantos violavam sigilo fiscal, bancário ou mails privados? O wikileaks
estava pejado de piadas de salão de diplomatas americanos sobre os países onde
estavam colocados. Os casos recentes de pessoas pagas pelo saco azul do GES
violam quantos direitos? Vários, mas em todos estes casos o direito à
informação se sobrepôs e os jornalistas souberam usá-los com cuidado e rigor.
O meu amigo Pedro
Marques Lopes resolveu, num arroubo adjetivo, dizer que o trabalho da SIC era
nojento. Não, Pedro, não é nojento. Nojento é uma palavra que deve ser usada
com cuidado. E neste processo todo já há protagonistas de sobra à altura do
adjetivo que agora lanças ao vento. Uns pelo que fizeram, outros pelo que calaram,
outros ainda pelo não jornalismo que deliberadamente fazem.
Isto não é não
jornalismo. Como ex-gestor, Pedro, sabes seguramente que uma dupla negativa
resulta num valor positivo. Como nunca foste jornalista, não percebes isso,
muito menos as dúvidas que nos assolam ou o que nos move. Quando o caso fechar,
juntar-te-ás aos arqueólogos, historiadores e jornalistas de última hora, vais
ler os livros que se vão lançar e assistir aos colóquios que se vão fazer em
todo o país sobre o caso do século. Eu estarei numa fila lá atrás, ao lado dos
meus colegas que assinaram estes trabalhos enquanto esbracejavas indignado.
Nessa hora deixaremos a pista aos outros, aos que só pisam terreno confortável.
Terás lá o teu lugar e, estou certo, encontrarás um adjetivo à altura.
Este artigo é escrito na qualidade de diretor de informação da SIC
III- OPINIÃO Isto não é
jornalismo (2)
O jornalismo "útil" nestes tempos pouco propícios a estados
de alma seria assim um jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que
os jornalistas seriam uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys
virtuosos disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou procuradores
impolutos em cruzada contra os gangsters nos clássicos policiais desprovidos de
subtilezas e ambiguidades.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 29 de Abril de
2018
Confesso que não fiquei tão
estupefacto com a invocação do "interesse público" para justificar a
divulgação das imagens e gravações de interrogatórios da chamada Operação Marquês como ficara com a Grande Reportagem
da SIC onde essas imagens e gravações foram inseridas – e da qual constituem a
espinha dorsal, ponto este que, fundamentalmente, me levou a escrever a crónica
anterior, "Isto não é jornalismo".
Mas se já antecipara
essas reacções, não previ que a argumentação apresentada por alguns dos seus
autores fosse tão longe na demagogia e no processo de intenções contra aquilo
que me parecia ser de uma evidência linear: que a investigação
jornalística tem de ser independente, autónoma, aberta ao contraditório e não
uma mera encenação subsidiária da investigação judicial, para além das
convicções pessoais de cada um sobre a inocência ou culpabilidade das
personagens envolvidas num processo (chamem-se eles Sócrates, Salgado, Bava,
Granadeiro ou outros…). A partir do momento em que se instala a suspeição de
vivermos num regime de corrupção política generalizada (ou, segundo a fórmula
populista, "Todos corruptos!") e de que os ladrões da política e da
banca não apenas ludibriam o Estado mas vão ao nosso bolso, tudo parece ser
legítimo e defensável.
Assim, quem lembre que o
jornalismo encenado e "colado" a uma acusação judicial não é
jornalismo pode ser suspeito de vários pecados, veniais ou capitais: ligeireza,
moleza, condescendência, "neutralidade", ou falta de integridade
ética, de pactuar com trocas de favores ou estar ao serviço de interesses
inconfessáveis, uma vez que para o "interesse público" quaisquer
meios são bons para atingir os fins (ou seja, neste caso, divulgar vídeos e
gravações judiciais para apanhar os corruptos em flagrante e podermos julgá-los
em tempo útil e oportuno, na praça pública, e não no tempo sem fim dos
tribunais).
O jornalismo
"útil" nestes tempos pouco propícios a estados de alma seria assim um
jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que os jornalistas seriam
uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys virtuosos
disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou
procuradores impolutos em cruzada contra os gangsters nos
clássicos policiais desprovidos de subtilezas e ambiguidades.
O caso de Manuel Pinho,
divulgado esta semana, em que o antigo ministro da Economia foi acusado de
receber avultados pagamentos do BES através de offshores enquanto
estava no Governo não podia ser mais oportuno para os justiceiros – e a prova
de que tinham razão –, quando, muito simplesmente, o que aqui está em causa é,
para já, o silêncio ensurdecedor do ex-governante, a gravíssima falha ética
e os crimes de dissimulação que lhe podem ser imputados.
Caros jornalistas,
investiguem, pois, este e os demais casos de manifesto "interesse
público" mas sem confundirem tal interesse com qualquer deriva justiceira,
numa encenação inspirada em "Já chegámos ao Faroeste?". Essa deriva
só aproveita, aliás, como já aqui escrevi, aos eventuais ou reais malfeitores.
PS – Lamento que São José
Almeida, jornalista por quem tenho muito apreço pessoal e profissional, tenha
precisado de invocar o seu título de presidente da Comissão de Deontologia do
Sindicato dos Jornalistas para defender, a título pessoal, o "interesse
público" da divulgação das imagens e gravações dos interrogatórios
judiciais. São José tem todo o direito de ter a sua opinião mas não lhe fica
bem recorrer a um estatuto de autoridade sem que, tanto quanto sei, a Comissão
de que faz parte se tenha pronunciado sobre este caso (um silêncio, aliás,
estranho). E bastava-lhe utilizar o seu espaço de opinião no PÚBLICO tal como
eu utilizo o meu, dispensando um colega de redacção de a ouvir como fonte
autorizada.
Alguns comentários
Anjo
Caído do Outro Mundo 29.04.2018: Acho
que é sempre demasiado puritanismo quando se fala de um caso de justiça. O mais
das vezes, esse puritanismo serve para usar o véu da presunção de inocência
para tapar corrupção e crimes de colarinho branco. Quem se indignou com
notícias sobre Pedro Dias, mesmo antes de ele ter sido condenado a 25 anos de
prisão? Mas em relação a Sócrates - alto lá, não se pode abrir a boca. Não tive
o prazer de ver a "Grande Reportagem", mas se ela versa sobre um
processo judicial, qual é o mal de usar imagens (obtidas sem qualquer violação
do segredo de justiça) do processo? Porque é que isso é tão grave? Do
pouquíssimo que vi, acho que realmente se reveste de interesse público. Ou
então de interesse privado - o meu, como cidadão que também fui governada por
um primeiro-ministro acusado de corrupção.
Jose 29.04.2018:
A Justiça é da responsabilidade do Estado
para erradicar a Justiça por mãos próprias, a Justiça popular que emerge em
momentos de caos e barbárie. O exercício da Justiça é sempre uma violação das
liberdades e um crime só tolerável quando a sociedade, à falta de outra solução
o aceita como o mal menor e limite para a preservação da liberdade coletiva. É
muito preocupante a avidez pela barbárie que estimula o gáudio popular e a sua
irracionalidade. É preocupante cá, que caso for, como é preocupante em qualquer
parte do mundo da Indonésia ao Brasil passando pela Espanha onde o terrorismo
de Estado se faz passar por Justiça. O mal de usar imagens de pessoas a serem
interrogadas é ser ilegal, violar o código penal, violar os direitos
individuais dos visados que não autorizaram tais imagens e..
Jose 29.04.2018 : ...
com a divulgação de tais imagens fazer uma narrativa popular que condena sem
provas nem critérios peso, ponderação ou medida e ainda por cima evita, ou
torna mais difícil, o real apuramento da verdade e a ponderada e séria formação
da prova. O interesse público
fica defraudado por restar, por último, apenas uma lenda sobre os crimes, nunca provados, e pior ainda à custa do crime de destruição de
carácter por lapidação pública sem contraditório, sem direito de defesa, mas
pelo exercício da barbaridade através da TV, estimular o gáudio popular, o
populismo a barbárie em lugar da civilização.
António
Cunha 29.04.2018: Talvez
apenas 1% dos portugueses, no qual me insiro, tenha achado que a volúpia das
imagens do ex primeiro ministro, mostradas em show televisivo não tenham
dignificado ou respeitado nem o jornalismo, nem o respetivo código
deontológico, nem a Constituição, possivelmente, nem os presumíveis
prevaricadores. Devo, igualmente, pertencer ao pequeno grupo de pessoas que
acha que a justiça está politizada. Como se explica que tantos exemplos de
corruptos da direita que ainda não tenham levado carimbo judicial?! Andam à
solta, livres nos seus negócios e negociatas, impunes, enquanto o mundo olha,
'oportunamente', para o único bode-expiatório. Subscrevo o texto sereno e
objetivo de VJS.
DNG Lisboa 29.04.2018: Portanto está à vista a superioridade ética e
profissional do sr Ricardo Costa!
António
Cunha 29.04.2018 : Ricardo Costa esteve
muito, muito mal com o texto que publicou no Expresso.
Jose 29.04.2018 : Parabéns
Vicente Jorge Silva. Nem tudo está perdido na defesa da Civilização contra a
Barbárie. Duas semanas seguidas na mesma luta e, acredito, todas as que forem
necessárias. Defender a liberdade coletiva exercendo a liberdade individual.
Acompanho-o também no P.S. sobre o argumento de autoridade da São José.
Deplorável e "não havia necessidade!"
Espectro Matosinhos 29.04.2018: Quase estava tentado a escrever que jornalistas como o
Senhor (sim, merece este tratamento por extenso e tudo) Vicente Jorge Silva já
não há, mas admito o exagero e talvez ainda haja mais um ou outro. Não sou
lambe-botas de ninguém, mas desde sempre que constato a honradez, a coragem, a
preparação intelectual e deontológica de VJS. Um jornalista! LOL
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