«O sublime e o horror. Três filmes, três monstros», um artigo
de Guilherme Valente, sobre três filmes , “O Regresso a Casa”
(Zhang Yimou), “O Concerto” (Radu Mihaileanu), “A Hora mais Negra”
(Jor Right), ao que parece, três excelentes filmes sobre épocas de atropelo e
indignidade, que, no seu encanto, projectam um clímax de emoção e mutismo de
assombro, no espírito do espectador, ou mutismo de horror e desejo de
esquecimento, pois que as épocas que esses filmes contextualizam, de absoluta iniquidade, são sublimadas em alguns que as viveram, não com histeria nem rancor,
como GV exemplifica, na referência ao seu amigo chinês, de Macau, vítima da "Revolução Cultural" chinesa, mas com delicada mudez, na sequência do conceito seguido no
texto: “O que é verdadeiramente importante é indizível, escreveu um letrado
chinês no século III a.C.”.
Também gostaria de os ver,
esses filmes, e talvez isso aconteça um dia, recostada no meu sofá, por conta
de uma Internet atenta à ventura espiritual dos seus usufruidores.
Para já, na questão dos
horrores, além de filmes específicos já vistos, sobre alguns desses contextos históricos e sociais,
colhidos na mesma via mediática, de que o mais recente é “O rapaz de pijama
às riscas”, poderei lembrar leituras de maravilha e repúdio, como “Cisnes Selvagens”, de Jung Chang, a respeito do tal
monstro repugnante, Mao, do 1º filme, jamais neste citado, mas objecto da nossa
aversão, na sequência da explicação de GV.
Relativamente ao Concerto
nº 1 de Tchaikovsky, tantas vezes escutado, na estação dos clássicos que
gostava de ouvir, lá em Moçambique, e que aqui também se ouve, quando se
procura, sobretudo na Internet, meio mais cómodo do que a manipulação dos discos ou DVDs das nossas ânsias de aperfeiçoamento aprazível - objectos inúteis
agora, e ocupando espaço - lembro “Les uns et les autres” e o seu “Bolero
de Ravel”, não como indizível, no seu efeito de repúdio e sobrevivência,
mas como espectacular, (na sequência da reconstrução das vidas que o nazismo
feriu), ou mesmo só o “Casablanca”, de tanta nobreza e beleza também,
até mesmo musical.
Quanto ao “Churchill” que tanto
se salientou pelo espírito de decisão e coragem patrióticas do seu “sangue,
suor e lágrimas”, volto a lembrar o tal “monstro” desse tempo, fortalecido por
doutrinas que lera, talvez em Nietzsche, de quem respigo, aqui e ali,
mensagens elegantes para criação dos tais monstros, no ódio que destilam pela
humanidade.
Assim, eis alguns passos
colhidos em “O Anti-Cristo”:
II- «O que é bom? – Tudo
quanto aumenta no homem o sentimento do poder, a vontade para o poder, o
próprio poder. O que é mau? Tudo quanto procede da fraqueza. O que é a
felicidade? – O sentimento com que o poder se engrandece, - com que se vence
uma resistência. “Não” contentamento, senão mais poder; não paz antes de tudo,
senão guerra; “não” virtude, senão valor, virtude (no estilo do renascimento; “virtu”,
virtude desprovida de impostura). Pereçam os fracos e os fracassados: primeiro
princípio do nosso amor ao homem. E até cumpre ajudá-los a desaparecer. O que é
mais nocivo do que qualquer vício? – A piedade da acção com os fracassados e
com os fracos: - o cristianismo…»
V- … ”Schopenhauer tinha
razão quando dizia: “A vida é negada pela piedade, esta torna-a ainda mais
digna de ser negada” – a piedade é a prática do nihilismo. Repitamo-lo uma vez
mais: este instinto depressivo e contagioso viola aqueles instintos que tendem
para a conservação e para o aumento do valor da vida; é “multiplicador” como “conservador”
de todas as misérias, um dos instrumentos principais para o aumento da “décadence”
– a piedade persuade ao nada!... Sabe-se que Aristóteles via na piedade um
estado enfermiço e perigoso, que se fazia bem em remediar de vez em quando por
meio de um purgante, e considerava a tragédia como purga. ….»
GV conclui o seu
texto: “Os que nunca mudaram de ideias nunca mudaram nada no mundo.”
Confúcio disse o mesmo no século IV a.C. “Só não mudam o homem mais inteligente
do mundo e os burros.”
E a “mudança” inteligente –
“piedosa”, segundo alguns, nestes nossos tempos de amor pelos fracos –
reflecte-se na contaminação, também, talvez, das ideias de Nietzsche,
encapotadas de doçura. Pratique-se, pois, a piedosa eutanásia,
como, dantes, o holocausto, ou os gulags tenebrosos do extermínio
poderoso e sem capote…
OPINIÃO
O sublime e o horror. Três filmes, três monstros
O que têm em comum O Regresso a Casa, O
Concerto e A Hora Mais Negra?
GUILHERME VALENTE
(para o meu Amigo Gary)
PÚBLICO, 24 de Abril de 2018
O branco na pintura, o
silêncio na música, o não-dito na poesia e na literatura são o acme da
expressividade na estética clássica chinesa. Ideia e recurso que seria
posteriormente teorizada e praticado no Ocidente.
O meu amigo Gary Negai é um
“letrado” chinês a quem a cultura portuguesa em Macau deve estar grata.
Para além da estatura intelectual (domina muitas línguas), Gary entra na
categoria de seres humanos que designo por santos laicos. Encarna o ideal ético
do espírito chinês, para o qual o saber não é um saber que se tem, mas um saber
que se é. Sofreu a Revolução Cultural. Mas não se vislumbra nele o mais leve
vestígio de humano ressentimento, rancor. Apenas uma lúcida inteligência
daquela realidade medonha.
Num jantar com a mulher na
nossa casa em Macau, disse-lhe: “Gary, nunca me falou desses dois anos
terríveis...”. Vi-lhe a face corar e senti o pé da senhora Ngai tocar-me no
sapato. O assunto nem podia ser aflorado. Uma violência e sofrimento
inexprimíveis, indizíveis. O que é verdadeiramente importante é indizível,
escreveu um letrado chinês no século III a.C.
Se o leitor quiser ver um
filme, a muitos títulos admirável – metáfora sobre a impossibilidade da
vivência partilhada do amor absoluto –, que transmite, sem gritos nem
retórica, a dimensão de horror indizível da Revolução Cultural, veja O Regresso a Casa. Horror e sofrimento que só o “não
dito” pode comunicar. Um filme sobre um monstro, Mao, que nunca é nomeado no
filme.
O
Concerto é um filme que se vê com divertido interesse. No
tempo de Brejnev, uma grande orquestra do Bolshoi é desmantelada, os músicos
proibidos de o serem, o maestro, por ter contratado músicos judeus, reduzido a
faxina do teatro. E a solista, uma grande violinista, enviada com o marido para
o gulag na Sibéria. Quando preparavam
obsessivamente a grande interpretação, muito aguardada, do Concerto n.º1 para Violino de Tchaikovsky.
O filme, como referi, é
divertido, com um happy end e um grand finale que faz estremecer: o Concerto tocado pela orquestra reconstituída no
exílio em Paris. Sem a solista, mas por ela...
Sempre que ouço esta peça
de Tchaikovsky, o que acontece com frequência porque a tenho gravada no
automóvel, não consigo deixar de “ver” a cena que vale, afinal, o filme todo: a
violinista judia, no campo de trabalho na Sibéria, a tocar o Concerto num violino imaginário, sem cordas, sem
som. Sem som? Nunca ouvi interpretação mais sublime da peça de Tchaikovsky, que
uma centelha de divino inspirou. Louca? Um filme sobre outro monstro. Mais uma
vez, o indizível dito pelo “não dito”.
O filme sobre Churchill
ainda nos cinemas, A Hora Mais Negra, é
outro filme sobre outro monstro. Uma dimensão de bestialidade e loucura que, todavia,
não é referida, não é descrita. Hitler, Churchill refere-o apenas como o louco,
o monstro. O que o filme transmite, com a história verdadeira e as excelentes
interpretações, é a intuição espantosa do primeiro político que percebeu a
natureza nova, singular, da besta, a novidade dessa aberração, desse sumo mal
que era imperativo parar. Mesmo que o combate estivesse antecipadamente
perdido, disse Churchill, dizendo tudo o que apenas sem ser dito poderia ser
comunicado, devia morrer-se a enfrentá-lo. Contra tudo e todos, contra a
posição até aparentemente mais sensata de negociar, Churchill levou o
Parlamento, a Inglaterra, a Europa, os EUA, o Mundo às costas para esse combate...
moral. E salvou a humanidade de um futuro inimaginável. Mais uma vez,
no não dito, o horror e outro monstro.
Três monstros, todos filhos
do mesmo pai. Numa das últimas cenas do filme, à saída do debate
triunfante no Parlamento, o assessor refere a mudança (que vibra...) do rei e
Churchill faz um comentário que só por si valeria o filme: “Os que nunca
mudaram de ideias nunca mudaram nada no mundo.” Confúcio disse o mesmo no
século IV a.C. “Só não mudam o homem mais inteligente do mundo e os burros.”
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