Isto disse o juiz a um tal
vendedor de panos a quem um tal advogado Pathelin, vivendo em penúria, comprou
umas onças de fazenda, com a promessa de lhe pagar em sua casa, oferecendo-lhe,
para mais, um bom almoço de gansa ou ganso que, porque denota fantasia, ficou
adstrito à expressão “contes de ma mère l’oie” que nós traduzimos por “contos
da carochinha” mas que poderíamos perfeitamente apelidar de “contos da minha
mãe pata”, para mais que também usamos a
expressão “cair que nem um patinho”, nas nossas relações públicas. De casta
inferior o nosso pato, são, contudo, ambos, pata ou gansa, da família dos
anatidae, segundo leio na Internet, embora o ganso tenda já para a marca cisne,
e foi, de resto ele que levou o minúsculo Nils Holgerson através da Suécia,
atrás do bando de gansos selvagens desafiantes, o que lhe dá indiscutível
superioridade animal sobre o nosso pato de cuá cuá roufenho. Mas, sem desvios,
o que se passou na farsa de Maître Pathelin, de autor desconhecido, mas obra
prima de cómico grotesco, com laivos superiores de cómico de carácter, do
século XV francês, foi que o logista, autêntico patinho na envolvência matreira
de Pathelin, embora ele próprio se julgasse matreiro ao vender mais caro o
pano, foi receber o seu pagamento a casa
do advogado, que, bem combinado com a mulher, tremendo na sua cama, fingiu um
delírio de moribundo, bastante disparatado, alternando com os pedidos
indignados do “drapier” e com as expressões de aflição e negação da compra, de
“Guillemette”, esposa condigna de Pathelin, com o seu refrão “parlez plus bas”,
para não acordar o coitadinho que no seu leito de moribundo se esvaía, havia
tempos. Outra cena, com o seu pastor que lhe rouba as ovelhas, levam o drapier
a citá-lo em tribunal. Agnelet, o pastor, procura Pathelin para o defender, o
qual lhe diz que a todas as perguntas do juiz responda balindo, num “mé” de
idiotia. Assim irá acontecer, mas o “drapier” reconhece, na audiência,
“Pathelin” como seu ladrão de panos e entaramela-se nas acusações que misturam
fazenda e carneiros, que fazem que o juiz, baralhado, aplique a expressão
tornada proverbial “revenons à ces moutons”, que nós traduzimos, sem motivo
etimológico reconhecido, por “vaca fria”: “voltemos à vaca fria”.
É a razão do meu título,
repeguemos nas questões, baralhemos, estupedifiquemos, repescando,
entretecendo, baralhando, retomando, sem porta de saída. Voltemos à vaca fria,
voltemos aos nossos carneiros, aos nossos casos, coisa de homens, já antiga, ao
que se vê, embora não seja nossa a farsa, que outras são as nossas farsas de
atropelo eficiente.
Ah! O juiz ilibou o pastor,
por se mostrar decididamente um pobre de espírito com o seu “mé” repontão. Mais
esperto do que todos, o pastor soltou o mesmo mé a Maître Pathelin, no acto de
ressarcimento dos honorários exigidos pelo advogado.
É o que se faz por cá,
finórios que somos, de mé més repontões, a cada sugestão de boas contas.
I - EUTANÁSIA
Deixem-me morrer com dignidade
OBSERVADOR, 10/5/2018,
Uma ação ou omissão que tenha como intenção aliviar o sofrimento, mesmo
que aproxime o momento da morte, não é eutanásia; é um ato médico no sentido
mais profundo do que é ser médico.
1. A vida não tem um
valor absoluto. Mais: a vida não é sequer o valor mais alto do ser humano. Pelo
menos na perspectiva de uma ética que se quer verdadeiramente humana. E, se
podemos fazer esta afirmação dentro do âmbito de uma “ética natural”, mais
ainda e com maior propriedade ela tem sentido no contexto de uma ética
religiosa. No campo da religião, a fé apresenta-se como um valor claramente
superior à vida. Que o digam os mártires de todas as religiões e, nomeadamente,
da religião cristã à qual pertenço. O próprio fundador desta religião afirmara
que o valor mais alto é dar a vida pelos amigos. E assim Ele próprio o fez.
Chegara mesmo a afirmar da sua própria vida: “Ninguém ma tira; sou Eu que a
ofereço livremente” (Jo 10, 18). Há, por isso, para o cristão, valores pelos
quais vale a pena morrer.
Mas não é necessário
professar uma religião para assumir que há valores mais altos do que a vida:
a honestidade, a honra, a integridade, a fidelidade, o amor, a dignidade são
valores comuns a todos os cidadãos. Sim, a dignidade. Peço a Deus que,
se algum dia tiver que decidir entre a vida e a dignidade, me dê força para
optar pela dignidade, pois sei bem que esta é um valor, em muito, superior
àquela. Quero morrer com dignidade!
2. Por isso, por
favor, quando eu estiver a morrer, não me ponham “ligado à máquina” a preços
exorbitantes, com tratamentos extraordinários e desproporcionados, para alongar
a minha vida mais uns dias. Se possível, dêem-me analgésicos e paliativos que
me tirem as dores e os sofrimentos, mesmo sabendo que, eventualmente, esse
procedimento pode abreviar o meu tempo de vida. Usem apenas meios que me possam
trazer algum benefício real, que possam ser aplicados sem dor e cujo custo seja
razoável. De resto, podem desligar tudo ou cessar outros tratamentos. Deixem-me
morrer em paz. Por favor, deixem-me morrer com dignidade!
3. Não troco a minha
autonomia por uma autossuficiência mascarada. Quero ser humano até ao fim, pois
sei que a dignidade está no facto de ser pessoa. O que é
verdadeiramente humano, essa é a questão que nos move. E aqui, o conceito de
autonomia pessoal ganha uma importância crucial. Para alguns, a fragilidade, a
debilidade, a dependência, a deformação física ou demência, a deficiência, a
dor, o sofrimento, podem conduzir à perda de autonomia e, nesse caso, a vida
perderia toda a dignidade. Mas não é a vida em abstrato que é digna; é a pessoa
humana que é digna. Por isso, enquanto for ser humano, é sempre digno!
Claro que a autonomia é
um valor essencial a salvaguardar. Mas, quando considerada como um valor
isolado, absolutiza-se e torna-nos menos humanos. O centro do mundo
passa a ser exclusivamente o nosso próprio eu, exaltamos a individualidade e
perdemos toda a noção de responsabilidade e de bem comum. E respeitar a
autonomia de alguém a este nível absoluto corresponde a isolá-la. Isto não é
respeito pela autonomia; tem outro nome: indiferença face à autossuficiência.
Diante de alguém que se defende dentro do muro da sua autossuficiência, mesmo
que doente, preferimos afastar-nos (tantas vezes por não sabermos lidar com a
pessoa) e tornar-nos indiferentes em vez de exigentes. E dizemos: “ele é que
sabe, é a sua vida, é a sua morte”. E, plenos de uma pena pelo coitadinho
mascarada de compaixão, afirmamos: “tem direito à sua última decisão”. Por
favor, defendam-me da minha autossuficiência. Ajudem-me a morrer com dignidade!
4. Finalmente, por
favor deem-me uma morte assistida. Melhor: uma morte acompanhada. Morrer
não é um momento; é um processo. Começamos a morrer desde que nascemos. Mas o
último suspiro deve ser uma experiência de grande solidão. Por isso, se for
possível não me deixem sozinho nesse momento. Sempre atenua a solidão do ato de
morrer. Vou-me conhecendo cada vez melhor e sei que de herói não tenho nada.
Que bom que era se morresse com amigos e família à minha volta. As relações são
tudo na vida. Haverá morte mais digna do que aquela que espelhe o que foi a
vida?
5. Convém deixar
explícito que a eutanásia não é a cessação de tratamentos extraordinários ou
desproporcionados. Isso é apenas deixar morrer. Tratamentos desproporcionados
são eticamente reprováveis. Morrer faz parte da vida, e deixar morrer
também. Mais, o uso de analgésicos e tratamentos que aliviem o
sofrimento, mesmo que abreviem o tempo de vida, são um bem. A intenção aqui
conta muito. A eutanásia é uma ação ou uma omissão que, na intenção, cause a
morte com o fim de suprimir o sofrimento. E não o contrário: uma ação ou
omissão que tenha como intenção aliviar o sofrimento, mesmo que aproxime o
momento da morte, não é eutanásia; é um ato médico no sentido mais profundo do
que é ser médico. Porque ser médico, mais do que tratar doenças, é tratar as
pessoas.
6. Por isso,
recusando-me a considerar que aqueles que são a favor da eutanásia são todos
assassinos, estúpidos ou más pessoas, apenas deixo aqui o meu testemunho do
desejo de viver com dignidade até ao fim. A eutanásia rouba-me a dignidade.
Porque a morte não é um assunto privado, só meu. Quando morre um pai ou uma
mãe, um irmão ou um filho, a mulher ou o marido, sabemos bem que essa morte não
é só daquele que morreu. Não é um assunto só seu. Nós não nos constituímos
acima de tudo como indivíduos, mas como parte de um grupo, de um corpo. Ao
contrário do que a aparência quer gritar, é a interdependência que existe entre
nós que nos torna verdadeiramente humanos. Diria mesmo que é a fragilidade
própria da nossa contingência que nos faz ser mais pessoas. Porque nos diz que
precisamos uns dos outros para sermos nós próprios. E isto não nos rouba a
autonomia, mas defende-nos da autossuficiência. Bendita fragilidade
humana que nos aproxima uns dos outros. As relações – não a aparência, não a
saúde, não a autonomia absoluta – tornam-nos mais humanos e, por isso, mais
dignos.
Portanto, unir a
escolha da própria morte à dignidade é uma falácia. Uma lei que defendesse esta
suposta “morte com dignidade”, estipularia que os doentes, pelo simples facto
de o serem, perdem toda a responsabilidade para com os outros e podem chegar ao
direito de nem sequer ter que notificar os amigos ou os parentes próximos para
tomarem a sua “última grande decisão”. Retirar todas as responsabilidades a uma
pessoa doente é considerá-la menos pessoa, é desrespeitá-la, inclusivamente
nessa autonomia que se diz querer defender. E, isso sim, é subtrair-lhe toda a
dignidade. Morrer com dignidade é ser responsável até ao fim.
Padre
jesuíta
II - CASO JOSÉ SÓCRATES
O orgulho e a
vergonha /premium
OBSERVADOR, 10/5/2018
A única forma de tornar a
tal “vergonha” credível é não pretender que ela pode conviver com o “orgulho”
da governação Sócrates. Até esse momento a posição oficial do PS só pode
suscitar incredulidade.
Uma epidemia de
sensibilidade percorre o PS. E não, não é a da habitual indignação altaneira
fundada na firme superioridade moral. A sensibilidade em questão manifesta-se
em paixões pouco habituais por aquelas plagas, como a vergonha, a vergonha por
José Sócrates se ter introduzido no seu seio e ter manchado a ancestral honra
do PS. É um pudor estranho, vindo de quem vem. Tanto mais que essa espécie de
virgindade surpreende porque, como dizia o outro, vem de pessoas que já
conhecemos muito bem antes de serem virgens. Aliás, houve uma altura não muito
longínqua em que a libertinagem, por assim dizer, era a regra.
Claro que tudo isto é
pura encenação que não engana ninguém. A manobra táctica para anular um
peso inconveniente antes das eleições é patente. Mas a famosa habilidade de
António Costa (que ecoa, de resto, célebre “espertice” de José Sócrates)
encontra aqui mais uma oportunidade de encantar os admiradores. A coisa é
cosida com fio grosso, a artificialidade dos sentimentos é óbvia. Mas quanto
mais óbvia a simulação, mais facilmente ela passa. Só há uma coisa
necessária para simular assim a vergonha: falta de vergonha. Admito que num
ou noutro caso, nas periferias do PS, a falta de vergonha não seja o ingrediente
originário e seja necessário imaginar no fundamento desta rejeição tardia de
Sócrates algo de mais profundo e eventualmente mais patológico. Mas no caso do
PS a falta de vergonha basta. De resto, não funcionou ela muito bem com o
próprio Sócrates? A falta de vergonha não seduziu por muito tempo o PS, desde
que este, para nossa desgraça, abraçou por inteiro os “espertos”, e agora os
“hábeis”?
Não vale a pena perder
muito tempo a epilogar sobre tudo o que foi escrito sobre esta matéria e que
representa, no conjunto, o que qualquer cidadão que não viva noutra galáxia
pensa espontaneamente. Nada do que o PS disse a várias vozes, de Carlos
César ao histriónico João Galamba, é sério ou para levar a sério. Aquela gente
vive num universo em que a conveniência política, definida em termos que
pertencem estritamente ao jogo que entre si praticam, traz consigo quase
inevitavelmente o desprezo pelo entendimento comum e pelas condutas de boa-fé.
Consequência directa dessa atitude são, por exemplo, os fogos do ano passado e
a trapalhada que se anuncia para este ano. A esperteza e a habilidade têm
coisas destas.
Mas se não vale a pena
discorrer mais sobre o assunto, há algo sobre o qual faz provavelmente sentido
reflectir. Imaginemos que José Sócrates é, de facto, como tudo parece indicar,
o personagem que reúne em si todas as condições para inspirar o presente horror
do PS. E imaginemos que, com a excepção de Manuel Pinho, os seus governos eram
formados por gente sem sombra de comportamento repreensível nestas coisas. Imaginemos
também – é uma suposição necessária – que nenhuma dessa gente por um só segundo
suspeitou, ao longo desse demorado convívio, de nada de estranho em Sócrates e
por isso, com a ajuda prestimosa de, entre outros, Pinto Monteiro e Noronha de
Nascimento, sempre o defendeu de todas as suspeitas públicas com vigorosa
virtude. Por mais problemática que seja esta última suposição, a verdade é que,
a aceitá-la em conjunto com as outras duas, a actual posição do PS é
formalmente defensável. A habilidade de Costa continua a ser isso, uma
habilidade, mas formalmente justificada.
Pensemos, no entanto,
noutro aspecto. No que me toca, e partilho essa experiência com muita gente, o
que a partir de uma certa altura me assustou em Sócrates, vário tempo antes da
sua fatídica reeleição, pouco ou nada tinha a ver com as suspeitas de
corrupção, mas estritamente com as suas políticas catastróficas, que nos viriam
a conduzir direitinho para o abismo. Mesmo no que respeita à corrupção e a
outros crimes sortidos, o que me fazia impressão e medo era a extraordinária
máquina de apoio e protecção com que Sócrates contava na justiça e noutros
lugares, uma máquina tão poderosa e omnipresente que levou um dia Paulo Rangel
a cunhar com acerto a expressão “asfixia democrática”. Mas em primeiro
lugar eram as políticas em si que patentemente anunciavam a catástrofe
iminente.
Agora, a questão:
quem, entre a recente legião de sensíveis envergonhados, que, a começar pelo
actual primeiro-ministro, transitaram dos governos Sócrates para o de António
Costa, se levantou para dizer o óbvio? Que se saiba, ninguém. Virgens numa
matéria, a da corrupção, serão, e até inocentes de qualquer suspeita, mesmo que
isso nos obrigue a supor neles uma quase idiotia a roçar a oligofrenia, que
parece ser contradita por uma aparente inteligência e verbo fácil. Mas virgens
em matéria de acordo com as mais irracionais – e irracionais a olho nu e
desprevenido – políticas praticadas por Sócrates certamente não são. Dir-se-á
que confundir políticas discutíveis (é um eufemismo) com a grave
matéria da corrupção releva da ignorância ou da má-fé. Mas não estou a
fazer confusão nenhuma. Distingo muito bem uma coisa da outra. Limito-me a
dizer que há políticas que são catastróficas para além de qualquer dúvida
razoável. E que pactuar com elas e, com cara de pau, continuar a insistir na
sua justeza (não foi o legado político de José Sócrates um legado que suscita
“orgulho”, nas palavras de Carlos César?), anula por inteiro as proclamações de
“vergonha”.
Se me permitisse um conselho
às pessoas que no PS procuram refundar um partido saudável, ele seria: não
procurem uma solução esquizofrénica que, por um passe de mágica, faça com que
as duas faces da mesma moeda pertençam a moedas diferentes. Não funciona: é
mais uma habilidade que, mais cedo ou mais tarde, se pagará caro. A única
maneira de tornar a tal “vergonha” credível é não pretender que ela pode
conviver com o “orgulho”. Até essa admissão, a posição oficial do PS só pode
suscitar incredulidade. E, em momentos de maior sensibilidade (todos temos
direito a eles), nojo e desprezo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário