Dois artigos de António Bagão Félix, o mais recente, sobre
um assunto que vai estar na ordem do dia, como ameaça sobre um povo
desvitalizado a quem a cobardia há muito rege, (salvo a coragem do atacar na
sombra – do grupo ou do anonimato) assunto que se retoma por pertencer a uma
mente suficientemente humana e digna que nos serve de lição. Li alguns
comentários a si feitos, no texto sobre a eutanásia, e mais uma vez encontrei
gente cuja desaprovação se limita à grosseria das invectivas despeitadas, como
a de chamar “avozinho” a quem lhes é muito superior em inteligência e
disciplina, para já não utilizar a Ética, fundamental na definição de “Ser
Humano”, posta em causa pelos actuais seres do pseudo progresso, que não querem
saber de humanidade para nada, os quais, em perfeita emancipação progressista, mais e mais se reflectem nas leis que gerem o
resto da SELVA, ou seja, na clareza dos instintos, sem peias e sem
susceptibilidades de escrúpulos ou vergonhas que se disse distinguirem os seres
racionais, que, para mais, articulam os sons, em argumentos a acompanhar os
pensamentos, contrariamente aos da selva, que não articulam e se limitam às
respectivas vozes e ruídos dos seus apetites ou indignações de poder ou dor.
Mas o “avozinho” Bagão
Félix não se comove com a pretensa desfeita. Apresenta os seus argumentos
de racionalidade, próprios da sua qualidade humana, e, para mais, de calibre
superior, tanto na questão da eutanásia como na questão das línguas
e as suas traves-mestras, com a competência e sanidade mental e a
subtil ironia do costume. Só que, hélas! o seu saber e inteligência e, mais
ainda, a sua ironia, não atingem os tais da harmonia silvícola, ou, de
preferência, selvícola, de ruído e instinto e de rugido específico.
I - OPINIÃO
Eutanásia: um modo totalitário travestido de
liberdade
PÚBLICO, 25 de Maio de 2018
Não há mal de que provenha bem (São Paulo,
Carta aos Romanos)
Volto às iniciativas legislativas sobre a legalização da eutanásia que,
na próxima semana, vão ser discutidas na Assembleia da República.
Diz o artigo 24º nº 1 da Constituição da República Portuguesa: “A vida humana é inviolável”. Disposição votada por unanimidade na
Assembleia Constituinte e jamais alterada nas sucessivas revisões
constitucionais.
É caso para perguntar aos deputados proponentes qual destas palavras é
que não entendem: VIDA? HUMANA? INVIOLÁVEL? Quanto a este último vocábulo, dizem os dicionários
que significa “que não se deve ou não se pode violar”, “sagrado”,
“invulnerável”. Há dúvidas? Quanto à vida humana, será que a vida de uma
pessoa, mesmo que em situação de grande dor e sofrimento, deixou de ser vida?
Ou que passaremos a ter a noção de vida humana, não como um conceito absoluto,
mas moldável e relativizado com fronteira (?) definida pelo mutável e
circunstancial direito positivo? Será que os deputados proponentes acham que se
podem arrogar o direito de definir por nós todos o que sendo vida pode deixar
de ter valor de vida, qual algoritmo infalível? Curiosamente foi este bem
soberano da lei natural – a vida - que muitos dos mesmos deputados
invocaram na discussão da legislação sobre o aborto, dizendo então que até às x
semanas (x em função das conveniências) não se tratava ainda de vida, para,
assim, disfarçarem a violação daquele preceito constitucional. Pois agora, nem
essa enganosa argumentação colhe. Vida é vida, mesmo que em circunstâncias
dramáticas. Vida é vida que não pode ser terminada legalizando a morte através
de terceiros e por actos ditos clínicos.
E porquê tanta pressa em querer aprovar estes projectos? Onde estavam
estas intenções nos propósitos eleitorais dos partidos proponentes nas últimas
eleições? Como, numa matéria tão sensível e disruptiva, podem deputados fazer
aprovar uma lei para a qual não foram mandatados democraticamente? Ou será que
eutanásia não sufragada nos seus programas partidários é o mesmo que uma
qualquer outra lei avulsa sobre um qualquer outro tema? Ou será que a
insuficiência ética pode ser substituída pela suficiência jurídica, como se o
direito positivo pudesse contrapor-se ao direito natural? Acharão os deputados
proponentes que podem legiferar sem sequer se terem preocupado em proporcionar um
amplo debate sobre a matéria? Acharão que as pessoas estão esclarecidas
devidamente e que sabem distinguir, por exemplo, a eutanásia de legitimas
práticas de “encarniçamento terapêutico”?
Dizem-nos que o Estado apenas se limitaria a
salvaguardar a sua neutralidade (!) em nome dos direitos de liberdade e de
autonomia individuais. Uma completa falácia. A eutanásia não representa um
exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade. O direito
à morte é tão absurdo como dizer que temos o “direito à doença”, no entanto,
com a diferença da irreversibilidade no primeiro caso. O Estado, ao permitir a
prática da eutanásia, está a decretar que o direito à vida é disponível e
renunciável. Onde paramos?
Dizem-nos também que a pessoa a eutanasiar tem de dar o seu
consentimento livre e consciente. O homicídio a pedido não deixa de ser
homicídio por ser autorizado e pedido por uma pessoa. A inviolabilidade da vida
humana não cessa com o consentimento do seu titular. Aliás, a anuência nunca
será, só por si, condição suficiente para justificar situações de violação dos
direitos humanos inalienáveis da pessoa. Por exemplo, a escravatura é sempre um
vil e inaceitável atentado à dignidade da pessoa, mesmo que alguém a possa ter
aceitado em situações de coacção. Tal como outras formas ignóbeis de exploração
do trabalho.
Hoje e cada vez mais, há meios clínicos e farmacológicos para, através
de cuidados paliativos, aliviar situações extremadas de dor e sofrimento, mesmo
que assim sendo até se venha a diminuir o tempo restante de vida do doente. Não
se compreende que com o ineludível e crescente avanço nesta matéria, se venha a
querer legalizar a eutanásia. Ela nunca se justificaria, mas ao menos é lógico
pensar que alguém a pudesse melhor compreender há décadas quando quase não
havia meios de cuidar e ajudar as pessoas em situações extremas.
Perante esta realidade a
mensagem perversa que se está a transmitir à Sociedade é a de que a legalização
da eutanásia é um meio alternativo e, sub-repticiamente, se está a deixar
construir a ideia de um Estado-Pôncio Pilatos que, da escassez de meios
paliativos, lava as suas mãos. O que é mais conforme a dignidade da pessoa: uma
“morte digna” provocada por via da eutanásia ou um “fim de vida digno” em nome
da ética de cuidar?
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, perante a dor e sofrimento, a
prioridade das prioridades deverá ser o desenvolvimento de uma rede alargada de
tratamento da dor, de cuidados geriátricos e continuados e de cuidados
paliativos. Sim, alargada até para estar disponível para os mais pobres, os
mais sós e as pessoas que vivem fora dos grandes centros (que já sofrem no
corpo e na alma a “eutanásia social” a que vão sendo sujeitos). A legalização da eutanásia contribuiria para
esbater a consciência social da necessidade e urgência de criar uma verdadeira
rede. Transmite-se a ideia de que, face ao “fardo” da velhice e da doença e aos
nunca resolvidos défices do sistema público de saúde, para quê gastar tantos recursos
com doentes terminais quando o tempo final das suas vidas pode ser encurtado.
Importa alertar para a rampa deslizante que se
seguiu, abastarda e levianamente, em alguns dos poucos países que legalizaram a
prática de eutanásia. Neles, tudo começou com muitas restrições. Mas hoje, na
Holanda, Bélgica e Suíça (aqui apenas no “suicídio assistido”), já há muitos
casos abrangendo derivas eugénicas com bebés e crianças com deficiências
graves, adultos com grave deficiência, doentes psiquiátricos (para 25% destes,
os pareceres dos médicos psiquiatras não foram sequer no sentido de justificar
o pedido de eutanásia) e outros doentes por pressão subtil de familiares. E já
se discute até o direito à eutanásia por cansaço de viver!
Enfim, certa esquerda (cá e lá fora) sabendo
que não é capaz de proteger e aprofundar os direitos sociais como sempre
proclamou, vira-se para criar pretensos direitos de cidadania, mais baratos ou
sem custo, mediaticamente mais apelativos e para os quais bastam uma lei e umas
assinaturas. A legalização da eutanásia é um desses apregoados direitos. Uma
expressão neototalitária através de um relativismo ético pelo qual cada desejo
se arrisca a transformar num direito. Neste caso, através de terceiros a quem
se pede que a tal direito não contraponham o seu dever e a sua deontologia!
Estamos perante um retrocesso
civilizacional e o perigo de desestruturar a sociedade no seu pilar
fundamental. Atrasados em tantos aspectos da nossa vida colectiva, queremos ser
pioneiros nesta insondável cultura da morte, apresentada eufemisticamente como
avanço social. É a nossa triste dianteira!
P.S. O Primeiro-ministro de
Portugal não quis dizer na AR qual a sua posição sobre a eutanásia, apesar de
sempre nos brindar com a sua opinião sobre todas as minudências. Pura arte de
fazer política…
II - OPINIÃO
O inglês… mesmo que sem acordos ortográficos
Na Eurovisão tivemos a busca efémera do sucesso a sobrepor-se à
soberania da língua. Sinal dos tempos...
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 18 de Maio de 2018
Lisboa recebeu o Festival
da Eurovisão 2018. Fê-lo com inegável brilho. Não costumo acompanhar, em
detalhe, estes eventos. Porém, desta vez, e por ser cá, fi-lo mais de perto.
Anotei a hegemonia da língua inglesa, mesmo num concurso por países. Senão vejamos:
num total de 42 países, cantaram em inglês 28 (incluindo Rússia e Alemanha!),
embora só em três seja a primeira língua (Reino Unido, Irlanda e Austrália). Os
países que se exprimiram na sua língua oficial foram quase todos do Sul da
Europa e de influência mediterrânica: além de Portugal, França, Itália,
Espanha, Grécia, Albânia, Sérvia, Montenegro, Eslovénia, a que se juntaram
Arménia, Geórgia, Hungria. Enfim, a busca efémera do sucesso a sobrepor-se à
soberania da língua. Sinal dos tempos...
Apesar de ser apenas o
terceiro idioma em número de falantes nativos (cerca de 380 milhões de pessoas,
atrás do chinês mandarim e do espanhol), o inglês deixou de ser uma
"linguagem inglesa" para ser global. É a língua franca da
globalização, uma espécie de latim hodierno.
Começou por ser a primeira
língua de expansão colonial. Hoje é o idioma base da informática, tecnologias,
gestão, economia, negócios, Internet e redes sociais, telecomunicações,
ciência, comércio internacional, diplomacia, aviação, medicina, entretenimento.
E também de um pretenso elitismo profissional de “Zeinal
Bavas”, para ver quem mais não consegue dizer em português o que em
inglês exprime majestaticamente.
As jovens gerações são cada
vez mais educadas na expressão generalizada do bilinguismo: a língua materna e
inglês.
Na Internet, o inglês
ultrapassa mesmo as línguas faladas na China, sendo Portugal aqui o 5.º idioma
mais representado:
Curiosamente, com a
consumação do "Brexit", o inglês fica numa posição algo estranha. Só
a Irlanda, e vá lá, Malta, o terão como idioma oficial, ainda que a par do
gaélico e do maltês.
A União Europeia tem 24
línguas oficiais e de trabalho: cinco românicas (português, francês, espanhol,
italiano e romeno), cinco germânicas (inglês, alemão, neerlandês, sueco e
dinamarquês), oito eslavas (polaco, checo, eslovaco, búlgaro, lituano, letão,
croata e esloveno), três fino-úgricas (húngaro, finlandês e estoniano), uma
céltica (gaélico irlandês), uma helénica (grego) e uma semita próxima do árabe,
mas escrita em caracteres latinos (maltês).
Se a estes 24 idiomas
oficiais juntarmos outras expressões com algum peso histórico, étnico, político
ou regional, a “torre de Babel” ainda mais se complica. Citando apenas algumas
das mais conhecidas: catalão e galês (consideradas línguas co-oficiais), corso,
sardo, bretão, gaélico escocês, basco, luxemburguês, albanês, língua cigana
(romani).
Com a saída do Reino
Unido, só quatro línguas se repetirão: o alemão (Alemanha e Áustria), o francês
(França, Bélgica na Valónia e Luxemburgo), o neerlandês (Holanda e Bélgica na
Flandres) e o grego (Grécia e Chipre).
Por curiosidade, em termos
populacionais, o “pódio linguístico” da União passará a ser o seguinte: em 1.º
lugar, o alemão (90 milhões de pessoas), em 2.º lugar, o francês (72 milhões) e
em 3.º lugar, o italiano (61 milhões). O inglês, representado apenas (e
parcialmente) pela Irlanda e Malta, surge em 18.º lugar (4,5 milhões)!
Segundo o sitio da União
Europeia, há nos serviços da Comissão cerca de 1750 linguistas e 600 membros de
pessoal de apoio, 600 intérpretes a tempo inteiro e 3000 intérpretes externos.
Feitas as contas, os possíveis arranjos entre as línguas, para efeitos de
tradução e de interpretação, são 552!
Lembro-me de, em algumas
reuniões em que participei, como no Ecofin, a diferença de tempo entre a
intervenção original e a tradução (às vezes, imperfeita, senão mesmo errada)
ser longuíssima e de muito se perder nesse ínterim. Por exemplo, passar de
lituano para português ou de finlandês para grego implica passar por uma língua
intermédia (em geral, o inglês) para, por fim, chegar ao destino dos
receptores.
A pluralidade e diversidade
linguísticas na União são uma riqueza, ao mesmo tempo que ainda constituem uma
barreira para o seu entrosamento. Talvez a solução esteja na imagem das faces
do poliedro dada pelo Papa Francisco: “a união de todas as parcialidades que, na
unidade, mantém a originalidade das parcialidades individuais. Nele (poliedro),
nada se dissolve, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra.”
Bom seria que, na União
Europeia, houvesse uma efectiva política linguística que, embora admitindo a
hegemonia do idioma inglês, não transformasse todas as outras em meras
adjacências linguísticas.
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