Não, não tem nada a ver com os
assuntos da nossa lavra, mas lembrei-me de “Cem anos de Solidão”, livro
bem extraordinário de mito e real, em que as personagens sobressaem no seu
primitivismo de criação e força anímica, num ritmo lento e circular, mas
progressivo, com origem no casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, os
fundadores de Macondo e o seu estuante pulsar de vida e de fantasia e inocência
de preconceito, ao longo das várias gerações dos Buendía, a que o cigano
Melquíades dará o seu contributo de progresso com as invenções do mundo lá de
fora, logo adoptadas, como coisa de requinte, pelo primeiro Buendía. Não, não
tem nada a ver, a não ser na solidão de um mundo que se repete, o nosso, joguete
das suas forças próprias, não já de crendice e fantasia, mas de ambição ou
torpeza, e pobreza espiritual, esta mais do povo, que a tendência para a piedade
própria faz arrastar pelas vias do sacrifício devoto, de crença no milagre e
reconhecimento pela sua concessão, nos caminhos da nossa fatídica peregrinação,
habilmente estimulada pelos nossos Buendías de ocasião. Nada a ver, pois, com a
tal força estuante das personagens mais ou menos grotescas da epopeia colombiana,
nos cem anos de uma solidão heróica e bíblica, mas igualmente solidão, a nossa,
no desespero pela repetição das nossas tradições de uma corrupção que já nenhum
Melquíades poderá debelar, por muito evoluídas que sejam as suas novidades tecnológicas,
impotente que é, na rede da trapaça e do logro da incultura, nosso apanágio.
Mas bem hajam os que se desvelam
ainda, a salientar as nossas artes e manhas infindáveis, nos jornais cultores de
opiniões, por muito escassos que sejam os seus resultados. Bem haja Alberto Gonçalves pela sua graça mordaz, alimentadora
semanal da nossa continuidade menos depressiva, bem haja Luís Rosa, relembrando a nossa dependência
humilhada em face da prepotência angolana, nosso destino hoje, como era de
prever.
SPORTING
Portugal, terra de fé /premium
OBSERVADOR, 19/5/19
Após a desilusão com um
ex-governante, inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com
um dirigente da bola. É a nossa tradição de seguir fervorosamente determinadas
fraudes.
Após a desilusão com um
ex-governante, inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com
um dirigente da bola. Há nisto o respeito por diversas tradições pátrias. A
tradição de seguir fervorosamente determinadas fraudes. A tradição de reagir
com ameaças e fúria aos avisos de que a fraude é obviamente uma fraude. A
tradição de admitir a fraude, de repente e com anos de atraso. Como o bêbado
que, já na cama do hospital, tenta travar para não bater no poste, o
discernimento dos portugueses raramente falha: demora é uma eternidade a chegar.
Também é ridículo
presumir que as pessoas veneram qualquer fraude: só as demasiado evidentes. Os
profetas duvidosos não são connosco. Preferimos profetas espalhafatosamente
toscos, ou fancaria autenticada. Se um tipo com ar vagamente alucinado,
gramática deficitária, promessas épicas e conversa fiada irrompe na cena
pública, muitos contemplam o espectáculo e decidem que, sim senhor, está ali
alguém a ter em conta. Quando, em dez minutos, se torna notório que o tipo é um
rematado trafulha, a adoração e as ofensas aos descrentes aumentam em proporção
directa. Quando, além da trafulhice, o tipo acentua os vestígios de loucura, os
fiéis encontram-se capazes de morrer por ele, e sobretudo de matar por ele. Na
fase em que o tipo começa a descer o Chiado vestido de Napoleão, embora troque
o exílio em Elba por uma conta em Barbados, o séquito entra em transe
espiritual.
Um dia, pouco antes de
ingerir o cianeto que o profeta generosamente providenciou, dá-se uma epifania
colectiva, o culto abre os olhos e percebe que fora enganado por um reles
farsante. Desalentados, e sem pingo de vergonha, os membros do culto percorrem
a via sacra das televisões, dos jornais e do Facebook a confessar o logro em
que, coitadinhos, caíram. Por um triz não pedem indemnizações por danos morais.
As características dos
profetas caseiros, que depois de longa reverência frequentemente desce
ao carisma da lepra, incluem um vasto rol de qualidades: são
desonestos nas contas, falsos na palavra, escorregadios no carácter, egocêntricos,
avessos à dissidência, convictos, teimosos, ignorantes, infantis, incapazes de
empatia e capazes de, no aperto, arrastar com eles o que existir em redor – o
termo técnico é doidos perigosos. Às vezes, acumulam as qualidades todas;
às vezes, só algumas. Quanto às características dos fiéis, o espectro é
reduzido: ou são inacreditavelmente oportunistas ou inacreditavelmente
idiotas. Donde a tendência para os fiéis saltitarem entre profetas. Em
geral, mal terminam de ser ludibriados por um (ou uma dúzia), atiram-se para o
seguinte (ou seguintes) com alma lavada e cara-de-pau. O seguinte, mais um
maluco sem escrúpulos, é que é o tal e quem disser o contrário arderá nos
infernos.
O engraçado não é que a
História de Portugal, na política, na diplomacia, na universidade, na economia,
no futebol, na filatelia e no que calha, seja uma sucessão irrepreensível de
crenças assim. O engraçado é que continua a ser. Em Maio
de 2018, época em que, suponho, restam escassos devotos do “eng.” Sócrates e do
sr. Bruno, não escasseia o convencimento de que outros pantomineiros possuem as
aptidões adequadas a conduzir-nos rumo à felicidade, ainda que os factos
sugiram o exacto oposto. Dois ou três desses espécimes apareceram em ambos os
apedrejamentos recentes, e, embora apeteça sonhar com o deles, pressente-se que
não vale a pena: por morrer um intrujão, não acaba Portugal. Aliás, o problema
é esse.
Notas de rodapé
1. Face aos
acontecimentos de Alcochete ou Alfragide, o dr. Costa tomou as providências
devidas e anunciou uma Autoridade Contra a Violência no Desporto. Em primeiro
lugar, fica claro que quando um gangue invade propriedade alheia e comete
espancamentos, o exercício é de carácter desportivo (excepto, como
lembrou o meu amigo Hélder Ferreira, se o gangue for de “etnia” cigana e
a propriedade um hospital: nesse caso o assunto nem chega a ser violento nem é
assunto). Em segundo lugar, saúda-se que finalmente haja punições
para a barbárie no sector, lacuna legal que até aqui permitia a relativa
impunidade de quem matava adeptos com petardos, automóveis ou penáltis
transviados. Em terceiro lugar, espera-se que os castigos se
estendam aos populistas em cargos públicos que condenam a selvajaria da bola e
de seguida assistem a jogos ao lado dos respectivos responsáveis. Certo é que o
dr. Costa esteve impecável.
2. Uma consequência
positiva do drama “sportinguista” é a exclusividade informativa, que
retirou das notícias as “reportagens” sobre a embaixada americana em Jerusalém
e a má vontade israelita em não se deixar exterminar pelos seus indefesos
vizinhos. Aquilo é gente ruim. Como lembrava Serge Gainsbourg, quem afundou
o Titanic foi Iceberg – sempre um judeu.
3. Virar a página da
austeridade é um processo complexo e permanente. Implica, por exemplo, subir a
cada semana o preço dos combustíveis, além de aumentar outros impostos
conhecidos e criar alguns novinhos em folha. É curioso que a receita para o
sucesso se confunda tanto com um fracasso – e um roubo sem precedentes.
Felizmente, é para isso que existem os “media”: para evitar confusões.
Uma “irritante” falta de espinha direita /premium
OBSERVADOR, 14/5/2018
Para um país em que a
corrupção é combatida sem tréguas, deixar que lhe dobrem a espinha não é uma
hipótese em cima da mesa. Foi isso que Angola tentou fazer a Portugal no caso
Manuel Vicente.
1. Estava escrito nas estrelas que o caso Manuel
Vicente tinha de acabar como acabou: a transferência para Angola das suspeitas
de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais imputadas pelo
Ministério Público ao ex-presidente da Sonangol.
Era inevitável pela
pressão diplomática absurda que o novo presidente angolano João Lourenço
exerceu sobre Portugal por causa de um aliado político chamado Manuel Vicente.
Era inevitável pela forma como o Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de
Sousa e o primeiro-ministro (PM) António Costa não recusaram desde logo tais
jogos de pressão — pelo contrário, aceitaram entrar no jogo de Lourenço. E era
inevitável porque a nossa classe política é incapaz de ter uma relação com
Angola que não tenha como ponto de partida a subordinação total e absoluta dos
valores do Estado de Direito Democrático aos interesses económicos conjunturais
de uma relação com um regime que já foi uma Ditadura e que hoje é uma espécie
de semi-democracia.
Mas não tinha de ser
assim.
Começando pelo fim. É
lamentável a forma subserviente como Marcelo e Costa felicitaram
a decisão judicial poucos minutos depois de a mesma ser conhecida.
Pior: Marcelo, sempre
mais exuberante (para o bem e para o mal), não só correu para o telefone para
agendar uma conversa com João Lourenço conversa com João Lourenço para o dia seguinte, como aderiu mesmo à
classificação de “irritante” (da autoria do ministro dos Negócios Estrangeiros
Santos Silva) para classificar de forma indireta as suspeitas de que Manuel
Vicente, enquanto presidente da Sonangol, terá pago 760 mil euros a um
procurador da República para arquivar dois inquéritos abertos contra si por
suspeitas de branqueamento de capitais na compra de diversos imóveis.
Em suma, o PR e o PM não
conseguiram esconder o seu alívio por uma decisão judicial que vai de encontro
ao objetivo inicial do poder político: evitar que a Justiça portuguesa
prosseguisse o seu trabalho, com o Ministério Público a exercer a ação penal
que lhe compete e os tribunais a julgarem as suspeitas que estavam em causa
contra Manuel Vicente.
E é lamentável por três
razões simples:
Em Portugal, e ao
contrário de Angola, vigora o princípio da separação de poderes. Princípio esse
que foi sempre invocado por Marcelo e por Costa para não se pronunciarem sobre
o caso Manuel Vicente. É pena que não tenham mantido a sua coerência até ao
final — nem que fosse apenas por uma questão formal e de imagem do Estado e até
que a Procuradoria-Geral da República confirmasse que não havia possibilidade
de recurso;
Ao comentarem, como
comentaram, o tal “irritante”, o Presidente da República e o primeiro-ministro
estão a desvalorizar as graves suspeitas de que um cidadão estrangeiro (Manuel
Vicente) terá alegadamente corrompido um magistrado português. Na prática, o
Chefe de Estado e o líder do poder executivo estão a dizer aos seus concidadãos
(e à Justiça) que as suspeitas de corrupção não podem ser encaradas da mesma forma
quando estão em causa figuras poderosas estrangeiras.
Em suma, Marcelo e Costa
estão a dizer: a Justiça não é igual para todos.
2. Este posicionamento do poder político ao mais
alto nível só pode agravar o pessimismo com que muitos cidadãos encaram a atitude
do regime português perante a gravidade das imputações da Operação Marquês e as
consequências do caso Manuel Pinho revelado pelo Observador.
É totalmente
contraditório o PS declarar o estado geral de vergonha perante o caso José
Sócrates, a classe política em peso arrasar com o independente Manuel Pinho por
ter recebido cerca de 15 mil euros mensais de um dos principais grupos
empresariais portugueses enquanto foi ministro da Economia e muitos desses
novos indignados ficarem aliviados por o desembargador Cláudio Ximenes ter entendido
que a transferência do caso Manuel Vicente para Luanda é a melhor solução para
o arguido.
Estes dois pesos e duas
medidas não fazem sentido — e demonstram igualmente o nível de oportunismo das
elites portuguesas, nomeadamente daqueles que têm muitos interesses nos
negócios com Angola.
Não está em causa as boas
relações (que devem sempre existir) entre Portugal e Angola ou a proximidade
entre os povos e as economias. Está em causa, sim, um conjunto de valores que
Portugal, enquanto Estado-membro da União Europeia, não pode abandonar. E entre
eles está um combate sem tréguas à corrupção, à fraude fiscal e ao branqueamento
de capitais — particularmente, se estiverem em causa representantes do
poder político como alegados autores de tais ilícitos.
Infelizmente, não foi
este o sinal dado pelo Presidente Marcelo, pelo
primeiro-ministro António Costa e até pelo líder da
oposição Rui
Rio. Para manter boas relações com Estados
amigos como Angola, não é preciso uma tremenda e “irritante” falta de espinha
política por parte dos mais altos dignatários do Estado português. Ou melhor:
deixarem que nos dobrem a espinha não pode ser uma hipótese em cima da mesa.
3. Mas João Lourenço, o homem que prometeu
uma “cruzada contra a corrupção, também não sai nada
bem deste filme.
O novo presidente angolano
resolveu dar a mão a um gestor que tinha caído em desgraça junto de José
Eduardo dos Santos. Presidente da Sonangol entre 1999 e 2012, Vicente
modernizou a empresa pública que gere os recursos petrolíferos do país, foi
indigitado sucessor de Eduardo dos Santos como vice-presidente de Angola em
2012 mas acabou por perder influência junto do clã Dos Santos. Detentor
de muitos segredos sobre a indústria petrolífera
angolana, foi com surpresa que se soube em Portugal que
Manuel Vicente terá feito parte da comitiva que João Lourenço levou em janeiro
para Davos para o Fórum Económico Mundial — e onde António Costa promoveu um
encontro com Lourenço.
Tudo seria normal se João
Lourenço tivesse seguido o rumo de José Eduardo dos Santos — o que não
aconteceu. Em nome da tal “cruzada contra a corrupção”, demitiu os filhos do
seu antecessor das posições-chave que ocupavam na economia angolana, afastou do
seu inner circlegenerais como Kopelipa
e Dino que representam a promiscuidade entre o Estado e o setor privado e passou
a defender mais transparência para a vida pública angolana.
Este homem, contudo, é o
mesmo que utilizou todos os instrumentos diplomáticos ao seu dispor para
promover o arquivamento de suspeitas graves de corrupção, fraude fiscal e
branqueamento de capitais imputadas a Manuel Vicente. É que, não tenhamos
dúvidas, as suspeitas contra Vicente vão ser arquivadas em Angola pouco tempo
depois de ‘aterrarem’ em Luanda.
Porquê? Porque a existência
de uma aministia de todos os crimes económicos que são imputados a Vicente
impede que a ação penal seja prosseguida contra o ex-presidente da Sonangol. E
sim, caro leitor, leu bem: o ex-presidente José Eduardo dos Santos aprovou uma
amnistia geral dos crimes de corrupção, fraude fiscal, branqueamento de
capitais e de outro tipos de crimes com a exceção dos crimes de sangue.
Que credibilidade terá,
a partir do mais do que provável arquivamento do caso Manuel Vicente em Angola,
a “cruzada contra a corrupção” de João Lourenço? Não será esse um indício forte
de que em Angola apenas está em causa a substituição de uma clique por outra? O
futuro dirá.
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