Vi o filme, «O Labirinto da Saudade», um
filme sobre o pensamento e o sentimento de Eduardo Lourenço que a RTP mostrou ontem. Um filme sobre Eduardo
Lourenço, protagonizado por ele próprio e seus amigos, pessoas gradas da
nossa política e cultura, que, naturalmente nele figuram como puras marionetes
destinadas a destacar o pensamento e o sentimento do Homem e do escritor sábio,
que nele actua também como marionete, em suposta despedida de uma vida cheia de
estudo e realização, que o sentimento pátrio parece dominar, e o torna, por
isso, simpático ao nosso parecer, que, para mais, lhe admira o pensamento de
seriedade.
Visto que a morte é coisa certa, decidiu, pois, o cineasta Miguel
Gonçalves Mendes, em homenagem a Eduardo Lourenço, ensaísta de
pensamento elaborado e sério, a, ficcionalmente, o pôr a percorrer, não só as
puerilidades ou os desajustes duma vida aparentemente já próxima do seu términus
- com que, aliás, termina, na mistificação final da subida das escadas do
paraíso - como a explorar, através de encontros pontuais que o texto seguinte
refere, como, em exemplo, o seu posicionamento em relação à escravatura ou ao
sentimento de mágoa dos brasileiros, por serem filhos de portugueses e não de
outros povos conquistadores mais poderosos intelectualmente, e mais robustos e
socialmente mais equipados, forma de repegar em temas do nosso prazer mórbido, de
complexo de inferioridade, como esse do racismo – como se tivéssemos sido os mais
cruéis - destacando uma vez mais as penúrias do nosso próprio autodesprezo,
feito da consciência constante de um pecado de humildade e humilhação habilmente insinuados e contrastando com o
orgulho do tal pioneirismo pátrio no mundo.
Notícias do filme e seus intervenientes, transcrevo-as a seguir, em textos
do Público e da Ípsilon, obtidos na Internet.
Eu apenas refiro uma opinião, naturalmente subjectiva, sobre um certo
espírito de exibicionismo glorificador, que
predomina na ficção criada – em duas semanas, ao que parece - e reduz um homem a
evocações ou breves passagens de vida assentes na mulher amada, já morta e
imprescindível, qual Beatriz de Dante, ou na transferência para breves
encontros com figuras contestatárias, que aclaram – ou não – o seu próprio
pensamento, ou outros breves encontros – com Ramalho Eanes e Jorge
Sampaio, figuras inertes, inacessíveis à compreensão estrangeira, só para português
entender, pois - ou mesmo Lídia Jorge, intermediária, qual pitonisa aclarando
o destino, perante as dúvidas do sábio. E os ruídos do caos imaginário, já que
tudo se passa no pensamento daquele, mais assimilando o universo da acção deste
filme ao dos filmes da ficção infantil, labirínticos e ruidosos.
Gil Vicente já nos brindara com a Trilogia das Barcas, este filme parece
um pouco na mesma linha de homenagem aos “Bons” – os “Grandes do Mundo” que
vemos merecerem a Glória, no “Auto da Barca da Glória”, da alegoria vicentina.
Mas é uma opinião subjectiva, eu também não admirei a canção do Salvador
Sobral e ela ganhou o festival. Será que, se lá fossem as “Ninfas do Atlântico”,
que me encheram as medidas, estas teriam ganho?
I TEXTO
Um grupo de amigos de Eduardo Lourenço, que incluiu Ramalho Eanes, José
Carlos Vasconcelos, Pilar del Río e o general Luís Sequeira, decidiu promover a
realização de um filme que celebrasse a vida e a obra do ensaísta, mas que
funcionasse também como instrumento de divulgação do seu pensamento. O resultado é O Labirinto da Saudade,
um filme de Miguel Gonçalves Mendes que a RTP1 exibe esta
quarta-feira à noite, pelas 21h00, assinalado o 95º aniversário de
Eduardo Lourenço, e que chega no dia seguinte a várias salas do país.
Realizador de Autografia (2004), sobre Mário Cesariny, e
de José e Pilar (2011), dedicado a Saramago e Pilar del Río, Miguel Gonçalves Mendes está habituado a trabalhar sem pressas.
“Demorei três anos a fazer o filme do Cesariny, e com o Saramago foram quatro”,
diz o cineasta. “Isto foi uma experiência completamente nova: teve de ser
tudo filmado em 13 dias.” Uma das consequências de lidar com prazos
apertados foi ter de alterar o seu método habitual de trabalho, que geralmente
dispensa uma excessiva planificação prévia: “Aqui tive mesmo de escrever um
argumento, porque tinha os dias contados.”
O filme abre com a voz off de Lourenço a explicar que nasceu a
23 de Maio de 1923, mas que só foi registado no dia 29. “De modo que estive
seis dias fora do tempo, e assim fiquei sempre…”, conclui. E é de algum modo
neste “fora do tempo” que vai decorrer a acção: Eduardo
Lourenço parece dormitar na sua própria festa de aniversário,
enquanto alguém interpreta Bach ao ar livre, e “acorda” num lugar onírico –
filmado no palácio e na mata do Buçaco –, onde se vai cruzando, e dialogando,
com figuras da cultura lusófona, de Lídia Jorge (que lhe passa, do outro mundo,
uma chamada telefónica de Agostinho da Silva) a Gonçalo M. Tavares ou José
Carlos de Vasconcelos, do psiquiatra Tiago Reis Marques ao astrofísico José
Afonso, de Ricardo Araújo Pereira ao humorista brasileiro Gregorio Duvivier
– que quer saber
por que motivo o autor não incluiu a perda do Brasil entre os grandes traumas
da História portuguesa inventariados n’O Labirinto da Saudade –,
de José Ligna Nanafe, um especialista em história da escravatura que o
confronta com os horrores da colonização portuguesa, a Álvaro Siza, candidato
ao Óscar de melhor actor secundário pelo seu papel de barman-arquitecto
interessado nas perplexidades da condição humana.
E falta ainda referir a provocadora sereia iberista a que Pilar del Río
dá corpo, a cuja sedução este Ulisses mental português só resiste mercê de um
estóico patriotismo. Ou os breves cameos de Ramalho Eanes e Jorge
Sampaio. E, claro, a presença-ausência do fantasma que mais intensa e
persistentemente assombrou a vida e a obra do protagonista deste filme:
Fernando Pessoa.
A opção de pôr Eduardo
Lourenço – também ele deveras convincente na difícil tarefa de fazer de si
próprio – a vaguear por salões e escadarias labirínticas
enquanto vai pensando por sua conta a partir das interpelações de terceiros,
comentando e aclarando as ideias que propôs há 40 anos n’O Labirinto da
Saudade, mas também reflectindo sobre o Portugal de anos mais recentes ou
a actual vaga populista que varre a Europa, não foi apenas um expediente astuto
para a missão mais ou menos impossível de adaptar ao cinema um livro de
ensaios. O próprio modo de pensar de Eduardo Lourenço – errante, dialógico,
poético, paradoxal, enigmático – encontra aqui um eficaz equivalente
visual.
Mas este é também um filme sobre o devir do país que Lourenço sonda na
sua Psicanálise mítica do destino português, subtítulo e ensaio inicial
de O Labirinto da Saudade. E um dos problemas de Miguel Gonçalves Mendes
era o de tornar inteligível, sobretudo para audiências estrangeiras, a
sequência de momentos-chave da história portuguesa, muito distantes entre si,
aos quais o ensaísta atribui uma dimensão traumática: a independência, a
dominação filipina, o Ultimato inglês de 1890. E depois o salazarismo, a
guerra colonial, o 25 de Abril, e todo o período que o livro de 1978 já não
podia abarcar, do cavaquismo ao presente – uma dificuldade que o cineasta
resolveu recorrendo a imagens do filme de animação Fado Lusitano(1995), de
Abi Feijó, que criou ainda várias sequências novas, incluindo um divertido
Cavaco Silva a fazer-se às auto-estradas em modo Velocidade Furiosa ou uma
animação final ao estilo Monty Python Flying Circus, com Lourenço no
labirinto da sua própria cabeça.
E como o próprio homenageado assinala num belo texto integrado nos
materiais de divulgação d’O Labirinto da Saudade, trata-se também de “uma
espécie de requiem”, de uma despedida. “Somos seres nascidos para a
morte, e, embora eu espere que o Eduardo Lourenço fique por cá muitos anos, não
podemos ignorar que tem 95 anos”, diz o cineasta. Mas “a nossa própria
morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos”, argumenta o próprio
Lourenço no final do filme, já ao balcão do Bar da Eternidade. E logo
acrescenta: “Agora, a morte verdadeira é a do outro, a do outro que
existiu para nós, que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós, e essa é
que é a morte real.” E o espectador sente-se imediatamente transportado
para uma das mais pungentes cenas iniciais, quando um Lourenço “a arrastar
os pezinhos” (expressão dele) por um longo corredor fora e a queixar-se de que
nunca se lembra onde põe as coisas, as chaves de casa, os papéis, se aproxima
de uma fotografia emoldurada, que se adivinha ser do seu casamento com Annie
Salomon, que perdeu em 2013, e pergunta: “Annie, onde estás?”
II TEXTO:
Eduardo Lourenço na
Disneylândia
Miguel
Gonçalves Mendes traduz certeiramente o pensamento de Eduardo Lourenço, mas
fá-lo pelo meio de uma parafernália digital que corre o risco de o trair.
O Labirinto da Saudade
2 estrelas
23 de Maio de 2018
Caso estranho, este de um
filme que, em pouco mais de uma hora, dá tantos tiros no pé e ao mesmo tempo acerta
na mouche no
essencial. À imagem do que fizera com
Mário Cesariny em Autografia (2004) e com
José Saramago em José e Pilar(2010),
Miguel Gonçalves Mendes volta a contornar a lógica tradicional do
documentário hagiográfico. Em O Labirinto da Saudade, é o próprio
filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço, que completa 95 anos esta quarta-feira, a
conduzir-nos por uma “encenação onírica” das ideias do livro que publicou pela
primeira vez em 1978, assim protagonizando este projecto encomendado por um
colectivo de amigos e admiradores (alguns dos quais participam no filme).
A ideia terá parecido
irresistível a Gonçalves Mendes, cineasta que gosta de inventar e brincar com
as formas, mas O Labirinto da Saudade quer
ser demasiadas coisas para demasiada gente. Adaptação mais ou
menos livre de um ensaio seminal sobre a identidade portuguesa, pequena
introdução a uma
das figuras seminais da cultura nacional do último século, celebração da
sua vida, o filme acaba por ser melhor quando se concentra apenas em Lourenço e
nas suas ideias.
Labirinto da Saudade
Realização:Miguel
Gonçalves Mendes
Nas suas próprias palavras,
o ensaísta é “um ser terrivelmente abstracto”, sem o magnetismo físico,
performativo, de um Cesariny. A solução encontrada para contornar essa
modéstia é o grande calcanhar de Aquiles do filme. Gonçalves Mendes coloca
Lourenço a debater as suas ideias em diálogos “socráticos”, pedagógicos, com
figuras públicas ali presentes como amigos ou admiradores do pensador mas
também em representação de arquétipos referenciados no livro (“o escritor”
Gonçalo M. Tavares, “a espanhola” Pilar del Río, “o psiquiatra” Tiago Marques,
“o brasileiro” Gregório
Duvivier, “o africano” José Nafafe...). Essa incapacidade de delimitar
fronteiras entre personalidade e personagem abre as portas ao equívoco
de uma récita amadora cheia de boas intenções mas algo canhestra, e que não é
ajudada pelo recurso recorrente ao efeito de imagem. Algures
entre o
Darren Aronofsky de O Último Capítulo e
um Terry Gilliam digital, fica a sensação de que Gonçalves Mendes está a
criar uma “Disneylândia visual”, cujo barroquismo ostentatório parece espelhar
(talvez inadvertidamente?) a descrição que Lourenço faz do Portugal “virtual” e
idílico que Salazar criou.
A verdade é que esse
“papel de embrulho” não era preciso. Bastaria a voz e a presença de espírito
que Eduardo Lourenço (muito menos abstracto do que diz ser) ainda respira.
Sempre que tudo se concentra no seu pensamento, na sua (brilhante) “psicanálise
mítica” da portugalidade, no modo como a sua obra e a sua vida se ligam, o
filme descola para lá do lastro institucional das expectativas, deixa antever o
que O Labirinto da Saudade podia
ter sido. Assim, fica aquém daquilo que Miguel Gonçalves Mendes já provou
saber fazer — ao mesmo tempo que faz inteira justiça ao que Eduardo Lourenço é
e representa. Parece contraditório, sim, mas faz todo o sentido pelo meio deste labirinto.
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