quinta-feira, 24 de maio de 2018

Dúvidas



Vi o filme, «O Labirinto da Saudade», um filme sobre o pensamento e o sentimento de Eduardo Lourenço que a RTP mostrou ontem. Um filme sobre Eduardo Lourenço, protagonizado por ele próprio e seus amigos, pessoas gradas da nossa política e cultura, que, naturalmente nele figuram como puras marionetes destinadas a destacar o pensamento e o sentimento do Homem e do escritor sábio, que nele actua também como marionete, em suposta despedida de uma vida cheia de estudo e realização, que o sentimento pátrio parece dominar, e o torna, por isso, simpático ao nosso parecer, que, para mais, lhe admira o pensamento de seriedade.
Visto que a morte é coisa certa, decidiu, pois, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes, em homenagem a Eduardo Lourenço, ensaísta de pensamento elaborado e sério, a, ficcionalmente, o pôr a percorrer, não só as puerilidades ou os desajustes duma vida aparentemente já próxima do seu términus - com que, aliás, termina, na mistificação final da subida das escadas do paraíso - como a explorar, através de encontros pontuais que o texto seguinte refere, como, em exemplo, o seu posicionamento em relação à escravatura ou ao sentimento de mágoa dos brasileiros, por serem filhos de portugueses e não de outros povos conquistadores mais poderosos intelectualmente, e mais robustos e socialmente mais equipados, forma de repegar em temas do nosso prazer mórbido, de complexo de inferioridade, como esse do racismo – como se tivéssemos sido os mais cruéis - destacando uma vez mais as penúrias do nosso próprio autodesprezo, feito da consciência constante de um pecado de humildade e humilhação habilmente insinuados e contrastando com o orgulho do tal pioneirismo pátrio no mundo.
Notícias do filme e seus intervenientes, transcrevo-as a seguir, em textos do Público e da Ípsilon, obtidos na Internet.
Eu apenas refiro uma opinião, naturalmente subjectiva, sobre um certo espírito de exibicionismo glorificador,  que predomina na ficção criada – em duas semanas, ao que parece - e reduz um homem a evocações ou breves passagens de vida assentes na mulher amada, já morta e imprescindível, qual Beatriz de Dante, ou na transferência para breves encontros com figuras contestatárias, que aclaram – ou não – o seu próprio pensamento, ou outros breves encontros – com Ramalho Eanes e Jorge Sampaio, figuras inertes, inacessíveis à compreensão estrangeira, só para português entender, pois - ou mesmo Lídia Jorge, intermediária, qual pitonisa aclarando o destino, perante as dúvidas do sábio. E os ruídos do caos imaginário, já que tudo se passa no pensamento daquele, mais assimilando o universo da acção deste filme ao dos filmes da ficção infantil, labirínticos e ruidosos.
Gil Vicente já nos brindara com a Trilogia das Barcas, este filme parece um pouco na mesma linha de homenagem aos “Bons” – os “Grandes do Mundo” que vemos merecerem a Glória, no “Auto da Barca da Glória”, da alegoria vicentina.
Mas é uma opinião subjectiva, eu também não admirei a canção do Salvador Sobral e ela ganhou o festival. Será que, se lá fossem as “Ninfas do Atlântico”, que me encheram as medidas, estas teriam ganho?

I TEXTO
Um grupo de amigos de Eduardo Lourenço, que incluiu Ramalho Eanes, José Carlos Vasconcelos, Pilar del Río e o general Luís Sequeira, decidiu promover a realização de um filme que celebrasse a vida e a obra do ensaísta, mas que funcionasse também como instrumento de divulgação do seu pensamento. O resultado é O Labirinto da Saudade, um filme de Miguel Gonçalves Mendes que a RTP1 exibe esta quarta-feira à noite, pelas 21h00, assinalado o 95º aniversário de Eduardo Lourenço, e que chega no dia seguinte a várias salas do país.

Realizador de Autografia (2004), sobre Mário Cesariny, e de José e Pilar (2011), dedicado a Saramago e Pilar del Río, Miguel Gonçalves Mendes está habituado a trabalhar sem pressas. “Demorei três anos a fazer o filme do Cesariny, e com o Saramago foram quatro”, diz o cineasta. “Isto foi uma experiência completamente nova: teve de ser tudo filmado em 13 dias.” Uma das consequências de lidar com prazos apertados foi ter de alterar o seu método habitual de trabalho, que geralmente dispensa uma excessiva planificação prévia: “Aqui tive mesmo de escrever um argumento, porque tinha os dias contados.”
O filme abre com a voz off de Lourenço a explicar que nasceu a 23 de Maio de 1923, mas que só foi registado no dia 29. “De modo que estive seis dias fora do tempo, e assim fiquei sempre…”, conclui. E é de algum modo neste “fora do tempo” que vai decorrer a acção: Eduardo Lourenço parece dormitar na sua própria festa de aniversário, enquanto alguém interpreta Bach ao ar livre, e “acorda” num lugar onírico – filmado no palácio e na mata do Buçaco –, onde se vai cruzando, e dialogando, com figuras da cultura lusófona, de Lídia Jorge (que lhe passa, do outro mundo, uma chamada telefónica de Agostinho da Silva) a Gonçalo M. Tavares ou José Carlos de Vasconcelos, do psiquiatra Tiago Reis Marques ao astrofísico José Afonso, de Ricardo Araújo Pereira ao humorista brasileiro Gregorio Duvivier – que quer saber por que motivo o autor não incluiu a perda do Brasil entre os grandes traumas da História portuguesa inventariados n’O Labirinto da Saudade –, de José Ligna Nanafe, um especialista em história da escravatura que o confronta com os horrores da colonização portuguesa, a Álvaro Siza, candidato ao Óscar de melhor actor secundário pelo seu papel de barman-arquitecto interessado nas perplexidades da condição humana.
E falta ainda referir a provocadora sereia iberista a que Pilar del Río dá corpo, a cuja sedução este Ulisses mental português só resiste mercê de um estóico patriotismo. Ou os breves cameos de Ramalho Eanes e Jorge Sampaio. E, claro, a presença-ausência do fantasma que mais intensa e persistentemente assombrou a vida e a obra do protagonista deste filme: Fernando Pessoa. 
A opção de pôr Eduardo Lourenço – também ele deveras convincente na difícil tarefa de fazer de si próprio – a vaguear por salões e escadarias labirínticas enquanto vai pensando por sua conta a partir das interpelações de terceiros, comentando e aclarando as ideias que propôs há 40 anos n’O Labirinto da Saudade, mas também reflectindo sobre o Portugal de anos mais recentes ou a actual vaga populista que varre a Europa, não foi apenas um expediente astuto para a missão mais ou menos impossível de adaptar ao cinema um livro de ensaios. O próprio modo de pensar de Eduardo Lourenço – errante, dialógico, poético, paradoxal, enigmático – encontra aqui um eficaz equivalente visual.  
Mas este é também um filme sobre o devir do país que Lourenço sonda na sua Psicanálise mítica do destino português, subtítulo e ensaio inicial de O Labirinto da Saudade. E um dos problemas de Miguel Gonçalves Mendes era o de tornar inteligível, sobretudo para audiências estrangeiras, a sequência de momentos-chave da história portuguesa, muito distantes entre si, aos quais o ensaísta atribui uma dimensão traumática: a independência, a dominação filipina, o Ultimato inglês de 1890. E depois o salazarismo, a guerra colonial, o 25 de Abril, e todo o período que o livro de 1978 já não podia abarcar, do cavaquismo ao presente – uma dificuldade que o cineasta resolveu recorrendo a imagens do filme de animação Fado Lusitano(1995), de Abi Feijó, que criou ainda várias sequências novas, incluindo um divertido Cavaco Silva a fazer-se às auto-estradas em modo Velocidade Furiosa ou uma animação final ao estilo Monty Python Flying Circus, com Lourenço no labirinto da sua própria cabeça. 
E como o próprio homenageado assinala num belo texto integrado nos materiais de divulgação d’O Labirinto da Saudade, trata-se também de “uma espécie de requiem”, de uma despedida. “Somos seres nascidos para a morte, e, embora eu espere que o Eduardo Lourenço fique por cá muitos anos, não podemos ignorar que tem 95 anos”, diz o cineasta. Mas “a nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos”, argumenta o próprio Lourenço no final do filme, já ao balcão do Bar da Eternidade. E logo acrescenta: “Agora, a morte verdadeira é a do outro, a do outro que existiu para nós, que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós, e essa é que é a morte real.” E o espectador sente-se imediatamente transportado para uma das mais pungentes cenas iniciais, quando um Lourenço “a arrastar os pezinhos” (expressão dele) por um longo corredor fora e a queixar-se de que nunca se lembra onde põe as coisas, as chaves de casa, os papéis, se aproxima de uma fotografia emoldurada, que se adivinha ser do seu casamento com Annie Salomon, que perdeu em 2013, e pergunta: “Annie, onde estás?” 

II TEXTO:
Eduardo Lourenço na Disneylândia
Miguel Gonçalves Mendes traduz certeiramente o pensamento de Eduardo Lourenço, mas fá-lo pelo meio de uma parafernália digital que corre o risco de o trair.
O Labirinto da Saudade
  2 estrelas
23 de Maio de 2018
Caso estranho, este de um filme que, em pouco mais de uma hora, dá tantos tiros no pé e ao mesmo tempo acerta na mouche no essencial. À imagem do que fizera com Mário Cesariny em Autografia (2004) com José Saramago em José e Pilar(2010), Miguel Gonçalves Mendes volta a contornar a lógica tradicional do documentário hagiográfico. Em O Labirinto da Saudade, é o próprio filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço, que completa 95 anos esta quarta-feira, a conduzir-nos por uma “encenação onírica” das ideias do livro que publicou pela primeira vez em 1978, assim protagonizando este projecto encomendado por um colectivo de amigos e admiradores (alguns dos quais participam no filme).
A ideia terá parecido irresistível a Gonçalves Mendes, cineasta que gosta de inventar e brincar com as formas, mas O Labirinto da Saudade quer ser demasiadas coisas para demasiada gente. Adaptação mais ou menos livre de um ensaio seminal sobre a identidade portuguesa, pequena introdução a uma das figuras seminais da cultura nacional do último século, celebração da sua vida, o filme acaba por ser melhor quando se concentra apenas em Lourenço e nas suas ideias.
Labirinto da Saudade
Realização:Miguel Gonçalves Mendes
Nas suas próprias palavras, o ensaísta é “um ser terrivelmente abstracto”, sem o magnetismo físico, performativo, de um Cesariny. A solução encontrada para contornar essa modéstia é o grande calcanhar de Aquiles do filme. Gonçalves Mendes coloca Lourenço a debater as suas ideias em diálogos “socráticos”, pedagógicos, com figuras públicas ali presentes como amigos ou admiradores do pensador mas também em representação de arquétipos referenciados no livro (“o escritor” Gonçalo M. Tavares, “a espanhola” Pilar del Río, “o psiquiatra” Tiago Marques, “o brasileiro” Gregório Duvivier, “o africano” José Nafafe...). Essa incapacidade de delimitar fronteiras entre personalidade e personagem abre as portas ao equívoco de uma récita amadora cheia de boas intenções mas algo canhestra, e que não é ajudada pelo recurso recorrente ao efeito de imagem. Algures entre o Darren Aronofsky de O Último Capítulo e um Terry Gilliam digital, fica a sensação de que Gonçalves Mendes está a criar uma “Disneylândia visual”, cujo barroquismo ostentatório parece espelhar (talvez inadvertidamente?) a descrição que Lourenço faz do Portugal “virtual” e idílico que Salazar criou.
A verdade é que esse “papel de embrulho” não era preciso. Bastaria a voz e a presença de espírito que Eduardo Lourenço (muito menos abstracto do que diz ser) ainda respira. Sempre que tudo se concentra no seu pensamento, na sua (brilhante) “psicanálise mítica” da portugalidade, no modo como a sua obra e a sua vida se ligam, o filme descola para lá do lastro institucional das expectativas, deixa antever o que O Labirinto da Saudade podia ter sido. Assim, fica aquém daquilo que Miguel Gonçalves Mendes já provou saber fazer — ao mesmo tempo que faz inteira justiça ao que Eduardo Lourenço é e representa. Parece contraditório, sim, mas faz todo o sentido pelo meio deste labirinto.

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