Mas os que transcrevo foram
merecedores da distinção “premium” do OBSERVADOR – o de Alberto Gonçalves,
contudo, não transcrevo na íntegra, por demasiado “desbocado” para as susceptibilidades
da pudicícia virtuosa, como é a minha, confesso, embora compreenda que o estado
de atonia moral em que nos encontramos, seja merecedor de tão virulento retrato,
de tanta perícia aviltante do país inteiro. Talvez mereçamos. Mas os
comentadores do autor, que se insultam mutuamente, não prestam grande homenagem
ao excepcional crítico AG, mergulhando na vileza da sua própria sordidez
atacante, resultante dos diferentes posicionamentos partidários, de
portuguesinhos valentes e sentimentais que se insultam.
Imensos os textos, e só os
lidos no OBSERVADOR. Os outros jornais também não deixarão de explorar o caso
da demissão de Sócrates do seu partido, e todos os factos e nomes relacionados,
já provenientes de anteriores tentativas de decifração e finalmente, desabando em
acusações, confissões, desmantelamentos de “ligações perigosas”, que os
jornalistas investigadores relembram eficientemente. Eu apenas transcrevo – o de
Filomena Martins e o de Paulo Tunhas - fazendo parte do
rebanho que neste país assiste, impotente e atónito, como convém à nossa atonia
de respeito próprio, de cobardia ou de descrença na eficácia de qualquer
tentativa punitiva. Os princípios de disciplina moral e mental, que devem fazer parte
das políticas de qualquer Estado, foram subvertidos no esbandalhamento de Abril
de 74. Por conveniência de todos nós, ao que parece. A ajuda monetária
internacional contribuiu para o nosso sossego. Taparam-nos a boca com as
migalhas, enquanto os responsáveis por ela se alambazavam com o pote, alargando
a rede dos comensais, à socapa, aos seus apoiantes beneficiários.
Mas eu julgo que este
escândalo de agora não passa de um falso alarme. Em breve recairemos no torpor.
Como convém.
César pôs lama na ventoinha /premium
FILOMENA MARTINS
OBSERVADOR, 3/5/2018
Quando tentou tornar o independente Manuel Pinho no cordeiro a
sacrificar para não agitar os pecados do último Governo socialista, despertou
todos os fantasmas desse passado vergonhoso da democracia.
Foram precisos três anos e meio para o PS dizer ter “vergonha” do caso Sócrates. Ironicamente, o
envergonhado de serviço foi Carlos César, o presidente do partido que não tem
vergonha de cobrar viagens em duplicado nem de ter metade da família empregada
no Estado. Em boa verdade,
César foi por lã e saiu tosquiado. Quando tentou tornar o independente Manuel
Pinho no cordeiro a sacrificar para não agitar os pecados do último Governo
socialista, despertou todos os fantasmas desse passado vergonhoso para a
democracia portuguesa. Porque é impossível falar de Pinho e não dizer nada
sobre Sócrates. Ou sobre Salgado. Ou sobre Mexia. Ou sobre os gestores da PT.
Mais. Pinho não arrasta apenas Sócrates. Leva também atrás quem se
sentava nas restantes cadeiras daquele Conselho de Ministros. Se nada viram, ou
fecharam os olhos ou estavam completamente cegos. Se nada perceberam, ou não
contavam para nada ou entram no rol dos suspeitos de que eram gente a ter em
conta. E há dois deles que estão de novo nos mesmos assentos.
Carlos César caiu na esparrela. O escândalo Pinho estava transformado em
mais um caso paradigmático do funcionamento da política portuguesa. Num país em
que todos os partidos têm não paredes mas telhados de vidro, no princípio foi o
silêncio. Dez dias depois, quando Rio atirou timidamente a primeira pedra, veio
finalmente o verbo. Ou melhor, uma verdadeira verborreia. E César deixou-se
apanhar pelas palavras. Depois da boca lhe ter fugido para a verdade, de nada
valeu tentar corrigir a trajetória da boutade: a bola de neve já rolava a alta
velocidade. De membros do Governo até ao altifalante João Galamba, multiplicaram-se como cogumelos Anas Gomes
socialistas.
O PS devia ter exigido apenas explicações directas a Manuel Pinho. Uma
resposta simples à pergunta que importa responder: o ministro recebia ou não uma avença do
Governo enquanto lá fazia uma comissão de serviço para defender os interesses
do patrão que verdadeiramente lhe pagava, o BES de Ricardo Salgado? Se tivesse
ido por esse caminho, podia ter continuado a assobiar para o lado aquela ladainha
do “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”.
Mas os socialistas decidiram agarrar a corda que o Bloco lhes estendeu.
E agora em vez de se salvarem, arriscam enforcar-se.
Catarina Martins é uma espécie de Pedro, da fábula do lobo. Por mais que
grite, estrebuche e até faça ultimatos, já ninguém liga às ameaças do Bloco. Todos
percebem a estratégia: para ser o único parceiro do PS num próximo Governo, até
vale andar aos encontrões com o PCP/CGTP no 1º. de Maio. Assim que
viu Rui Rio, o seu principal concorrente a alianças com os socialistas, abrir
pela primeira vez a torneira do prometido banho de ética, Catarina sacou do
golpe do costume: anunciou uma vastíssima Comissão de Inquérito! Daquelas que promete investigar tudo e mais
alguma coisa, para depois concluir coisa nenhuma. Ideia à qual os comunistas, correndo atrás do prejuízo, alargaram ainda
mais o âmbito.
A hipótese de passar quatro meses a investigar 14 anos de rendas na
energia, CMEC’s e outras benesses que tais soou perfeita ao PS.
Nada melhor do que dividir para reinar, dispersar para baralhar e exibir as
vergonhas alheias. À honrosa excepção do BPN, as investigações parlamentares ou são absolutamente inconclusivas ou
politicamente comprometidas. E quem lá vai ou é aconselhado a não falar (como
Pinho já foi) ou sofre de inexplicáveis ataques de amnésia. O BES/GES e a CGD 1
e 2 são só a última prova desse modelo (infelizmente) falhado de escrutínio político.
Uma espécie de modelo OMO: ótimo para branquear.
Só que os socialistas aperceberam-se tarde demais que estavam a lavar
roupa demasiada suja. E
acabaram por manchar o que até agora tinham conseguido manter impoluto. Sócrates
é, por mais que tenham andado a disfarçar, um caso único. Inédito. Que se
sobrepõe a todos os outros. Ora o que Carlos César fez foi pela primeira
vez assumir que Pinho e Sócrates estiveram atolados na mesma lama. Agora é
inevitável que ela se espalhe pelas ventoinhas do congresso do PS no final do
mês. Talvez se fiquem a conhecer ainda mais poucas-vergonhas. Só por isso, Avé
César.
Só mais duas ou três coisas
Rui Rio exigiu conhecer todos os devedores da CGD. Aqueles que os deputados dos vários
partidos, mesmo com o ok dos tribunais, esconderam bem escondidos do país. Não fossem
tantos os nomes e tão grandes os números do dinheiro dado ao desbarato e sem
garantias, que o povo ainda saísse à rua a exigir os seus impostos de volta,
numa verdadeira revolta popular. Só a conta conhecida já vai em 4 mil
milhões, mais 103 milhões pela simpatia feita por Vara aos amigos de Vale do Lobo e 1,7 milhões para indemnizações aos últimos administradores despedidos por
António Domingues. Não acredito que Rio tenha sorte. Mas se a tiver, boa
sorte. Abrirá a verdadeira Caixa de Pandora.
O Benfica ter criado um gabinete de crise para controlar os danos dos
últimos casos e processos conhecidos é profissional. O Benfica ter pensado um
modelo para ganhar espaço na comunicação social e influência nas várias
instituições do futebol é legítimo. Já o Benfica ver os últimos
163 jogos investigados pelo Ministério Público levanta muitas dúvidas. O Benfica ser
suspeito de resultados combinados com mensagens trocadas entre os investigados
e telemóveis a serem analisados pelas autoridades é tremendo. E a
tal task force do Benfica ter como conselheiro Almeida Ribeiro,
antigo espião do SIS e ex-secretário adjunto de José Sócrates, e poder estar a
fazer denúncias anónimas para confundir a investigação é assustador. Estaremos
à beira de um Calciocaos, que despromoveu a Juventus, a Lazio ou a
Fiorentina, ou manteremos a tónica dos Apitos Dourados?
A corrupção e a vergonha do PS /premium
3/5/2018
O que se passou com Sócrates é comparável ao que se passou em todos os
outros partidos? Há algum caso semelhante ao que se passou no PS, não apenas
por causa de Sócrates, mas também pelo próprio PS?
Aqui há uns tempos, Vasco Pulido Valente escrevia que, a continuarem
assim as revelações sobre a corrupção de grande escala, o sentimento de se
viver num film noir, o género célebre do cinema americano dos anos
quarenta, era praticamente inescapável. A comparação é, é claro, justíssima. Nos films noirs uma
das regras fundamentais é existir a percepção de uma ameaça vaga, difusa, cujos
contornos e autores não são perfeitamente identificáveis. E, ao mesmo tempo,
dizem os especialistas, sentimentos de paranóia, duplicidade, ansiedade, insegurança
e medo.
O género conta com imensos filmes memoráveis, mas há uma história que
ilustra particularmente bem um dos seus aspectos. Quando Howard Hawks estava a
filmar The Big Sleep (1946, em português: À beira do
abismo), baseado no romance de Raymond Chandler, telefonou a Chandler para lhe
perguntar se um determinado personagem tinha sido assassinado ou se se havia
suicidado. Resposta de Chandler: não sabia. A indeterminação não é aqui
obviamente o resultado de desleixo de Chandler (verosimilmente o único autor de
policiais – e não, não me estou a esquecer de Hammett – a entrar claramente
dentro da grande literatura): faz parte da própria natureza do livro.
Não sei se as notícias recentes, com, depois de todas as outras, as
últimas coisas que se dizem sobre Ricardo Salgado e Manuel Pinho, induzem essa
percepção e esses sentimentos, mas, quase apetece dizer: deveriam. E deveriam
ainda mais face à ameaça latente de, a verificar-se a não recondução da
procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, o combate à corrupção – o
combate a uma espécie de sociedade secreta que age no interior da nossa e que
se rege por leis que são contrárias às que vigoram na nossa – abrandar de
intensidade, rigor e determinação. Claro que Ricardo Salgado continua a afirmar que nunca na vida
corrompeu ninguém. Mas creio que nem ele próprio julgará que, para a opinião
comum, o propósito pareça credível. A não ser que pretenda por aí dizer que
nunca iniciou ninguém na corrupção, tendo os personagens com que lidou, o
deletério José Sócrates em primeiro lugar, tido experiências prévias dessa
natureza. Neste último caso, é verdade, a afirmação ganha até uma certa
plausibilidade.
Ontem, o presidente do PS, Carlos César, declarou que o PS estava
“envergonhado” com o que se terá passado nos governos de Sócrates. Como,
espera, “todos os outros partidos” estarão com os malandros das suas
respectivas cores. Logo se disse que a declaração representava uma ruptura com
a distância que o PS tinha até agora mantido no caso, para não falar dos extravagantes
propósitos recentes de Arons de Carvalho sobre a naturalidade de longamente se
viver, como Sócrates, de dinheiro emprestado. Ignoro se é verdadeira ruptura e
a vergonha certamente que nestes casos se recomenda fortemente. Mas pretender,
sem cláusula nenhuma, que tal vergonha é partilhada com “todos os outros
partidos” que tiveram casos semelhantes é no mínimo absurdo.
O que se passou com Sócrates é comparável ao que se passou em todos os
outros partidos? Há algum caso semelhante ao que se passou no PS, não apenas
por causa de Sócrates, mas também pelo próprio PS, que se rendeu inteiramente a
ele, com requintes de submissão e obscena adulação? Carlos César pensa sem
dúvida antes de falar: é pena que pense o que pensa, porque pensa nesta matéria
pessimamente. Em matéria de auto-críticas, já vi exercícios mais convincentes.
Longe de mim pretender que a corrupção é uma propriedade exclusiva do
PS. Todos os outros partidos, a começar pelo PSD, têm culpas no cartório. Mas o
caso do ex-primeiro-ministro José Sócrates é excepcional a todos os títulos e o
PS tem direito a uma culpa exclusivíssima no capítulo que não se compadece com
generalização nenhuma. O grau de falta de confiança e de insegurança que tal
exemplo criou no vulgar cidadão não tem comum medida com outros casos.
O PS, de resto, continua ainda hoje a promover na
sociedade um sentimento de incerteza que, por aparentemente não vir com força à
luz do dia, não deixa por isso de existir. É uma coisa de natureza
completamente diferente da outra, obviamente, mas o sentimento de incerteza
existe à mesma. Refiro-me à construção da geringonça, esse expediente de
derrotado que nos governa. O que une o PS aos seus apoios, o Bloco e o PC, para
além da pertença a uma entidade em parte mítica chamada “esquerda” e de um
certo número de reflexos discursivos arcaicos parcialmente partilhados? Como se
sabe, e como certamente se verá muito claramente em breve, pouquíssimo. O que
há, de facto, é uma soma de divergências que não são conjunturais mas
estruturais, como o Bloco e o PC não deixam de repetir, ao mesmo tempo que não
tiram disso (vergonha não têm) nenhuma das conclusões lógicas que se impõem.
Que tipo de confiança merece este arranjo? Que a geringonça continue a
funcionar não desmente de modo algum essa incerteza e o sentimento de
insegurança concomitante. Pelo contrário: a manutenção do acordo, o seu parcial
“bom funcionamento”, não revela nada de natural nesta harmonia fictícia: revela o grau do embuste e a falsidade
essencial do arranjo, cada vez mais notórios à medida que o tempo passa. O
governo vive de uma mentira fundadora, de uma ambivalência política original,
muito longe das combinações passadas entre outros partidos. A médio prazo,
poderá isto não ter consequências extremamente danosas para a sociedade? Por
definição, não pode. Não deve esta situação inspirar-nos insegurança e medo? É
claro que deve.
Sob a capa enganadora do quase permanente riso de António Costa, o País
vive ansioso na suspeita. Mais uma vez, como nos films noirs. Isso
não é patente? À superfície, não. Mas há muita realidade para lá da superfície.
E o medo pode ser irracional quando o seu objecto é inofensivo. Acontece que,
nestes casos, os objectos são tudo menos inofensivos.
III- A casa das meninas e outros contos de encantar /premium
OBSERVADOR, 5/5/18
… Sabe-se
só que, com extraordinária rapidez e intuição, várias meninas desataram a
confessar em uníssono a vergonha, a imensa vergonha, a vergonha do caraças da
má fama que a casa injustamente adquiriu…
….
A banalidade da idiotia
O ministro da Cultura, obscuridade cuja existência será desconhecida
pela própria mãe, visitou o Forte de Peniche e comparou-o a um campo de
concentração nazi. O DN “online” citava o ministro e trazia uma manchete sobre
“a Auschwitz portuguesa”. Depois, porque percebeu o grotesco erro ou porque
recebeu ordens para corrigi-lo, mudou o título para “maior símbolo do sistema
prisional fascista” e recambiou a referência a Auschwitz para as letras
miudinhas. Boa nota para a preocupação do jornal em retocar a imagem dos
governantes. E nota máxima para o governante em causa, que pelos vistos
comparou de facto um lugar onde morreram mais de um milhão de pessoas a outro
onde, que eu saiba, não morreu uma única. No fundo, é como chamar ao tal
ministro “o Malraux de Idanha-a-Nova”, na medida em que ele também possui dois
pés, duas orelhas e uma cabeça – ainda que esta, à semelhança do crematório de
Peniche, tenha estado sempre vazia.
O homem mais azarado de Portugal
Toda a gente sabe que o sr. Salgado nunca corrompeu uma alminha que
fosse. De resto, ele próprio o garante e seria paradoxal questionar a seriedade
de indivíduo tão sério. Mas impressiona que, de cada vez que se descobre uma
trafulhice qualquer do Minho a Luanda, o sr. Salgado lá acabe injustamente
envolvido. São subtraídos três abacates a uma quitanda de Santarém? É
inevitável que o meliante refira proximidade ao sr. Salgado. Desaparecem mil
milhões em operações bancárias esquisitas? Aguarda-se dez minutos e eis que o
nome do sr. Salgado irrompe pelo assunto dentro. Nem chega a ser a história da
cavadela e da minhoca: não vale a pena cavar que o bicho aparece sozinho. Assim
à primeira vista, tudo indica tratar-se de uma enorme conspiração para lixar
o infeliz, com recurso a encosto, mau-olhado e restante tecnologia de ponta. Ou
então o sr. Salgado tem muito azar. Culpa, desculpem, é que não tem.
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