sábado, 5 de maio de 2018

São tantos os textos



Mas os que transcrevo foram merecedores da distinção “premium” do OBSERVADOR – o de Alberto Gonçalves, contudo, não transcrevo na íntegra, por demasiado “desbocado” para as susceptibilidades da pudicícia virtuosa, como é a minha, confesso, embora compreenda que o estado de atonia moral em que nos encontramos, seja merecedor de tão virulento retrato, de tanta perícia aviltante do país inteiro. Talvez mereçamos. Mas os comentadores do autor, que se insultam mutuamente, não prestam grande homenagem ao excepcional crítico AG, mergulhando na vileza da sua própria sordidez atacante, resultante dos diferentes posicionamentos partidários, de portuguesinhos valentes e sentimentais que se insultam.
Imensos os textos, e só os lidos no OBSERVADOR. Os outros jornais também não deixarão de explorar o caso da demissão de Sócrates do seu partido, e todos os factos e nomes relacionados, já provenientes de anteriores tentativas de decifração e finalmente, desabando em acusações, confissões, desmantelamentos de “ligações perigosas”, que os jornalistas investigadores relembram eficientemente. Eu apenas transcrevo – o de Filomena Martins e o de Paulo Tunhas - fazendo parte do rebanho que neste país assiste, impotente e atónito, como convém à nossa atonia de respeito próprio, de cobardia ou de descrença na eficácia de qualquer tentativa punitiva. Os princípios de disciplina moral e mental, que devem fazer parte das políticas de qualquer Estado, foram subvertidos no esbandalhamento de Abril de 74. Por conveniência de todos nós, ao que parece. A ajuda monetária internacional contribuiu para o nosso sossego. Taparam-nos a boca com as migalhas, enquanto os responsáveis por ela se alambazavam com o pote, alargando a rede dos comensais, à socapa, aos seus apoiantes beneficiários.
Mas eu julgo que este escândalo de agora não passa de um falso alarme. Em breve recairemos no torpor. Como convém.
César pôs lama na ventoinha /premium
FILOMENA MARTINS
OBSERVADOR, 3/5/2018
Quando tentou tornar o independente Manuel Pinho no cordeiro a sacrificar para não agitar os pecados do último Governo socialista, despertou todos os fantasmas desse passado vergonhoso da democracia.
Foram precisos três anos e meio para o PS dizer ter “vergonha” do caso Sócrates. Ironicamente, o envergonhado de serviço foi Carlos César, o presidente do partido que não tem vergonha de cobrar viagens em duplicado nem de ter metade da família empregada no Estado. Em boa verdade, César foi por lã e saiu tosquiado. Quando tentou tornar o independente Manuel Pinho no cordeiro a sacrificar para não agitar os pecados do último Governo socialista, despertou todos os fantasmas desse passado vergonhoso para a democracia portuguesa. Porque é impossível falar de Pinho e não dizer nada sobre Sócrates. Ou sobre Salgado. Ou sobre Mexia. Ou sobre os gestores da PT.
Mais. Pinho não arrasta apenas Sócrates. Leva também atrás quem se sentava nas restantes cadeiras daquele Conselho de Ministros. Se nada viram, ou fecharam os olhos ou estavam completamente cegos. Se nada perceberam, ou não contavam para nada ou entram no rol dos suspeitos de que eram gente a ter em conta. E há dois deles que estão de novo nos mesmos assentos.
Carlos César caiu na esparrela. O escândalo Pinho estava transformado em mais um caso paradigmático do funcionamento da política portuguesa. Num país em que todos os partidos têm não paredes mas telhados de vidro, no princípio foi o silêncio. Dez dias depois, quando Rio atirou timidamente a primeira pedra, veio finalmente o verbo. Ou melhor, uma verdadeira verborreia. E César deixou-se apanhar pelas palavras. Depois da boca lhe ter fugido para a verdade, de nada valeu tentar corrigir a trajetória da boutade: a bola de neve já rolava a alta velocidade. De membros do Governo até ao altifalante João Galamba, multiplicaram-se como cogumelos Anas Gomes socialistas.
O PS devia ter exigido apenas explicações directas a Manuel Pinho. Uma resposta simples à pergunta que importa responder: o ministro recebia ou não uma avença do Governo enquanto lá fazia uma comissão de serviço para defender os interesses do patrão que verdadeiramente lhe pagava, o BES de Ricardo Salgado? Se tivesse ido por esse caminho, podia ter continuado a assobiar para o lado aquela ladainha do “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”.
Mas os socialistas decidiram agarrar a corda que o Bloco lhes estendeu. E agora em vez de se salvarem, arriscam enforcar-se.
Catarina Martins é uma espécie de Pedro, da fábula do lobo. Por mais que grite, estrebuche e até faça ultimatos, já ninguém liga às ameaças do Bloco. Todos percebem a estratégia: para ser o único parceiro do PS num próximo Governo, até vale andar aos encontrões com o PCP/CGTP no 1º. de Maio. Assim que viu Rui Rio, o seu principal concorrente a alianças com os socialistas, abrir pela primeira vez a torneira do prometido banho de ética, Catarina sacou do golpe do costume: anunciou uma vastíssima Comissão de Inquérito! Daquelas que promete investigar tudo e mais alguma coisa, para depois concluir coisa nenhuma. Ideia à qual os comunistas, correndo atrás do prejuízo, alargaram ainda mais o âmbito.
A hipótese de passar quatro meses a investigar 14 anos de rendas na energia, CMEC’s e outras benesses que tais soou perfeita ao PS. Nada melhor do que dividir para reinar, dispersar para baralhar e exibir as vergonhas alheias. À honrosa excepção do BPN, as investigações parlamentares ou são absolutamente inconclusivas ou politicamente comprometidas. E quem lá vai ou é aconselhado a não falar (como Pinho já foi) ou sofre de inexplicáveis ataques de amnésia. O BES/GES e a CGD 1 e 2 são só a última prova desse modelo (infelizmente) falhado de escrutínio político. Uma espécie de modelo OMO: ótimo para branquear.
Só que os socialistas aperceberam-se tarde demais que estavam a lavar roupa demasiada suja. E acabaram por manchar o que até agora tinham conseguido manter impoluto. Sócrates é, por mais que tenham andado a disfarçar, um caso único. Inédito. Que se sobrepõe a todos os outros. Ora o que Carlos César fez foi pela primeira vez assumir que Pinho e Sócrates estiveram atolados na mesma lama. Agora é inevitável que ela se espalhe pelas ventoinhas do congresso do PS no final do mês. Talvez se fiquem a conhecer ainda mais poucas-vergonhas. Só por isso, Avé César.
Só mais duas ou três coisas
Rui Rio exigiu conhecer todos os devedores da CGD. Aqueles que os deputados dos vários partidos, mesmo com o ok dos tribunais, esconderam bem escondidos do país. Não fossem tantos os nomes e tão grandes os números do dinheiro dado ao desbarato e sem garantias, que o povo ainda saísse à rua a exigir os seus impostos de volta, numa verdadeira revolta popular. Só a conta conhecida já vai em 4 mil milhões, mais 103 milhões pela simpatia feita por Vara aos amigos de Vale do Lobo e 1,7 milhões para indemnizações aos últimos administradores despedidos por António Domingues. Não acredito que Rio tenha sorte. Mas se a tiver, boa sorte. Abrirá a verdadeira Caixa de Pandora.
O Benfica ter criado um gabinete de crise para controlar os danos dos últimos casos e processos conhecidos é profissional. O Benfica ter pensado um modelo para ganhar espaço na comunicação social e influência nas várias instituições do futebol é legítimo. Já o Benfica ver os últimos 163 jogos investigados pelo Ministério Público levanta muitas dúvidas. O Benfica ser suspeito de resultados combinados com mensagens trocadas entre os investigados e telemóveis a serem analisados pelas autoridades é tremendo. E a tal task force do Benfica ter como conselheiro Almeida Ribeiro, antigo espião do SIS e ex-secretário adjunto de José Sócrates, e poder estar a fazer denúncias anónimas para confundir a investigação é assustador. Estaremos à beira de um Calciocaos, que despromoveu a Juventus, a Lazio ou a Fiorentina, ou manteremos a tónica dos Apitos Dourados?
A corrupção e a vergonha do PS /premium
3/5/2018
O que se passou com Sócrates é comparável ao que se passou em todos os outros partidos? Há algum caso semelhante ao que se passou no PS, não apenas por causa de Sócrates, mas também pelo próprio PS?
Aqui há uns tempos, Vasco Pulido Valente escrevia que, a continuarem assim as revelações sobre a corrupção de grande escala, o sentimento de se viver num film noir, o género célebre do cinema americano dos anos quarenta, era praticamente inescapável. A comparação é, é claro, justíssima. Nos films noirs uma das regras fundamentais é existir a percepção de uma ameaça vaga, difusa, cujos contornos e autores não são perfeitamente identificáveis. E, ao mesmo tempo, dizem os especialistas, sentimentos de paranóia, duplicidade, ansiedade, insegurança e medo.
O género conta com imensos filmes memoráveis, mas há uma história que ilustra particularmente bem um dos seus aspectos. Quando Howard Hawks estava a filmar The Big Sleep (1946, em português: À beira do abismo), baseado no romance de Raymond Chandler, telefonou a Chandler para lhe perguntar se um determinado personagem tinha sido assassinado ou se se havia suicidado. Resposta de Chandler: não sabia. A indeterminação não é aqui obviamente o resultado de desleixo de Chandler (verosimilmente o único autor de policiais – e não, não me estou a esquecer de Hammett – a entrar claramente dentro da grande literatura): faz parte da própria natureza do livro.
Não sei se as notícias recentes, com, depois de todas as outras, as últimas coisas que se dizem sobre Ricardo Salgado e Manuel Pinho, induzem essa percepção e esses sentimentos, mas, quase apetece dizer: deveriam. E deveriam ainda mais face à ameaça latente de, a verificar-se a não recondução da procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, o combate à corrupção – o combate a uma espécie de sociedade secreta que age no interior da nossa e que se rege por leis que são contrárias às que vigoram na nossa – abrandar de intensidade, rigor e determinação. Claro que Ricardo Salgado continua a afirmar que nunca na vida corrompeu ninguém. Mas creio que nem ele próprio julgará que, para a opinião comum, o propósito pareça credível. A não ser que pretenda por aí dizer que nunca iniciou ninguém na corrupção, tendo os personagens com que lidou, o deletério José Sócrates em primeiro lugar, tido experiências prévias dessa natureza. Neste último caso, é verdade, a afirmação ganha até uma certa plausibilidade.
Ontem, o presidente do PS, Carlos César, declarou que o PS estava “envergonhado” com o que se terá passado nos governos de Sócrates. Como, espera, “todos os outros partidos” estarão com os malandros das suas respectivas cores. Logo se disse que a declaração representava uma ruptura com a distância que o PS tinha até agora mantido no caso, para não falar dos extravagantes propósitos recentes de Arons de Carvalho sobre a naturalidade de longamente se viver, como Sócrates, de dinheiro emprestado. Ignoro se é verdadeira ruptura e a vergonha certamente que nestes casos se recomenda fortemente. Mas pretender, sem cláusula nenhuma, que tal vergonha é partilhada com “todos os outros partidos” que tiveram casos semelhantes é no mínimo absurdo.
O que se passou com Sócrates é comparável ao que se passou em todos os outros partidos? Há algum caso semelhante ao que se passou no PS, não apenas por causa de Sócrates, mas também pelo próprio PS, que se rendeu inteiramente a ele, com requintes de submissão e obscena adulação? Carlos César pensa sem dúvida antes de falar: é pena que pense o que pensa, porque pensa nesta matéria pessimamente. Em matéria de auto-críticas, já vi exercícios mais convincentes.
Longe de mim pretender que a corrupção é uma propriedade exclusiva do PS. Todos os outros partidos, a começar pelo PSD, têm culpas no cartório. Mas o caso do ex-primeiro-ministro José Sócrates é excepcional a todos os títulos e o PS tem direito a uma culpa exclusivíssima no capítulo que não se compadece com generalização nenhuma. O grau de falta de confiança e de insegurança que tal exemplo criou no vulgar cidadão não tem comum medida com outros casos.
O PS, de resto, continua ainda hoje  a promover na sociedade um sentimento de incerteza que, por aparentemente não vir com força à luz do dia, não deixa por isso de existir. É uma coisa de natureza completamente diferente da outra, obviamente, mas o sentimento de incerteza existe à mesma. Refiro-me à construção da geringonça, esse expediente de derrotado que nos governa. O que une o PS aos seus apoios, o Bloco e o PC, para além da pertença a uma entidade em parte mítica chamada “esquerda” e de um certo número de reflexos discursivos arcaicos parcialmente partilhados? Como se sabe, e como certamente se verá muito claramente em breve, pouquíssimo. O que há, de facto, é uma soma de divergências que não são conjunturais mas estruturais, como o Bloco e o PC não deixam de repetir, ao mesmo tempo que não tiram disso (vergonha não têm) nenhuma das conclusões lógicas que se impõem.
Que tipo de confiança merece este arranjo? Que a geringonça continue a funcionar não desmente de modo algum essa incerteza e o sentimento de insegurança concomitante. Pelo contrário: a manutenção do acordo, o seu parcial “bom funcionamento”, não revela nada de natural nesta harmonia fictícia: revela o grau do embuste e a falsidade essencial do arranjo, cada vez mais notórios à medida que o tempo passa. O governo vive de uma mentira fundadora, de uma ambivalência política original, muito longe das combinações passadas entre outros partidos. A médio prazo, poderá isto não ter consequências extremamente danosas para a sociedade? Por definição, não pode. Não deve esta situação inspirar-nos insegurança e medo? É claro que deve.
Sob a capa enganadora do quase permanente riso de António Costa, o País vive ansioso na suspeita. Mais uma vez, como nos films noirs. Isso não é patente? À superfície, não. Mas há muita realidade para lá da superfície. E o medo pode ser irracional quando o seu objecto é inofensivo. Acontece que, nestes casos, os objectos são tudo menos inofensivos.

III- A casa das meninas e outros contos de encantar /premium

OBSERVADOR, 5/5/18
… Sabe-se só que, com extraordinária rapidez e intuição, várias meninas desataram a confessar em uníssono a vergonha, a imensa vergonha, a vergonha do caraças da má fama que a casa injustamente adquiriu…
….
A banalidade da idiotia
O ministro da Cultura, obscuridade cuja existência será desconhecida pela própria mãe, visitou o Forte de Peniche e comparou-o a um campo de concentração nazi. O DN “online” citava o ministro e trazia uma manchete sobre “a Auschwitz portuguesa”. Depois, porque percebeu o grotesco erro ou porque recebeu ordens para corrigi-lo, mudou o título para “maior símbolo do sistema prisional fascista” e recambiou a referência a Auschwitz para as letras miudinhas. Boa nota para a preocupação do jornal em retocar a imagem dos governantes. E nota máxima para o governante em causa, que pelos vistos comparou de facto um lugar onde morreram mais de um milhão de pessoas a outro onde, que eu saiba, não morreu uma única. No fundo, é como chamar ao tal ministro “o Malraux de Idanha-a-Nova”, na medida em que ele também possui dois pés, duas orelhas e uma cabeça – ainda que esta, à semelhança do crematório de Peniche, tenha estado sempre vazia.

O homem mais azarado de Portugal
Toda a gente sabe que o sr. Salgado nunca corrompeu uma alminha que fosse. De resto, ele próprio o garante e seria paradoxal questionar a seriedade de indivíduo tão sério. Mas impressiona que, de cada vez que se descobre uma trafulhice qualquer do Minho a Luanda, o sr. Salgado lá acabe injustamente envolvido. São subtraídos três abacates a uma quitanda de Santarém? É inevitável que o meliante refira proximidade ao sr. Salgado. Desaparecem mil milhões em operações bancárias esquisitas? Aguarda-se dez minutos e eis que o nome do sr. Salgado irrompe pelo assunto dentro. Nem chega a ser a história da cavadela e da minhoca: não vale a pena cavar que o bicho aparece sozinho. Assim à primeira vista, tudo indica tratar-se de uma enorme conspiração para lixar o infeliz, com recurso a encosto, mau-olhado e restante tecnologia de ponta. Ou então o sr. Salgado tem muito azar. Culpa, desculpem, é que não tem.





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