São de Pacheco Pereira os artigos, de uma facúndia sempre lida com o
prazer que a sua análise ponderada causa. Não parecendo que bate, fustiga, com
a sua calma mansa e o seu saber. E nós sentimos gosto, nesses escritos directos,
de uma crítica alimentada pelo conhecimento humanístico, de zargunchada, que fere
pelo certeiro. O primeiro tema está na ordem do dia, tem feito correr muita
tinta dos jornais e dado azo a mesas redondas ou a entrevistas de discussões
arrebatadoras, que mostram bem o baixo nível da nossa formação cultural. Tem por
título «Futebol: o reservatório da violência alimentado pelo dinheiro,
pelos media e pela complacência de todos», formidável libelo
acusatório que envolve governo e nação e que já Fradique Mendes justifica, na
citação do autor, como idiossincrasia justificativa da nossa falta de classe. O
segundo tema, «O
rei parece vestido», da sua –
e nossa – impaciência, a que regressa, na constatação de uma presença que não
aprende a moderar-se, espécie de fogo fátuo no pantanal da nossa bacoquice, é
mais que justo, mas, infelizmente, arrastado pelo chão da indiferença e da
toleima de quem não quer “enxergar-se”, na sua ânsia imoderada de notoriedade.
I - OPINIÃO
Futebol: o reservatório da
violência alimentado pelo dinheiro, pelos media e pela complacência
de todos
As claques de futebol dos grandes clubes são as
únicas associações de criminosos que funcionam à luz do dia.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 19 de Maio de 2018
Como é que se põe uma bola para baixo quando ela está quase sempre em
baixo? Na verdade, como é uma bola, está sempre ao mesmo tempo para cima, para
baixo, para o lado. Mas, pensando bem, por que razão deveria estar para
baixo, quando esta espuma dos dias violenta é um tão bom negócio para tanta
gente? Minha cara gráfica do PÚBLICO, coloque a bola na sua posição
normal, e a mais oficial das bolas, porque isto do futebol é uma coisa séria,
com o beneplácito das mais altas instâncias da nação. Deixe vir o esquecimento
rápido do ritmo dos media e tudo vai continuar na mesma.
Por muito que se bata no peito e se façam os protestos habituais e se
digam todas as coisas convenientes, não é preciso ser um telepata nem um
adivinho para perceber que são coisas de muita circunstância e pouca substância
e que na verdade ninguém está muito indignado com o que se passou. Digo isto,
porque coisas semelhantes ocorrem ciclicamente, segue-se uma onda de indignação
e depois volta a velha complacência de sempre: “são coisas do futebol”...
Têm razão, são de facto coisas do futebol. Ou,
dito doutra maneira, são coisas onde circulam legal e ilegalmente muitos
milhões, muito mais milhões do que em 90% das empresas portuguesas. São um maná para uma comunicação social
que não sabe viver sem futebol, ou melhor sem “este” futebol, o dos Brunos, dos
Pintos, dos Vieiras, dos No Name Boys, dos Super Dragões, da Juve Leo e
quejandos, que parece que tem um espasmo para não lhe chamar outra coisa,
sempre que há um “derby”. São um maná para o poder político que precisa de
circo quando não há pão e onde Centeno e os seus antecessores abrem os cordões
à bolsa para que haja sempre surtos patrióticos a propósito da bola, cheios de
bandeiras e bandeirinhas, cachecóis e varandas engalanadas, cheios de Portugal
gritado a plenos pulmões, quando ninguém mexe uma palha num país que perde
soberania todos os dias.
O que se passa diante dos nossos olhos, trazido pelas prestimosas
televisões e por uma multiplicidade de directos na rádio e capas de jornais,
não engana ninguém. Só
não vemos porque não queremos ver. As claques de futebol dos grandes clubes
são as únicas associações de criminosos que funcionam à luz do dia.
Esta gente viola todas as leis, matam pessoas, praticam extorsões várias,
organizam gangues, com negócios obscuros, droga, protecção e segurança
nocturnos e diurnos, executores de vinganças e ajustes de contas, e exércitos
que desfilam nas nossas ruas protegidos pela polícia como animais perigosos que
de facto são. Ah! bela juventude com as nossas cores, azuis, vermelhas e
verdes, a que só falta cantar a Giovinezza ou o Cara al Sol! E é
mais por ignorância do que por falta de vontade.
Ai não sabem? Se não sabem, é porque não querem saber. Há futebol puro e
limpo para além disto? Não, não há, isto conspurca tudo e todos são cúmplices.
Eu espero sempre que nem um cêntimo dos meus impostos vá para estas mafias, nem
para dar “utilidade pública” a estes empórios do crime e da corrupção, nem para
pagar as medidas excepcionais de segurança dos jogos tidos como “perigosos”,
nem para os bancos que perdoam empréstimos aos clubes mas recebem de todos nós
milhões, e por aí adiante, mas espero sentado.
E agora prometem-nos mais uma despesa com uma Autoridade Nacional contra
a Violência do Desporto para esconder a enorme responsabilidade do Estado, da
justiça, dos governos, dos partidos neste estado de coisas. Quase que posso jurar que se já existisse,
com os seus locais, gabinetes, pessoal pagos pelo Orçamento do Estado, nada
poderia contra os espécimes que os adeptos, os sócios, as claques, as ilustres
figuras públicas, escolhem para dirigir os clubes e contra os bandos de matraca
e faca que eles acolhem no seu seio. O que é que impede o Governo e a justiça
de agir com os mecanismos que já têm? Nada, a não ser esta miserável
complacência e cumplicidade que já Fradique Mendes, numa das suas cartas onde
melhor retrata Portugal, atribuía ao nosso povo:
Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração.
Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós portugueses,
nos enche de culpada indulgencia uns para os outros, e irremediavelmente
estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem.
II- OPINIÃO
O Rei parece vestido
O Presidente é muito narcisista, como todos sabemos, e suspeita que
Costa se possa sair melhor destes tempos do que ele.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 12 de Maio de 2018
Custa-me acrescentar mais água ao mar de palavras que as entrevistas e
intervenções do Presidente da República têm suscitado, porque, com toda a
franqueza, não me parece terem nada de relevante. Talvez porque não haja muito
sobre o que falar.
Comecemos pelo princípio: por que razão o Presidente, que já fala
muito todos os dias e produz um metadiscurso quotidiano sobre tudo o que
acontece, resolveu dar uma série de longas entrevistas a vários órgãos de
comunicação social? Aconteceu algum drama político, existe uma qualquer crise
previsível a curto prazo, há alguma tensão escondida nalgum lado que precise da
sua palavra para deixar de ser tensão? Não e não e não.
Talvez porque, como a sua natureza de comentador tenha horror ao vácuo,
ele perceba que está a mergulhar nele, com a continuidade de um ciclo político
no qual o seu papel acaba por se centrar nas questões “fracturantes”, um pouco
como o Bloco de Esquerda. Talvez porque desde os incêndios ele não tem estado
no centro dos acontecimentos por muito que fale. E talvez seja por isso mesmo
que recorrentemente volta a falar dos incêndios, acabando por produzir numa das
entrevistas a mais absurda das afirmações, a de que não se recandidataria, caso
se repetisse o que aconteceu nos grandes incêndios do ano passado. O que é que tem uma coisa que ver com a outra?
Para além de que é muito pouco provável que se repita a tragédia do ano
passado — ou seja, o Presidente vai-se recandidatar —, significa a
frase que considera nula a sua influência sobre o Governo, que não faz nada do
que o Presidente pediu, ou considera que, como procedeu nesses meses todos como
se fosse ele o chefe do Governo, assumiria a responsabilidade pessoal pela
repetição da tragédia? Não se percebe.
Como também não se percebe o seu discurso sobre os perigos do populismo,
um pouco out of the blue. Sim, sem dúvida que os riscos do populismo estão
a crescer em toda a Europa, mas em Portugal o populismo nunca conseguiu ter um
rosto e um movimento que penetrasse no escudo partidário, em que as fraquezas
dos partidos são também uma força. Aliás, a maioria das prevenções que fez,
aplicar-se-iam em primeiro lugar a ele próprio, que é o único que em Portugal
está numa posição de popularidade com base pessoal, e no exercício “afectivo”
que tem feito da Presidência, isso, sim, típico do populismo. Para além disso,
o Presidente tem uma longa história de, em determinadas matérias, ter sido
sempre um defensor de posições populistas em matéria de sistema político, desde
quando era comentador. Uma dessas matérias é perigosíssima e diz respeito às
questões de Justiça, em que o Presidente não está muito longe do CDS quanto à
celeridade da Justiça à custa dos direitos dos acusados, nem do Bloco de
Esquerda, quanto ao segredo bancário e à inversão do ónus da prova.
Por último, no meio de dezenas de frases, vieram os habituais recados
aqui transmitidos pela imprensa, mas que o Presidente não se tem coibido de dar
a toda a gente com quem fala. Um é de que se o Orçamento do Estado não for
aprovado nem à esquerda, nem à direita, convocará eleições. Claro que sim, é
natural que o faça, porque isso significa que o acordo político no qual assenta
o Governo, em que essa é uma obrigação de todos os partidos que o subscreveram,
perdeu a sustentação parlamentar. No momento em que o Orçamento for chumbado,
há um ou mais partidos que não querem este Governo e ele terá de se ir embora
para novas eleições. O Presidente não tem alternativa.
Neste contexto, António Costa respondeu sempre bem ao Presidente, o que
nem sempre é fácil, visto que neste combate verbal o Presidente sabe-a toda.
Mas Costa disse duas coisas mortíferas para esta logomaquia presidencial e que
não tenho dúvidas deixaram o Presidente mais furioso do que o habitual. Uma de
que “é muito difícil
interpretar a arte moderna e nem sempre é possível interpretar os
discursos modernos”. Esta foi no alvo e era menos
tradicional. A outra, mais comum e menos original, mas que também é má para o
Presidente, é a de que “o Presidente da República não manda recados pela
imprensa”. Claro que manda por todos meios.
O Presidente é muito narcisista, como todos sabemos, e suspeita que
Costa se possa sair melhor destes tempos do que ele. E sabe melhor do que
ninguém que os “afectos” não duram muito e não ficam na história. Por isso,
responde à ameaça de vazio da única maneira que conhece: falando. Só que
a fala gasta-se.
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