domingo, 27 de maio de 2018

“E foi assim que em Portugal nasceu o fado”



Lembro-me deste verso conclusivo de um fado qualquer, antigo, mas a Internet não me esclarece, e terei que acreditar na minha memória em razão do título que veio ao caso, ou por acaso. De facto, às designações do conceito “indivíduo”, tais que “individualismo” e outras categorias morfológicas, expressivas de velhos tempos que distinguiam classes e entronizavam alguns seres, como sempre, de resto, se fez, até mesmo na selva, e já Sá de Miranda explicava:  - “Forças e condição boa / deram ao leão coroa / da sua grei montesinha” – nos tempos do meu passado antigo, à parte esses individualismos, que tantos seres distinguiu, havia o pormenor da “nação” que sobretudo se valorizava, e se colocava acima do indivíduo que foi denominado até, “carne para canhão”, não tendo nós, contudo, outros meios de ataque e defesa mais expressivos, como agora se vê, cruzando os céus, para gáudio ameaçador de alguns - outros que não nós, todavia, naturalmente mais afeitos à guerra do Solnado, da bala atada com a guita e assim sucessivamente recuperada.
Tudo isto vem a propósito – ou a despropósito, no tanto faz da nossa incapacidade de solução - do termo socialismo, dos artigos que seguem, palavra não admitida nesses meus velhos tempos, só conhecida de alguns, mais letrados e desobedientes, embora as raízes do tal socialismo, como sócios ou sociedades, fossem bem conhecidas e aplicadas, mesmo com certa largueza tecidual, pois eram necessárias para a obtenção de riqueza. Mas hoje faz-se finca-pé na doutrina, que aponta para a melhoria da nossa condição humana, avessa a discrepâncias sociais, e por isso distintivo de todo o democrata que se preze. Que são todos, aliás, os que nos governam. São gente do “povo que lavas no rio”, a pretender também a máquina de lavar roupa, e a sua democracia socializante começou naturalmente por si próprios, que não os há, dir-se-ia, doutra espécie, desde há quarenta e tal anos de bons sentimentos, a puxar para o sentimento do nosso fado, que, para mais, como é pobrezinho, esbanja os dinheiros alheios.
Mas, enfim, as histórias das encruzilhadas de hoje, de geringonças e alianças, outros as sabem contar bem, António Barreto em “O socialismo Português”, como sempre aprumado e esclarecido, João Marques de Almeida em “A caminho do bloco central?”, com dados argumentativos que poderão ser certos, “sabe-se lá”?

O socialismo português
ANTÓNIO BARRETO
DN. 27/5/18
O socialismo português é coisa que não existe. E ainda bem. Se existisse, seria qualquer coisa má, como o soviético, ou risível, como o venezuelano. Existem, isso sim, socialistas. E um partido que faz anos, 45, dirige o actual governo e está em congresso. Já se sabe que só vai discutir o futuro, não o que está para trás. Não se vai falar de Sócrates, muito menos do seu governo, que nunca existiram. Não se vai debater a corrupção, obra da direita ou de gente que não existiu. Vai falar-se de grandes problemas, de questões de estratégia a longo prazo e do futuro, entidades com as quais se reduz qualquer congresso à insignificância litúrgica. As tentativas (e vai haver algumas) de debater problemas reais produzirão efeitos às duas da manhã numa sala vazia. Mais uma vez se verá como a separação entre eleição e debate foi, para a maior parte dos partidos, solução para esvaziar os congressos e entronizar a demagogia.
No século passado, houve quem julgasse que existia um socialismo português. Uns tantos militantes, alguns militares e pouco mais. Foi-se aprendendo que o melhor socialismo era o adjectivo, não o substantivo. Este é um despotismo, aquele é uma inspiração. Curiosamente, com as crises na globalização, no euro e na União, o substantivo voltou a estimular alguns espíritos. Isso também aconteceu no PS, por causa dos aliados de esquerda que tão bem fizeram ao PS e que tão mal se preparam para lhe fazer. Só que já se percebeu que o debate sobre o socialismo em Portugal é conversa para entreter congressistas.
De qualquer modo, é verdade que o PS está num momento excepcional da sua vida. O PS vai refazer a sua identidade e definir o seu papel na sociedade. Na verdade, hoje, o PS existe por um acaso estatístico e um golpe de sorte irrepetível. Não fora o período de austeridade, talvez o PS não fosse hoje mais do que uma colecção de cromos. Aqueles quatro anos criaram um descontentamento de que o PS teve a sorte de beneficiar.
O que será, então, o PS do futuro? Para que servirá? Como resistente ao fascismo, trave mestra do pensamento da esquerda, já fez o que pôde, mas nem sequer foi o principal. Já a resistência ao comunismo fez a sua glória, em Portugal e na Europa, foram os anos de ouro. É a sua principal identidade histórica, mas não haverá, felizmente, segunda oportunidade. Fundador da democracia, com certeza, mas não foi o único. Responsável pela integração europeia, sem qualquer dúvida, mas não esteve sozinho. Foi co-autor do Serviço Nacional de Saúde, teve o talento de ter feito a primeira lei, mas o desenvolvimento foi obra de vários. Na criação de riqueza, a sua autoria é quase nula. Já no endividamento, a sua responsabilidade é maior. Reformas da Educação e da Segurança Social: para o bem e o mal, andou por lá, sem originalidade, foram muitos os autores. Na Justiça, o seu envolvimento foi profundo, mas inútil, quem sabe se nefasto. No combate à desigualdade, na descentralização, nas autonomias regionais, nas privatizações, nas revisões da Constituição, no euro, nas auto-estradas e nas parcerias público privadas, o PS esteve em todas, no melhor e no pior, no activismo e na inutilidade, com outros, sem marcas especiais nem currículo digno desse nome.
As promessas que o PS vai deixar no fim deste congresso são conhecidas e pertencem à galeria dos lugares-comuns imortais. Igualdade social, de género, de etnias e de origens! Segurança! Descentralização! A cultura! O mar! Estamos conversados. Onde o esclarecimento falta é naquela que poderia ser a mais profunda marca do PS nas próximas décadas: a luta contra a corrupção! Contra os negócios do Estado, os favores e o nepotismo. Contra as cunhas e a promiscuidade. Contra a ocupação partidária do Estado. Contra a dependência dos plutocratas e dos sindicatos.
Com o seu currículo recente, é difícil imaginar um PS capaz de corrigir as causas da corrupção e de barrar os caminhos que a ela conduzem. Mais uma razão para fazer desse desígnio o mais importante do seu futuro próximo. Com liberdade e justiça, é aquilo de que Portugal mais precisa.
As minhas fotografias
Expo, Oceanário em construção, Lisboa. Um ou dois anos antes da inauguração da Expo de 1998, este Oceanário, que agora comemora os seus 20 anos, estava em construção. Foi certamente uma das melhores iniciativas da grande feira. Ficou para sempre. Ensina-se e aprende-se. É bonito, ou pelo menos atraente, e desperta a curiosidade. Dá para ver coisas nunca vistas, desde peixes horrorosos e tubarões a lontras e raias gigantes. Pode até ver-se especialistas a dar de comer a algumas espécies quase à mão. Nesta imagem, vêem-se trabalhadores em andaimes numa zona que virá a fazer parte das grutas e dos tanques. Eles construíram, mobilaram, decoraram e pintaram tudo aquilo que hoje nos parece natural e genuíno, incluindo algas, flores e corais. Estas artes de encenação são formidáveis. Ao contrário de tantas outras disciplinas, em que a encenação é mentira e propaganda! Fotografia de António Barreto

A caminho do bloco central? /premium
OBSERVADOR, 27/5/18
Costa quer lavar a imagem do PS perante o eleitorado e Rio é o melhor aliado para o fazer. Já Rio precisa de poder para se manter na liderança do PSD após 2019 e, como PM, Costa pode ajudar.
1. Um governo entre o PS e o Bloco de Esquerda é ainda o cenário mais provável para depois das eleições de 2019, mas menos do que até há um mês atrás. Um bloco central (ou um entendimento parlamentar entre o PS e o PSD) é um cenário possível, desde a eleição de Rui Rio para a liderança dos sociais democratas, mas a possibilidade aumentou desde há um mês. O que aconteceu há um mês foi a decisão do PS para acabar politicamente com Sócrates.
A maioria do país político está neste momento unido no que poderíamos chamar o ‘momento Leopardo’ da política nacional. Na seu famoso livro, O Leopardo, Tomasi Di Lampedusa coloca a personagem principal, Dom Fabrizio, o Príncipe de Salina, a afirmar, no meio das revoluções que levaram à unificação de Itália, “é necessário que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.“ Neste momento, em Portugal, já se percebeu que a ‘condenação’ de Sócrates (e talvez de mais alguns dos seus antigos ministros) permitirá a ilusão de que muito mudou para que fique (quase) tudo na mesma.
António Costa percebeu que seria necessário terminar de vez com a herança de Sócrates cerca de um ano antes das eleições. Ao contrário do PS de Sócrates, o PS de Costa sabe gerir as finanças públicas, de tal maneira que o seu ministro das Finanças foi escolhido para presidir o Eurogrupo. O PS de Costa lidera o combate à corrupção, de tal modo que os seus principais dirigentes sentem “vergonha” pelos actos praticados por Sócrates. Para chegar de cara lavada às eleições de 2019, o PS tem que deixar cair Sócrates e o seu segundo governo, entre 2009 e 2011.
Também já se percebeu que a oposição não pretende atrapalhar a estratégia do PS e de Costa. A recusa da liderança de Rio para aproveitar politicamente o problema Sócrates sugere que há um acordo entre o líder do PSD e o PM. Aliás, Rio parece empenhado em fazer o contrário do que sempre disse. No passado, defendeu, e com empenho, o combate à corrupção, mas agora como líder do PSD facilita a estratégia socialista de se libertar do caso mais embaraçoso da sua história.
O CDS, quase sempre agressivo no combate ao governo, também não quer capitalizar com o caso Sócrates, e o seu silêncio até chega a ser perturbador. O BE e o PCP também estão calados, mas com estes já nada espanta. A verdade é que fica a ideia de que se sabe como começaram as investigações a Sócrates e a Salgado mas ninguém sabe como poderão acabar. O receio exige prudência. Se o PS não deixa que a investigação a Sócrates o destrua, os outros partidos também não permitem que as investigações a Sócrates e a Salgado enfraqueçam a democracia portuguesa (ou os seus partidos para ser mais rigoroso).
O que está em causa não é pouco. Não sabemos como vai progredir a investigação a Sócrates e a Salgado. Também desconhecemos como será o combate de Sócrates pela “sua verdade”, mas a entrevista que deu à Visão mostra um homem convencido que está certo e preparado para a luta. Tendo em conta o desenvolvimento das investigações judiciais e a luta de Sócrates, a questão que se colocará em 2019 é a seguinte: será uma aliança com o BE ou mesmo uma nova geringonça suficiente para concluir a estratégia Leopardo ou será necessário um entendimento político mais alargado entre PS e PSD? A verdade é que Costa quer lavar a imagem do PS perante o eleitorado e Rio é o melhor aliado para o fazer. Por outro lado, Rio precisa de poder para se manter na liderança do PSD após 2019 e, como PM, Costa pode ajudar.
2. A evolução da situação política europeia também poderá favorecer um entendimento entre o PS e o PSD. As incertezas do Brexit (em Março) e as crises políticas em Itália e em Espanha vão fazer de 2019 um ano complicado e instável. Em 2019, a Itália estará em conflito com a União Europeia, por causa das regras do Euro, ou a preparar-se para novas eleições. E a Espanha continuará entre eleições, governos minoritários e o conflito entre Madrid e a Catalunha. Neste ambiente político, Portugal terá que mostrar que é o país mais estável no sul da zona Euro e isso poderá exigir mesmo um bloco central.


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