terça-feira, 22 de maio de 2018

«Eu queria dizer que não»



Mais dois textos dos nossos casos sociais e políticos, já, afinal ancestrais, que, ao invés de apelarem a uma qualquer tirada comentarista, nos sugerem antes músicas do nosso ouvido, que reproduzo, como corolário dessas crónicas transcritas – a de Alexandre Homem Cristo sobre Bruno de Carvalho e as suas virtudes dinamizadoras do seu clube, mas, de momento, incompatíveis com o espaço que ali ocupou, et pour cause. A de António Barreto, que sempre nos encanta com a sua forma requintada, de paralelismo ou antítese suficientemente inteligíveis e drásticos.  Dois textos, continuadores da visão de Bem e Mal, segundo conceitos hoje quantas vezes ironizados, numa doutrina de relatividade e indiferença irónica, libertadoras do preconceito.  Mas já Sophia o recordou, num lirismo de condenação, em outros contextos políticos, e lembrei-me do seu poema «Porque», naturalmente de expressão antifascista, mas reveladora de uma continuidade do preconceito, afinal. Por isso riamos um pouco, ouvindo Dengaz, também, aplicando-o ao nosso statu corruptivo de permanência, embora seja isento, o seu poema, de intenção política, e mais fruto destes tempos de amores desmedidos, título que podemos virar, contudo, para o contexto dessa corrupção em que chafurdamos, “malgré nous“. Eu queria dizer que não

Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não
.         Sophia de Mello Breyner Andresen

Eu queria dizer que não
Mas estou contigo
Eu queria dizer que não
Mas não consigo                 
Dengaz
I - SPORTING:  Bruno foi um bom presidente, mas isso não importa /premium
ALEXANDRE HOMEM CRISTO                   OBSERVADOR, 21/5/2018
Como instituição centenária, o Sporting tem o dever de exibir o vigor institucional necessário para se libertar de quem o está a prejudicar – mesmo que lhe deva muito dos seus sucessos recentes.
Bruno de Carvalho não tem condições para permanecer na presidência do Sporting pelas mesmas razões que não sentiu ter condições, ontem, para representar institucionalmente o seu clube na final da Taça de Portugal: a sua presença é factor de instabilidade para adeptos, equipa técnica, jogadores e claques. Perdeu os apoios que tinha entre dirigentes, incompatibilizou-se com accionistas, está em conflito aberto com os futebolistas mais emblemáticos do Sporting e, mesmo que indirectamente, está associado à violência contra os jogadores em Alcochete. Nesta fase, a sua permanência na liderança do clube trará mais prejuízos do que benefícios. A culpa é do próprio, que se deixou derrotar pelo seu estilo de presidente-adepto quezilento e rude – que foi tolerado pelos sócios em nome de um bem-maior, até que se tornou intolerável por visar aliados e equipa de futebol. O que tem o seu quê de trágico: o homem que melhor presidiu ao Sporting nas últimas duas décadas e que teve nas mãos a hipótese de atingir o Olimpo sportinguista sairá, afinal, pela porta pequena.
Sim, importa dizê-lo: nos últimos cinco anos, o Sporting melhorou muito graças à presidência de Bruno de Carvalho. Do ponto de vista financeiro, recuperou de uma situação de quase bancarrota. Renegociou o pagamento da dívida do clube, baixou as folhas salariais, equiparou o valor dos direitos televisivos e dos patrocínios ao dos rivais (que ganham mais títulos) e estabeleceu um rumo para a recuperação financeira da instituição – de resto, a SAD bateu vários recordes de lucros. No futebol, soube comprar jogadores para valorizar e soube vender outros por quantias recordes para o clube. Desportivamente, aumentou os índices de exigência e o desempenho do futebol, ganhando Taça de Portugal e Supertaça. É certo que não foi campeão nacional, mas é igualmente certo que foi o primeiro a ficar desiludido com esse fracasso – embora com ele tenham sido batidos recordes de pontos na liga. Ou seja, o Sporting voltou a ser competitivo, ao contrário do que era em 2013, aquando de um sétimo lugar no campeonato que afastou o clube das competições europeias. Mais: nas modalidades, devolveu prestígio e destaque ao clube – investiu na construção de um pavilhão, apostou na formação de equipas competitivas nas diferentes modalidades e tem somado títulos de campeão em várias.
Bruno de Carvalho fez algo ainda mais importante: devolveu dimensão ao Sporting. Durante anos e anos, os adeptos do Sporting habituaram-se a medir cautelosamente as suas ambições, a pensar pequeno, a lutar pelas sobras dos rivais. Bruno de Carvalho lembrou a todos que o Sporting era mais do que isso e empolgou pelo amor à camisola: o número de sócios do clube subiu em flecha, as médias de assistência no estádio também. Hoje, quando o Sporting não ganha, os adeptos sentem uma mágoa que haviam esquecido durante anos – as derrotas tinham deixado de doer.
Reconhecer todos estes méritos é uma questão de justiça. Mas não equivale a defender Bruno de Carvalho nesta hora negra causada maioritariamente por si mesmo – a sua saída é desejável porque uma linha vermelha foi ultrapassada. Sublinhar os méritos de Bruno de Carvalho serve para assinalar duas ideias que, nestes dias turbulentos, há que preservar. Primeiro, ao escolher Bruno de Carvalho nas eleições de 2013 e 2017, os sócios não se enganaram. Escolheram certo porque escolheram alguém que valorizou a instituição Sporting nas suas várias dimensões – financeira, desportiva e institucional – apesar de o seu estilo de liderança não se recomendar (e não agradar mesmo aos sócios que o elegeram). Segundo, agora, quando pedem a sua demissão, os sócios estão a utilizar o mesmo critério e a manter a razão do seu lado: o homem que antes valorizou o clube está, agora, a desvalorizar a instituição Sporting.
A compatibilidade destas duas ideias não é fácil de explicar num país em que tão facilmente se confundem as instituições com as pessoas. Sim, Bruno de Carvalho foi um bom presidente, mas isso não importa a partir do momento em que se torna o protagonista de uma crise institucional com implicações desportivas e financeiras. É essa a prova de fogo que o clube enfrenta e cujo desfecho dirá quão grande é mesmo o Sporting: como instituição centenária, tem o dever de exibir o vigor institucional necessário para se libertar de quem o está a prejudicar – mesmo que lhe deva muito dos seus sucessos recentes. É assim que as instituições se afirmam maiores do que as individualidades. E só assim é que as instituições podem sobreviver na adversidade.
II- Sem recurso nem recuo
ANTÓNIO BARRETO                      DN, 20/5/18
Quando alguma coisa falha, procuramos um recurso. Junto de alguém, pessoa ou instituição. Com frequência, pensamos ter recuo. E tempo de espera e reflexão. É uma defesa, uma precaução. Melhor ainda, uma cópia de segurança. O backup. A instituição de emergência. O exército de reserva. A brigada de última instância. Quando a Terra treme, invoca-se Deus. E faz-se o mesmo perante as tempestades. Até os ateus, que nem sempre confiam nos pára-raios.
Quando há crise, olha-se para a finança e a segurança social. Quando a nação está em perigo, espreita-se para os países amigos. Quando o Estado corre riscos, conta-se com os militares. Quando a ordem e a segurança ameaçam ruir, espera-se pela polícia. Quando as elites falham, chama-se o povo. Quando os empresários fogem, recorre-se ao Estado. Quando a saúde está periclitante, procura-se o médico. Quando a corrupção reina, confia-se na justiça. O pior é quando a justiça tarda...
Há momentos na vida de uma nação em que, de repente ou gradualmente, se tem a sensação de que o recuo é curto e de que o recurso é cada vez menor. Que tudo tem falhado. A justiça, o diálogo ou a decência humana.
Numa área, especialmente, a falta de recurso é assustadora. A falta de justiça é aterradora. Os imediatos apelos à justiça privada são o anúncio do pavor. As tentações da justiça pelas próprias mãos são sinais de desespero e de inferno à vista.
O pior da corrupção, privada ou pública, partidária ou empresarial, é que cada vez menos há recuo. Ainda se pensa em justiça, sobretudo com processos de inédita dimensão e inimaginável gravidade. Mas quando chega a vez de a própria justiça falhar ou se sentar no banco dos réus, então sente-se o frio nas costas, o arrepio do abismo: não há recurso nem recuo!
A corrupção é injusta e imoral. É socialmente desigual e culturalmente repugnante. Eticamente condenável e politicamente abjecta. Infelizmente, parece que a maior parte dos que condenam a corrupção o fazem mais por inveja do que por convicção.
Estranhamente, a corrupção tem quase sempre defensores ou pretextos. Vale para crescer a economia e criar emprego. Serve para aumentar as exportações. Aceita-se para defender os interesses dos munícipes, para apoiar as iniciativas locais e para satisfazer as necessidades dos povos locais. É útil para democratizar a economia. Adopta-se para defender a democracia e recompensar os que deram contribuições financeiras para os partidos. Justifica-se para satisfazer grandes e antigas famílias com história de serviço ao país e à pátria. Admite-se para isentar, de impostos e taxas, famílias, partidos, igrejas, sindicatos e associações. Utiliza-se para conceder subsídios especiais de criatividade ou solidariedade. Acode qualquer pessoa que se diga partidária das startups tecnológicas e se declare favorecer causas actuais, como as energias renováveis e as alfaces biológicas. Usa-se para arranjar as parcerias público-privadas. Desculpa-se para confortar a insularidade e a interioridade.
Até ao dia da indignação. Até chegar a altura do escândalo. Até ao momento em que a corrupção se torna intolerável. Em Portugal, esse momento já chegou. Faça-se a lista completa dos políticos, governantes, deputados, altos funcionários, magistrados, polícias, empresários, gestores e outros intermediários, facilitadores e fura-vidas envolvidos com a justiça e fica-se com um horrendo panorama de uma quermesse de maus costumes. Marque-se, para cada um, o tempo de espera, o atraso do processo e os procedimentos dilatórios e ter-se-á um quadro completo de ineficiência e de injustiça.
É verdade que a democracia pode sempre generalizar a corrupção. Numa palavra, democratizá-la. Mas também pode ser a única maneira de a combater preservando as liberdades. As mãos limpas e a ética justicialista acabaram sempre mal: não limparam a corrupção nem salvaguardaram as liberdades.
As minhas fotografias
Janela manuelina do Convento de Cristo, em Tomar. É talvez a mais famosa janela de Portugal. Também conhecida como "janela do Capítulo". Fica em Tomar, cidade excepcional de monumentos e obras de arte. Tem o Convento de Cristo, pois claro. O aqueduto de Pegões (século XVI). A Ermida de Nossa Senhora da Conceição, obra-prima renascentista entre todas (século XVI). A Sinagoga da cidade, caso raro de arquitectura da região e do país (século XV). A Igreja de Santa Maria dos Olivais (século XII). E tem também outras belezas, sem esquecer o rio Nabão, a cidade velha e a Tomar do século XIX e das indústrias. Esta janela já foi fotografada por milhões de pessoas. Já foi bandeira, rótulo de vinho e selo de correio. Já foi cartaz, azulejo e capa de livro. Mas não é mantida e preservada com todo o cuidado. Como deveria ser. A janela e todo o convento. Este convento e os outros. Neste Ano Europeu do Património, talvez seja mais uma oportunidade. Para mais orçamento. E mais atenção...

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