quinta-feira, 10 de maio de 2018

Temas do nosso silêncio progressista



É o que pretendemos demonstrar, com o nosso silêncio obcecado pela vida – no seu espectáculo diário, de corrupções aos molhos, tratadas hoje com o prazer expressivo da nossa honradez ruidosa, de incêndios sazonais que matam, o resto do tempo servindo de pasto de conversa e notícia televisiva e parlamentar, na previsão dos próximos.
Este tema do despachar da morte de seres que estão a mais, num mundo cada vez mais carente de espaço, não é importante, por isso se silencia, como que garantida já a aprovação da lei em 29 deste mês. O texto de Duarte Soares sobre a eutanásia volta a focá-lo, recebendo o justo premium, do jornal online OBSERVADOR, que não faz mossa no Governo progressista. Como disse o tal Hamlet, “o resto é silêncio”, todos o sabem. Precipitar esse “silêncio” para alargar o espaço habitacional, para mais sob a capa da piedade, só nos eleva culturalmente, embora estejamos na cauda, quanto a cultura.
Mas leiamos também o bonito texto de Laurinda Alves, com sugestões de fraternidade, essa autêntica, merecedor igualmente de premium do OBSERVADOR, criemos condições de vida mais feliz aos deserdados do destino.
I- Eutanásia: debate interrompido, precipitam-se decisões, antecipam-se consequências / premium
DUARTE SOARES                                 
OBSERVADOR, 9/5/2018
Assistiremos a um desinvestimento na provisão de cuidados paliativos? À banalização da morte “a pedido”? À descaracterização do ato médico? Ao enfraquecimento da cultura de cuidar os mais vulneráveis?
Discutem-se em Parlamento, no dia 29 de Maio, os quatro projectos de lei sobre eutanásia e morte medicamente assistida.
Perguntar-se-ão muitos dos nossos concidadãos o porquê de tanta urgência na tomada de decisões, encurtando o tempo de reflexão, limitando a oportunidade de análise, nesta matéria que é de grande seriedade e complexidade.
Após um debate que, na sua globalidade, pouco ou nada analisou a evidência científica existente em Portugal e reconhecida internacionalmente (sobre aspectos fundamentais como o sofrimento existencial, desejo antecipado de morte e terapêuticas psico-sócio-espirituais), suspende-se agora abruptamente a discussão para a precipitada contagem de votos.
É-nos assim imposto o fim do debate ao mesmo tempo que se ignoram alertas de especialistas médicos, enfermeiros, juristas e eticistas. Paralelamente, o conhecimento real da maioria dos portugueses sobre os projectos de lei em causa – e das suas cabais implicações na vida de todos e de cada um – permanece manifestamente reduzido.
O caminho natural será (ou seria) o de prolongar o debate, aprofundar a reflexão, consciencializar a sociedade civil, informar decisores sobre todos os ângulos de tão complexa matéria. Reitero ser esta, provavelmente, uma das mais complexas mudanças com que que a nossa sociedade se deparará nos próximos anos. Temos a responsabilidade de partir invariavelmente da evidência científica da mais alta qualidade, aprendendo também das experiências obtidas em países onde legislação semelhante tem sido aplicada, como a Holanda, a Bélgica ou o Canadá.
Antecipemos então consequências preocupantes, baseando-nos não só no que observamos a nível internacional mas também nas especificidades do nosso país. Assistiremos a um desinvestimento na provisão de cuidados paliativos? À banalização e facilitação da morte “a pedido”? À descaracterização do ato médico e da relação médico doente? Ao enfraquecimento da cultura de cuidar dos mais vulneráveis?
Independentemente das decisões tomadas em Parlamento pela Assembleia da República, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos procurará, de forma construtiva, colaborar com os decisores, prestadores de cuidados e seus utilizadores (doentes e famílias, que um dia poderão ser qualquer um de nós), lutando por um direito humano e prioridade de saúde pública, que apesar de universal tem sido sistematicamente negligenciado: a necessidade de, enquanto sociedade, oferecermos cuidados de fim de vida humanizados e da mais alta qualidade – incluindo cuidados paliativos – a todos e cada um dos nossos concidadãos.Tornar-se-á seguramente um caminho mais exigente e difícil, mas o que melhor servirá as gerações futuras.
Médico de Cuidados Paliativos              Presidente Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.

COMENTÁRIOS
Victor guerra: Mais um "tótó" que vem com pezinhos de lã, defender o imobilismo e desprezar as pessoas. Os paliativos não existem numa sociedade que ´é pobre. Aliás, "todos os dias" se praticam eutanásias, por escassez e opções no uso dos meios operacionais. Só que essas não são por opção dos doentes
Joao Ratao - > victor guerra: Caro Victor  Aqui o problema são os pobres. Esses, se o estado não lhes garantir cuidados, serão abandonados. Os ricos pagarão cuidados paliativos do seu bolso. A grd. preocupação é: havendo a possibilidade de pedir a eutanásia, o estado responsabilizar-se-á pela prestação de cuidados a pobres em agonia? Isso é que preocupa. O grd. problema será com aqueles que no fundo não querem morrer. Mas que tb. não têm possibilidades para pagar os cuidados paliativos. Esses, parece-me que serão abandonados. A grd. preocupação é: havendo a possibilidade de pedir a eutanásia, o Estado responsabilizar-se-á pela prestação de cuidados a pobres em agonia? Isso é que preocupa.
Jorge Marques: Mais um que fala em causa própria (Presidente da Associação de Cuidados Paliativos). "Terapêutica espiritual", que eu saiba, não faz parte das especialidades médicas reconhecidas. Os cuidados "paliativos", como o nome indica (do Latim, pallium, significa neste contexto disfarçar, encobrir) destinam-se a melhorar ou aliviar momentaneamente um problema, mas não impedem a morte. E devem sobretudo ser uma escolha do doente. A eutanásia é mais uma escolha. Quanto aos actos médicos, o juramento de Hipócrates foi alterado (não é a primeira vez) para abranger precisamente a eutanásia, e isso foi feito pela Associação Médica Mundial, que é o órgão de referência nessa matéria.
José Paulo C Castro - > Jorge Marques
E o facto de se ter alterado (nesse ponto) um juramento de Hipócrates que resistiu ao tempo, que durou milhares de anos sem ser questionado, por muitas e boas gerações antes de nós, numa altura em que já havia a possibilidade de eutanásia e que é anterior à influência judaico-cristã, não lhe faz soar campaInhas de alarme ? O que mudou desde então? Eu digo-lhe: a população mundial envelheceu. É preciso empurrá-los para a "escolha
Paulo Silva: Os fins justificam os meios e a revolução cultural em curso não pode abrandar… as eleições estão à porta.

DEFICIENTES
Elogio dos que abraçam /premium
LAURINDA ALVES                                        
OBSERVADOR, 8/5/2018
Porque é que nunca se interrogam porque é que demasiadas pessoas com deficiência vivem fechadas em casa, como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem nem transportes públicos adequados?
Pergunto-me muitas vezes porque é que os bloquistas e os geringoncistas, sempre tão amigos dos que eles acham que não têm voz (animais incluídos!) nunca param para defender as pessoas com incapacidades? Porque é que não fazem destas pessoas uma causa urgente? Porque é que lutam e gritam para que os animais sejam aceites em restaurantes e lugares públicos, por exemplo, quando sabem que nem todas as pessoas lá podem entrar? Porque ficam calados perante a multiplicação de espaços que não cumprem a lei das acessibilidades?
Porque não levantam a voz sempre que alguém portador de deficiência cai da sua cadeira de rodas por causa de uma rampa íngreme ou um passeio mal rebaixado? Porque não se incomodam quando alguém fica barrado à entrada de um museu ou de um café por não poder subir escadas e não ter acesso a uma casa de banho? Porque é que não se insurgem contra a falta de condições nas escolas e a falta de materiais de estudo para pessoas que não vêm e não ouvem? E porque é que nunca se interrogam porque é que demasiadas pessoas com deficiência ainda vivem fechadas em casa, como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem, nem transportes públicos suficientes para as trazerem e levarem das suas necessárias voltas?
Sinceramente não percebo a discriminação que fazem, pois ignoram olimpicamente uma realidade que toca milhões de cidadãos, incluindo famílias e cuidadores. Têm a pretensão de serem inclusivos, mas não são. Incluem, sim, mas apenas os que lhes dão votos ou podem gerar lobbies para defender ou assegurar os seus próprios interesses. Excluem ou pouco se importam com os que sofrem de doença mental, os que têm problemas de acessibilidade, os que são portadores de deficiência, os que de alguma forma vivem condicionados. Não está certo, não é sério e não faz sentido.
Abstraindo desta gente que diz preocupar-se com todos, mas só se preocupa com alguns, vale a pena determo-nos em realidades que nos interpelam pela lógica de superação e conquista que revelam. Falo de negócios que prosperam e de resultados que não se traduzem apenas em números, ou lucro financeiro. Existe desde 2003 uma cadeia de restaurantes em muitas capitais da Europa, que trabalham apenas com pessoas invisuais. Muitos conhecem ou já ouviram falar dos restaurantes “Dans Le Noir?” por ser uma experiência sensorial radical, muito para além da pura degustação gastronómica. Nestes restaurantes os clientes têm uma experiência de cegueira e são convidados a confiar desde que entram até que saem.
Confiam nos empregados, todos eles cegos, confiam no chef, nos menus e nos pratos que lhes são servidos, confiam no espaço que não vêm, confiam nos barulhos e sons que ouvem, confiam nas vozes dos que os guiam e lhes ‘mostram’ o que podem comer e experimentar. Confiam nas pessoas com quem estão e confiam inclusivamente que ninguém ali vê absolutamente nada, aceitando ir sozinhos à casa de banho, por exemplo.
Esta cadeia de restaurantes, que nasceu com o objectivo de despertar a consciência para a cegueira, mas também como projecto de responsabilidade social que emprega invisuais e prova as suas capacidades a quem duvida que possam gerar lucro e gerir um negócio, factura milhões de euros por ano e marca de forma muito impressiva todas as pessoas que aceitam sair da sua zona de conforto ao reservar uma mesa para almoçarem ou jantarem. Ninguém sai igual ao que entrou. A experiência tem tanto de inquietante como de desafiante e exaltante. Uma vez vivida, nunca mais é esquecida.
Em Paris há agora o Café Joyeux, café-pastelaria onde trabalham pessoas com vários tipos de deficiência mental e os clientes são servidos por jovens com Trissomia 21, mas não só. O core business, o coeur du coeur desta marca é precisamente servir com o coração. No novíssimo Café Joyeux todos acreditam que ninguém é perfeito e há muita beleza na imperfeição. Os vídeos que existem na net, bem como a recente inauguração presidida por Brigitte Macron, primeira dama francesa, mostram a naturalidade com que todos circulam num espaço criado para incluir e para dar oportunidades profissionais a pessoas com handicaps mentais, que raramente têm a possibilidade de trabalhar, de evoluir e de serem justamente remunerados. E justamente olhados e reconhecidos por quem não sofre de qualquer doença ou incapacidade.
Em Portugal já vai havendo negócios lucrativos fundados exclusivamente para apoiar pessoas com deficiência. Estou a pensar na Livraria Déjà Lu, que conheço bem e só vende livros em segunda mão, todos eles doados por leitores e autores, cujas receitas revertem exclusivamente para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. Também esta livraria é um negócio lucrativo e escalável. Um modelo que se pode replicar em qualquer ponto dentro e fora do país, coisa que faz todo o sentido quando falamos de gerar lucro financeiro e não só, pois o lucro dos projectos de responsabilidade social também se medem pela quantidade de pessoas apoiadas nas comunidades.
Todos os pais com filhos portadores de deficiência ou com algum grau de incapacidade sofrem diariamente com a ideia da sobrevida dos seus filhos, pois naturalmente morrerão antes deles. Também lhes dói o impacto brutal da exclusão sempre que pensam no futuro que (não) lhes está reservado. Num país onde não abundam escolas preparadas para acolher crianças e jovens com doença mental e onde a transição para a idade adulta geralmente se traduz por ficar em casa, sem nada para fazer, os pais preocupam-se e muito. Legitimamente.
Um jovem adulto com deficiência ou incapacidade está quase sempre condenado a não poder ir para a universidade, a não encontrar trabalho e a perder os poucos amigos que foi conquistando ao longo da vida. O isolamento dos jovens adultos e a sua inactividade é muitas vezes regressiva e sempre profundamente desoladora para os próprios, mas também para os pais e famílias, ou quem os substitui.
Nesta lógica e porque está tudo por fazer, os pais vão-se associando e tendo inciativas que mudam o mundo, transformam a realidade e mudam o nosso olhar. Os políticos, decisores e legisladores podem não se deter perante a realidade das pessoas com incapacidade, mas os cidadãos avançam e dão passos de gigante. É impressionante.
Vejo isso na rapidez fulgurante com que apenas uma mãe conseguiu mobilizar uma equipa inteira, quase um movimento cívico, para organizar um concerto solidário no próximo dia 17, no auditório do Colégio Boa Nova, no Estoril. Artistas, músicos, produtores, realizadores e apresentadores foram desafiados a dar o seu melhor e a estar com gratuidade neste concerto pelas gerações solidárias. A ideia é dar a conhecer um novo projecto que está a germinar e, de certa forma, se pode comparar ao recém-inaugurado Café Joyeux.
O sonho da Associação Vila Com Vida é criar em Portugal espaços de café-bar onde também só trabalhem jovens adultos com déficit cognitivo e doença mental, proporcionando-lhes autonomia e realização pessoal e profissional. Em Paris, os fundadores do Café Joyeux inspiraram-se em Jean Vanier, filósofo canadiano radicado em França, fundador d’A Arca em 1964, hoje presente em 35 países. Jean Vanier, autor de vários livros, recebeu o prestigiado Prémio Templeton por ter dedicado toda a sua vida a pessoas com incapacidades e ter criado uma fabulosa rede de casas de dimensão familiar onde vivem, em comunidade, estas mesmas pessoas com os seus cuidadores e formadores (alguns deles voluntários).
Jean Vanier ainda está vivo e faz 90 anos em Setembro, mas já raramente sai de uma destas suas comunidades, onde também ele mora. Na semana passada chegou a Portugal uma embaixada de franceses para falar do que é A Arca. Vieram os que têm deficiências mentais e os que cuidam deles. O grupo passou cá uma semana e ficou até ao dia em que foi lançado o extraordinário livro-testemunho “Ouve-se um Grito”, tradução portuguesa de “Un Cri se Fait Entendre – Mon Chemin Vers La Paix”, de Jean Vanier. Conheci-os todos pessoalmente e ouvi-os falar e contar como é o seu quotidiano. Percebi que cada uma das pessoas com deficiência trabalha e ganha o seu dinheiro, gerindo a sua vida e o seu tempo com razoável autonomia, graças ao apoio incondicional dos especialistas e voluntários dedicados que também moram n’A Arca.
É difícil tirar conclusões nesta matéria e escrever resumidamente sobre um tema tão vasto, tão complexo e tão sensível, mas não é possível passar ao lado. Por isso aqui fica o meu elogio a quem abraça, a quem acolhe, a quem luta, a quem se entrega. Deixo Jean Vanier, na primeira pessoa:
“Ao longo da minha vida, foram pessoas com alguma deficiência intelectual que, pouco a pouco, me transformaram, libertando-me dos meus medos, revelando-me a minha própria humanidade. Depois dos terríveis atentados que atingiram a França, parece-me mais importante do que nunca dar o testemunho de uma fraternidade que é possível entre os seres humanos, de culturas, de religiões e de histórias diferentes. Nada está perdido.”

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