É o que pretendemos
demonstrar, com o nosso silêncio obcecado pela vida – no seu espectáculo
diário, de corrupções aos molhos, tratadas hoje com o prazer expressivo da
nossa honradez ruidosa, de incêndios sazonais que matam, o resto do tempo servindo
de pasto de conversa e notícia televisiva e parlamentar, na previsão dos
próximos.
Este tema do despachar da
morte de seres que estão a mais, num mundo cada vez mais carente de espaço, não
é importante, por isso se silencia, como que garantida já a aprovação da lei
em 29 deste mês. O texto de Duarte Soares
sobre a eutanásia volta a focá-lo, recebendo o justo premium, do
jornal online OBSERVADOR, que não faz mossa no Governo progressista. Como
disse o tal Hamlet, “o resto é silêncio”, todos o sabem. Precipitar esse
“silêncio” para alargar o espaço habitacional, para mais sob a capa da piedade,
só nos eleva culturalmente, embora estejamos na cauda, quanto a cultura.
Mas leiamos também o bonito
texto de Laurinda Alves, com
sugestões de fraternidade, essa autêntica, merecedor igualmente de premium
do OBSERVADOR, criemos condições de vida mais feliz aos
deserdados do destino.
I- Eutanásia: debate interrompido, precipitam-se
decisões, antecipam-se consequências / premium
OBSERVADOR, 9/5/2018
Assistiremos a um desinvestimento na provisão de cuidados paliativos? À
banalização da morte “a pedido”? À descaracterização do ato médico? Ao
enfraquecimento da cultura de cuidar os mais vulneráveis?
Discutem-se em Parlamento, no dia 29 de Maio, os quatro projectos
de lei sobre eutanásia e morte medicamente assistida.
Perguntar-se-ão muitos dos nossos concidadãos o porquê de tanta urgência
na tomada de decisões, encurtando o tempo de reflexão, limitando a oportunidade
de análise, nesta matéria que é de grande seriedade e complexidade.
Após um debate que, na sua globalidade, pouco ou nada analisou a
evidência científica existente em Portugal e reconhecida internacionalmente
(sobre aspectos fundamentais como o sofrimento existencial, desejo antecipado
de morte e terapêuticas psico-sócio-espirituais), suspende-se agora abruptamente
a discussão para a precipitada contagem de votos.
É-nos assim imposto o fim do debate ao mesmo tempo que se ignoram
alertas de especialistas médicos, enfermeiros, juristas e eticistas.
Paralelamente, o conhecimento real da maioria dos portugueses sobre os
projectos de lei em causa – e das suas cabais implicações na vida de todos e de
cada um – permanece manifestamente reduzido.
O caminho natural será (ou seria) o de prolongar o debate, aprofundar a
reflexão, consciencializar a sociedade civil, informar decisores sobre todos os
ângulos de tão complexa matéria. Reitero ser esta, provavelmente, uma das mais
complexas mudanças com que que a nossa sociedade se deparará nos próximos anos.
Temos a responsabilidade de partir invariavelmente da evidência científica da
mais alta qualidade, aprendendo também das experiências obtidas em países onde
legislação semelhante tem sido aplicada, como a Holanda, a Bélgica ou o
Canadá.
Antecipemos então consequências preocupantes, baseando-nos não só no que
observamos a nível internacional mas também nas especificidades do nosso país.
Assistiremos a um desinvestimento na provisão de cuidados paliativos?
À banalização e facilitação da morte “a pedido”? À descaracterização
do ato médico e da relação médico doente? Ao enfraquecimento da cultura de
cuidar dos mais vulneráveis?
Independentemente das decisões tomadas em Parlamento pela Assembleia da
República, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos procurará, de forma
construtiva, colaborar com os decisores, prestadores de cuidados e seus
utilizadores (doentes e famílias, que um dia poderão ser qualquer um de nós), lutando
por um direito humano e prioridade de saúde pública, que apesar de universal
tem sido sistematicamente negligenciado: a necessidade de, enquanto sociedade,
oferecermos cuidados de fim de vida humanizados e da mais alta qualidade –
incluindo cuidados paliativos – a todos e cada um dos nossos
concidadãos.Tornar-se-á seguramente um caminho mais exigente e difícil, mas o
que melhor servirá as gerações futuras.
Médico de Cuidados Paliativos Presidente Associação Portuguesa
de Cuidados Paliativos.
victor guerra:
Caro Victor Aqui o problema são os
pobres. Esses, se o estado não lhes garantir cuidados, serão abandonados. Os
ricos pagarão cuidados paliativos do seu bolso. A grd. preocupação é:
havendo a possibilidade de pedir a eutanásia, o estado responsabilizar-se-á
pela prestação de cuidados a pobres em agonia? Isso é que preocupa. O grd.
problema será com aqueles que no fundo não querem morrer. Mas que tb. não têm
possibilidades para pagar os cuidados paliativos. Esses, parece-me que serão
abandonados. A grd. preocupação é: havendo
a possibilidade de pedir a eutanásia, o Estado responsabilizar-se-á pela
prestação de cuidados a pobres em agonia? Isso é que preocupa.
"Terapêutica
espiritual", que eu saiba, não faz parte das especialidades médicas
reconhecidas. Os cuidados
"paliativos", como o nome indica (do Latim, pallium, significa neste
contexto disfarçar, encobrir) destinam-se a melhorar ou aliviar momentaneamente
um problema, mas não impedem a morte. E
devem sobretudo ser uma escolha do doente. A
eutanásia é mais uma escolha. Quanto aos actos
médicos, o juramento de Hipócrates foi alterado (não é a primeira vez) para
abranger precisamente a eutanásia, e isso foi feito pela Associação Médica
Mundial, que é o órgão de referência nessa matéria.
:
Mais um que fala em causa própria (Presidente da Associação de Cuidados
Paliativos).
E o facto de se ter
alterado (nesse ponto) um juramento de Hipócrates que resistiu ao tempo, que
durou milhares de anos sem ser questionado, por muitas e boas gerações antes de
nós, numa altura em que já havia a possibilidade de eutanásia e que é anterior
à influência judaico-cristã, não lhe faz soar campaInhas de alarme ? O que
mudou desde então? Eu digo-lhe: a população mundial envelheceu. É preciso
empurrá-los para a "escolha
DEFICIENTES
Elogio dos que abraçam /premium
OBSERVADOR, 8/5/2018
Porque é que nunca se
interrogam porque é que demasiadas pessoas com deficiência vivem fechadas em
casa, como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem nem
transportes públicos adequados?
Pergunto-me muitas vezes
porque é que os bloquistas e os geringoncistas, sempre tão amigos dos que eles
acham que não têm voz (animais incluídos!) nunca param para defender as pessoas
com incapacidades? Porque é que não fazem destas pessoas uma causa urgente?
Porque é que lutam e gritam para que os animais sejam aceites em restaurantes e
lugares públicos, por exemplo, quando sabem que nem todas as pessoas lá podem
entrar? Porque ficam calados perante a multiplicação de espaços que não cumprem
a lei das acessibilidades?
Porque não levantam a voz
sempre que alguém portador de deficiência cai da sua cadeira de rodas por causa
de uma rampa íngreme ou um passeio mal rebaixado? Porque não se incomodam
quando alguém fica barrado à entrada de um museu ou de um café por não poder
subir escadas e não ter acesso a uma casa de banho? Porque é que não se
insurgem contra a falta de condições nas escolas e a falta de materiais de
estudo para pessoas que não vêm e não ouvem? E porque é que nunca se interrogam
porque é que demasiadas pessoas com deficiência ainda vivem fechadas em casa,
como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem, nem transportes
públicos suficientes para as trazerem e levarem das suas necessárias voltas?
Sinceramente não percebo a
discriminação que fazem, pois ignoram olimpicamente uma realidade que toca
milhões de cidadãos, incluindo famílias e cuidadores. Têm a pretensão de
serem inclusivos, mas não são. Incluem, sim, mas apenas os que lhes dão votos
ou podem gerar lobbies para defender ou
assegurar os seus próprios interesses. Excluem ou pouco se importam com os que
sofrem de doença mental, os que têm problemas de acessibilidade, os que são
portadores de deficiência, os que de alguma forma vivem condicionados. Não está
certo, não é sério e não faz sentido.
Abstraindo desta gente
que diz preocupar-se com todos, mas só se preocupa com alguns,
vale a pena determo-nos em realidades que nos interpelam pela lógica de
superação e conquista que revelam. Falo de negócios que prosperam e de
resultados que não se traduzem apenas em números, ou lucro financeiro. Existe
desde 2003 uma cadeia de restaurantes em muitas capitais da Europa, que
trabalham apenas com pessoas invisuais. Muitos conhecem ou já ouviram falar dos
restaurantes “Dans Le Noir?” por ser uma experiência sensorial radical, muito
para além da pura degustação gastronómica. Nestes restaurantes os clientes têm
uma experiência de cegueira e são convidados a confiar desde que entram até que
saem.
Confiam nos empregados,
todos eles cegos, confiam no chef, nos menus e nos pratos
que lhes são servidos, confiam no espaço que não vêm, confiam nos barulhos e
sons que ouvem, confiam nas vozes dos que os guiam e lhes ‘mostram’ o que podem
comer e experimentar. Confiam nas pessoas com quem estão e confiam inclusivamente
que ninguém ali vê absolutamente nada, aceitando ir sozinhos à casa de banho,
por exemplo.
Esta cadeia de
restaurantes, que nasceu com o objectivo de despertar a consciência para a
cegueira, mas também como projecto de responsabilidade social que emprega
invisuais e prova as suas capacidades a quem duvida que possam gerar lucro e
gerir um negócio, factura milhões de euros por ano e marca de forma muito
impressiva todas as pessoas que aceitam sair da sua zona de conforto ao
reservar uma mesa para almoçarem ou jantarem. Ninguém sai igual ao que entrou.
A experiência tem tanto de inquietante como de desafiante e exaltante. Uma vez
vivida, nunca mais é esquecida.
Em Paris há agora
o Café Joyeux,
café-pastelaria onde trabalham pessoas com vários tipos de deficiência mental e
os clientes são servidos por jovens com Trissomia 21, mas não só. O core
business, o coeur du coeur desta marca é precisamente servir com o coração. No
novíssimo Café Joyeux todos acreditam
que ninguém é perfeito e há muita beleza na imperfeição. Os vídeos que existem
na net, bem como a recente inauguração presidida por Brigitte Macron, primeira
dama francesa, mostram a naturalidade com que todos circulam num espaço criado
para incluir e para dar oportunidades profissionais a pessoas com handicaps
mentais, que raramente têm a possibilidade de trabalhar, de evoluir e de serem
justamente remunerados. E justamente olhados e reconhecidos por quem não sofre
de qualquer doença ou incapacidade.
Em Portugal já vai
havendo negócios lucrativos fundados exclusivamente para apoiar pessoas com
deficiência. Estou a pensar na Livraria Déjà Lu, que conheço bem e só vende livros em
segunda mão, todos eles doados por leitores e autores, cujas receitas
revertem exclusivamente para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia
21. Também esta livraria é um negócio lucrativo e escalável. Um modelo
que se pode replicar em qualquer ponto dentro e fora do país, coisa que faz
todo o sentido quando falamos de gerar lucro financeiro e não só, pois o lucro
dos projectos de responsabilidade social também se medem pela quantidade de
pessoas apoiadas nas comunidades.
Todos os pais com filhos
portadores de deficiência ou com algum grau de incapacidade sofrem diariamente
com a ideia da sobrevida dos seus filhos, pois naturalmente morrerão antes
deles. Também lhes dói o impacto brutal da exclusão sempre que pensam no futuro
que (não) lhes está reservado. Num país onde não abundam escolas preparadas
para acolher crianças e jovens com doença mental e onde a transição para a
idade adulta geralmente se traduz por ficar em casa, sem nada para fazer, os
pais preocupam-se e muito. Legitimamente.
Um jovem adulto com
deficiência ou incapacidade está quase sempre condenado a não poder ir para a
universidade, a não encontrar trabalho e a perder os poucos amigos que foi
conquistando ao longo da vida. O isolamento dos jovens adultos e a sua
inactividade é muitas vezes regressiva e sempre profundamente desoladora para
os próprios, mas também para os pais e famílias, ou quem os substitui.
Nesta lógica e porque
está tudo por fazer, os pais vão-se associando e tendo inciativas que mudam o
mundo, transformam a realidade e mudam o nosso olhar. Os políticos, decisores e
legisladores podem não se deter perante a realidade das pessoas com
incapacidade, mas os cidadãos avançam e dão passos de gigante. É
impressionante.
Vejo isso na rapidez
fulgurante com que apenas uma mãe conseguiu mobilizar uma equipa inteira, quase
um movimento cívico, para organizar um concerto solidário no próximo dia 17, no
auditório do Colégio Boa Nova, no Estoril. Artistas, músicos, produtores,
realizadores e apresentadores foram desafiados a dar o seu melhor e a estar com
gratuidade neste concerto pelas gerações solidárias. A ideia é dar a conhecer
um novo projecto que está a germinar e, de certa forma, se pode comparar ao
recém-inaugurado Café Joyeux.
O sonho da Associação
Vila Com Vida é criar em Portugal espaços de café-bar onde também só
trabalhem jovens adultos com déficit cognitivo e doença mental,
proporcionando-lhes autonomia e realização pessoal e profissional. Em
Paris, os fundadores do Café Joyeux inspiraram-se
em Jean Vanier, filósofo canadiano radicado em França,
fundador d’A Arca em 1964, hoje presente em 35 países. Jean Vanier, autor de
vários livros, recebeu o prestigiado Prémio Templeton por ter dedicado toda a
sua vida a pessoas com incapacidades e ter criado uma fabulosa rede de casas de
dimensão familiar onde vivem, em comunidade, estas mesmas pessoas com os seus
cuidadores e formadores (alguns deles voluntários).
Jean Vanier ainda está
vivo e faz 90 anos em Setembro, mas já raramente sai de uma destas suas
comunidades, onde também ele mora. Na semana passada chegou a Portugal
uma embaixada de franceses para falar do que é A Arca.
Vieram os que têm deficiências mentais e os que cuidam deles. O grupo passou cá
uma semana e ficou até ao dia em que foi lançado o extraordinário
livro-testemunho “Ouve-se um Grito”, tradução portuguesa de “Un Cri se Fait Entendre
– Mon Chemin Vers La Paix”, de Jean Vanier. Conheci-os todos pessoalmente e
ouvi-os falar e contar como é o seu quotidiano. Percebi que cada uma das
pessoas com deficiência trabalha e ganha o seu dinheiro, gerindo a sua vida e o
seu tempo com razoável autonomia, graças ao apoio incondicional dos
especialistas e voluntários dedicados que também moram n’A Arca.
É difícil tirar
conclusões nesta matéria e escrever resumidamente sobre um tema tão vasto, tão
complexo e tão sensível, mas não é possível passar ao lado. Por isso aqui fica
o meu elogio a quem abraça, a quem acolhe, a quem luta, a quem se entrega.
Deixo Jean Vanier, na primeira pessoa:
“Ao longo da minha vida,
foram pessoas com alguma deficiência intelectual que, pouco a pouco, me
transformaram, libertando-me dos meus medos, revelando-me a minha própria
humanidade. Depois dos terríveis atentados que atingiram a França, parece-me
mais importante do que nunca dar o testemunho de uma fraternidade que é
possível entre os seres humanos, de culturas, de religiões e de histórias
diferentes. Nada está perdido.”
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