domingo, 6 de maio de 2018

Ó gente da minha terra!



Não resisto a recordar o fado da Amália, reposto por Mariza, perante o magnífico estudo com expressiva síntese de António Barreto, enquadrando os diferentes tipos do espécime português a respeito do modus operandi, no struggle for life da sua sobrevivência. António Barreto não assinala nomes, que a nossa novela quotidiana, relativamente limitada em enredo e em densidade psicológica, remete para o vago de uma toada monocórdica, por discrição e delicadeza, no caso de uma proveniência escrita mais elaborada, como a do caso presente, ou pela acusação e o ataque directo, no caso de um desforço crítico condenatório, que já Gil Vicente preconizara e outras polémicas marcantes da nossa vivência cultural exemplificaram, não só do foro literário como do político e social, em que perpassaram Herculano, a Questão Coimbrã, Eça e Ramalho, e a Geração do “Orpheu”, além da “Besta Esfolada” de José Agostinho de Macedo, refractário às mudanças liberais.
 Não, não vou comentar nem exemplificar as afirmações de António Barreto, presa sempre ao aprumado da sua prosa rica de conteúdo humano e ético. Fico-me com o fado da Amália e seguidores. Sempre é mais ao nosso jeito, o fado do nosso genérico, humilde e pobrezinho.

É meu e vosso este fado
Destino que nos amarra

Por mais que seja negado
Às cordas de uma guitarra

Sempre que se ouve um gemido
Numa guitarra a cantar
Fica-se logo perdido
Com vontade de chorar

Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi

E pareceria ternura
Se eu me deixasse embalar
Era maior a amargura
Menos triste o meu cantar

Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi


A corrupção e suas variedades
ANTÓNIO BARRETO
DN, 6/5/18
O mais provável é que o PS esteja a caminho do fim. Não por causa da adesão ao mercado nem pelo seu entusiasmo com a frente de esquerda. Mas sim por causa da corrupção, que o PS nunca condenou claramente, sobretudo a sua e a dos seus amigos. O caso Sócrates, a que se acrescentaram tantos outros, está agora a mostrar contornos difíceis de apagar da memória. O caso PT, bem anterior, já tinha deixado feridas e cicatrizes profundas. Os casos Pinho e EDP, que ainda agora vão no adro, revelaram-se de tal maneira letais que será difícil convencer quem quer que seja que membros deste governo não tiveram nada que ver com o governo Sócrates, nesta que é talvez a maior derrota da democracia desde há mais de 40 anos.
O PS não está a tratar da "espuma dos dias" nem de pequenas circunstâncias, como sejam o pagamento a dobrar de ajudas de custo e outras "bagatelas". O PS está a ocupar-se de uma questão muito séria: a do seu envolvimento em processos de corrupção política de grande escala e a do seu silêncio diante da actuação dos seus dirigentes. Com a corrupção, o PS está a tratar da sua natureza contemporânea, não apenas de uma circunstância excepcional.
O PS nunca foi muito claro na sua atitude perante a corrupção. Condenou a dos seus adversários, fez o possível por disfarçar a sua. Ou garantir que eram apenas casos de justiça. Pior: desculpou a corrupção com uma ideologia barata, a da ética republicana! O que isso quer dizer é estranho. Como se houvesse uma ética monárquica. E uma ética socialista. Até uma ética fascista! Está a ver-se onde isto vai parar. Mas a ideia leva-nos a admitir que há várias espécies de ética e de corrupção.
Um dos problemas mais interessantes da corrupção é o de que os seus responsáveis nunca acham que são corruptos. Julgam que estão a comportar-se com direiteza e valores inatacáveis. Isto resulta de uma concepção própria de corrupção e de ética.
A ética aristocrática faz que certas pessoas pensem honestamente que tudo lhes é devido, que estão acima de todos e de qualquer suspeita, que são charneiras da pátria e depositárias do destino nacional! Aqueles gestos e valores que muitos consideram imorais são, para as classes altas, antigas e modernas, direitos adquiridos. Corre-lhes no sangue uma espécie de moralidade pública indelével que nem sequer é preciso provar. A sua legitimidade é a do seu sangue.
A ética burguesa faz que pessoas, geralmente empresários e gestores, acreditem cegamente no mercado, considerem que merecem uma recompensa pelo que fazem, pelo emprego que criam, pelas exportações que promovem e pelas obras que fazem para o Estado. Por isso, querem fazer o que lhes apetece. Julgam-se agentes e instrumentos de bem-estar da população. Zelam pelos direitos das empresas e acreditam em que tudo o que fazem é para criar riqueza. Por isso querem ser recompensados. O que é bom para eles é bom para o país. A sua legitimidade é a da sua obra.
A ética republicana é a que remete os valores para a cidadania, rejeita privilégios de nome, fortuna e condição, mas atribui méritos desmedidos ao contributo para a democracia partidária. Tudo o que for feito a favor dos partidos no poder local, nos governos e em respeito pelo eleitorado, faz parte dessa ética republicana. Que permite a corrupção do dia-a-dia, os empregos para os amigos, as comissões para os partidos, o financiamento público das campanhas eleitorais, as leis feitas por medida, os descontos e os favores... A sua legitimidade é a do seu eleitorado.
Finalmente, a ética revolucionária, que critica todas as anteriores, que estipula como valores supremos a classe trabalhadora e o papel do seu partido de vanguarda. Tudo o que for feito, incluindo roubo, ocupação, assalto, despedimento, saneamento e favores, a bem da classe e do partido, cabe na moral trabalhadora. Com uma condição: a de nunca ser individual! Terá sempre de ser colectivista, do partido, do sindicato... É essa a razão pela qual há tão poucos comunistas envolvidos em casos de corrupção: é o próprio partido que assegura as mais eficazes funções de polícia de costumes. Proventos individuais no movimento comunista, nunca! A sua legitimidade é a da luta de classes e das relações de força.
As minhas fotografias
 ANTÓNIO BARRETO
Depósito de carros eléctricos na Margem Sul, Almada. Era assim, na Outra Banda, há trinta anos! A estes maravilhosos carros, de Lisboa, não sei o que lhes aconteceu. Recuperados noutros países foram uns tantos. Recordo-me de ter pensado, na altura, que cada carro destes, à espera de destruição e vandalismo, poderia ser restaurado e vendido a cidades e museus que não desprezam os carros eléctricos. Naqueles tempos, Lisboa parecia apostada em destruir os carris e as viaturas o mais depressa possível. Foi o que fez. Era a modernização! Nesses mesmos anos, pela Europa fora, faziam-se esforços para recuperar linhas similares, em França, na Alemanha, na Suíça... Depois disso, alguma sensatez se desenvolveu nas cabeças dos nossos vereadores, secretários de Estado e ministros: nem todas as linhas foram destruídas! A carreira do 28 é quase monumento nacional. Experiência a não perder. Há dias, recomeçou a carreira do 24, só em parte, mas já está aí, carregadinha de passageiros e de bem-estar!

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