Do Jornal Público de
19/4/18, já atrasado, portanto. (Não dou vasão aos jornais que a minha irmã
me traz nos nossos encontros bissemanais). Li o texto de João Miguel Tavares sobre o seu confronto
enérgico de justiças – portuguesa e brasileira. Como sempre, admirei-lhe a
escrita desenxovalhada e o pensamento honesto, claro e destemido da sua diatribe.
E admirei o critério do Público
de reunir esse texto com o do Bartoom de Luís Afonso na sua última
página, em perfeita sintonia na visão humorística da política destes nossos
tempos.
Acrescento, pois, ao artigo de
João Miguel Tavares, a descrição do “cartoom” de Luís Afonso,
para demonstrar o tal critério humorístico do Público de reunir os dois críticos
na Última Página.
I - Cartoom
(Nós, os barmans apreciadores de doestos)
1ª Vinheta:
O freguês lê o jornal,
compenetrado e pronto a disparar o seu doesto, os ossos das mãos, com os
respectivos dedos, de cada lado das páginas abertas, em leque de curvas – mais simétricas
as da mão direita, de postura desleixadamente inerte sobre esse lado, na página
de momento não focalizada; já os ossos das falanges da mão esquerda no lugar
respectivo e os dedos no comprimento adequado: o leque das curvas, portanto, mais
realista, denotando tensão ao nível das ditas falanges, que acompanham o seu
visual atento, onde a pupila não está visível, baixada sobre a notícia da sua leitura
do instante.
O barman atento, visual
assestado sobre a fala do freguês, os pêlos da cabeça no sítio do costume,
quais radares, o braço esquerdo aconchegado no balcão, por trás do queixo.
Fala do freguês:
«O MINISTRO DAS FINANÇAS
REJEITA O DESPESISMO…
2ª Vinheta:
Sem mudança perceptível, as
pernas do freguês cruzadas, tal como na primeira vinheta, acompanhando com
compostura tensa a sua reflexão à Zé Povinho:
«…E DIZ QUE NÃO SEGUIRÁ
O CAMINHO QUE A ESQUERDA QUER.»
3ª Vinheta:
O barman na mesma pose,
o freguês já descoberto, fechado o jornal, rematando a notícia, com a
sua dedução esclarecida, a mão direita mais real agora, de dedos bem abertos, acompanhando
o estado de alma, parte da camisa e gravata já visíveis, a cabeça contendo o
redondo exaltado da boca, iniciando o seu argumento conclusivo:
«…E COMO É ELE QUE ESTÁ
AO VOLANTE…»
4ª Vinheta
Jornal pousado no banco
seguinte, desta vez a mão direita do barman a esconder a boca
visivelmente aberta da sua curiosidade e espanto, pelo atrevimento crítico, boca anteriormente reduzida a
um ponto atento:
«BEM, RESTA À ESQUERDA
TENTAR FURAR OS PNEUS.»
II- OPINIÃO
A justiça portuguesa é melhor do que a brasileira?
Três anos após ter sido
condenado, o senhor Vara continua livre como um passarinho a trabalhar como
consultor em África. É esta a justiça de que nos devemos orgulhar? Não gozem
comigo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
OBSERVADOR, 14 de Abril de
2018
Acho extraordinário que
tantos portugueses, que nunca conheceram na vida outra coisa senão um sistema
de justiça profundamente disfuncional, considerem ainda assim estar possuídos
de um estatuto cívico e moral que lhes permite olhar com sobranceria para a
justiça brasileira, como se os juízes no Brasil fossem anjos exterminadores e
nós os felizes inquilinos do paraíso dos tribunais. É preciso não ter a
menor noção. É verdade que em Portugal não precisamos de temer os horrores
da Operação Lava-Jato – mas isso é porque a justiça portuguesa jamais
teria à sua disposição os meios, a vontade e as leis para desmontar uma rede de
corrupção daquele calibre.
A famosa frase “mais
vale um criminoso solto do que um inocente na prisão” não tem discussão
possível, mas qualquer sistema penal procura um equilíbrio razoável entre as
garantias da defesa e os instrumentos ao dispor da acusação. Uma acusação com
força excessiva pode levar muitos inocentes à prisão. Mas uma defesa com
garantias excessivas pode levar a que muitos criminosos nunca sejam presos.
Aquilo que acontece em Portugal, no que diz respeito à corrupção e aos
chamados crimes de colarinho branco, é que tudo está alinhado para dificultar
ao máximo a obtenção de prova, e é tamanho o leque de artimanhas processuais a
que os acusados podem recorrer que o sistema protege vergonhosamente quem tem o
dinheiro necessário para interpor infindáveis recursos e contratar os melhores
advogados.
Vestidos com o
melhor smoking civilizacional, escondemos o estado miserável da nossa
roupa interior enquanto torcemos o nariz à delação premiada (como se ela não
exigisse ser corroborada por documentos), recusamos o enriquecimento ilícito
agitando o fantasma da inversão do ónus da prova, e consideramos impensável que
alguém possa ser preso após condenação em segunda instância. Enfim: não é
propriamente “alguém” – é Lula da Silva, porque antes dele já milhares de
brasileiros tinham ido parar à prisão nas mesmas condições sem que ninguém
tivesse reparado.
O facto do plea
bargain – em inglês talvez soe mais fino – existir em países
como os Estados Unidos, a França ou a Itália, e ser considerado essencial para
combater crimes onde sem um qualquer acordo de diminuição de pena nenhum
criminoso tem incentivo para falar, parece impressionar ninguém. Tal como
parece impressionar ninguém que a terrível prisão após condenação em segunda
instância só peque por atraso em países como os Estados Unidos, o Canadá ou a
Inglaterra – aí, a regra é prender-se logo após condenação em primeira
instância, independentemente de um tribunal superior vir mais tarde a mudar de
opinião.
Isto não é assim porque
os americanos ou os ingleses são selvagens. É assim porque consideram
que a suspensão de uma pena anos a fio põe em causa a confiança no cumprimento
da justiça e dá origem a um sentimento de impunidade – precisamente aquilo que
acontece em Portugal. Olhe-se, por exemplo, para o processo Face
Oculta: Armando Vara foi condenado a cinco anos de prisão
efectiva a 5 de Setembro de 2014; viu a pena confirmada pela Relação a 5 de
Abril de 2017; e só agora, um ano depois, é que um novo recurso vai dar entrada
no Tribunal Constitucional – não havendo qualquer previsão de quando a decisão
final surgirá. Três anos após ter sido condenado, o senhor Vara continua livre
como um passarinho a trabalhar como consultor em África. É esta a
justiça de que nos devemos orgulhar? Não gozem comigo.
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