A nossa balada preferida. De uma neve que se acumula e esfria cada vez
mais os corpos e as almas. De todo um povo, e não só das criancinhas que nela enfiavam os pezinhos descalços, em compridos sulcos. Um nome a fixar: Ainda
os exames de Português: o analfabetismo funcional» e «Epístola a Tiago e João: Os Maias, a
língua e a literatura para os jovens». Os temas já aqui têm sido
abordados, mas são-no, pelo autor, de forma extremamente arguta e convincente.
Não vou desenvolver, que a sua leitura é imprescindível, a sua argumentação
magistral, tanto no que se refere à espessa camada da nossa cada vez mais crassa
iliteracia, de um ensino desviado da leitura, culpa também da manipulação de
tecnologias alienantes, de que a escola, afinal, não é a única responsável, mas também
no que se refere à exclusão de leitura de uma obra perfeita nos seus vários
quadrantes, “OS MAIAS”, e que uma democracia distraidamente - ou
propositadamente - embrutecedora pretende eliminar do conhecimento dos alunos.
Leiamos os textos de
I - OPINIÃO
Ainda os exames de Português: o
analfabetismo funcional
Os nossos alunos debatem-se,
sem terem consciência disso, com dificuldades de raciocínio discursivo muito
sérias. Na forma e no conteúdo escrevem como falam: mal.
PÚBLICO, 24 de Julho de 2016
Este artigo é ainda a
continuação do que escrevi anteriormente a propósito do que se lê no Exame
Nacional de Português. Impõe-se, a meu
ver, um debate na sociedade portuguesa sobre o que ensinar – com a presença de
jovens vindos das mais diversas instituições universidades e escolas
secundárias. Um debate de mais de um dia em que se reflictam variáveis diversas.
Qual a natureza do processo ensino-aprendizagem, quais são os desígnios
educativos da Escola em Portugal (formar para os cursos superiores? Importa
reflectir, muito em particular, sobre a disciplina de Português, axial porque
determina as competências básicas no início do percurso educativo, essencial
também no que tange à tão desejada inter e transdisciplinaridade dos
currículos. Esse debate deve ser feito com visibilidade, mas não segundo o
formato televisivo do talk-show e,
já agora, conduzido por quem domine o assunto e pense sobre os problemas da
educação. O assunto é grave e sobriedade exige-se.
Questionemo-nos sobre o sentido
do “Ranking das escolas” (que
nome!!), mas fundamentalmente sobre
a igualdade de oportunidades dos nossos jovens. É de justiça social e de democracia que falamos quando pensamos o que a
educação. A que cultura acedem os nossos alunos senão à cultura inculta do
hip-hop, à indústria pornográfica via internet? Que modelos seguem senão os que
lhes são facultados pelo futebol e o humorismo mais bestial? Terão todos os
alunos o mesmo acesso aos bens culturais (o livro é o parente pobre dos meios
de comunicação, preferindo-se o telemóvel, o google e quejandos...) que lhes
permitam ler e escrever com conhecimento ou ter curiosidade científica? Dos
bancos das escolas aos das universidades que mentalidade se tem vindo a impôr
senão a das praxes, a das “viagens de finalistas” (do quê? Finaliza-se o quê?)
regadas a álcool, boçalidade e drogas? Que comportamentos disruptivos
caracterizam o quotidiano das escolas? Quais as razões do insucesso nas
avaliações? O que se esconde por detrás do bulying? Qual o fundo emocional da apatia dos alunos
face ao saber? Que valores legitimam o oportunismo (a vulgarização da cábula e
da balda às aulas)? Que responsabilidades cabem aos professores, aos pais, aos
demais agentes da educação, incluindo sindicatos? Onde iremos parar com a
politização crescente de um sector que deveria ser supra-partidário?
Na vertigem em que vivemos, rodeados por uma violência generalizada,
como pode a Escola ser o reduto do humanismo e da sensibilidade numa Europa que
fez da amnésia o seu único programa educativo? No caso de uma disciplina como a de
Português, transversal a todas as aprendizagens, impõe-se reflectir com
seriedade e agir com decisão: há leituras obrigatórias que nenhum professor
pode ignorar para se preparar enquanto docente e há práticas didácticas que
devem ser utilizadas com bom senso (o recurso às novas tecnologias não pode
conduzir ao esquecimento ou secundarização dos textos, sua análise e comentário
orais e escritos). Há que pôr fim à burocratização da profissão docente,
libertando os professores da carga de reuniões sobre “estratégias pedagógicas”
(que pedagogia existe sem conhecimento do que se publica e escreve nessa
área: não terá Juan Carlos Tedesco razão ao falar da inoperância do sistema?).
Escrevi sobre o Exame Nacional, elenquei alguns erros mais frequentes. Sirva o
presente artigo como explanação do que anteriormente veio a lume.
Os nossos alunos debatem-se, sem terem consciência disso, com
dificuldades de raciocínio discursivo muito sérias. Na forma e no conteúdo
escrevem como falam: mal. Exemplos: ausência de preposição “sobre”
(e a confusão entre “sob” e “sobre”) em frases do género “O sujeito reflecte
[sobre] o efeito da passagem do tempo” (Questão 4 do Grupo I); a ausência do
termo “verso” em frases como “No [verso] “qualquer grande esperança é grande
engano””; a colocação de hífen em verbos com terminação no presente do
indicativo no plural (“le-mos”, “sabe-mos”!!); a confusão entre advérbios de
lugar e de tempo: escrevem os alunos “onde” referindo-se a noções de tempo (“no
Salazarismo onde”), e o advérbio de tempo “quando” referindo-se a noções de
espaço; a contínua confusão entre os verbos “mostrar” e “demonstrar”, sem se
perceber que a linguagem poética não demonstra, sugere e que são erros expressões
como “o verso demonstra”, “a metáfora demonstra” ou o consabido lugar-comum: “o
texto fala”.
Não esqueçamos também
redundâncias do tipo “Matilde chorava lágrimas” (no texto não se aludia a choro
algum), bem como o uso abusivo de locuções prepositivas como “de algum modo” ou
“sendo que”, ou ainda articuladores que na lógica frásica complicam, não esclarecem.
Querendo corroborar uma ideia anterior, o aluno interliga orações com
conectores adversativos, por exemplo. O uso equívoco do particípio passado e de
verbos cuja semântica não se adequa ao que se pretende escrever: “As antíteses
são causa do desgosto do que lhe foi causado”, além das frequentes perífrases e
a total deriva ortográfica que mostra à saciedade os malefícios do Acordo que
nos foi imposto. Acrescente-se ainda o permanente vício dos demonstrativos
“este”, “esta” e “deste” “desta”, os quais, nas frases que os alunos constroem,
remetem para referentes errados ou mesmo para nenhum sujeito ou complemento na
cadeia de referência. Leia-se: “No verso “este meu breve e vão discurso humano”
o poeta refere-se ao fim próximo desta”.
O cenário é mau... Mas dizem
que o exame foi “equilibrado” (que significa isso?) e até a inenarrável Edviges
da APP terá anuído à sapiência dos fazedores do exame. O grupo de Gramática,
lembro, inflacionou a avaliação das funções sintácticas: para que andaram,
então, os alunos a estudar actos ilocutórios, modalidade verbal, classificação
morfológica? E, no limite, mesmo que as estatísticas venham asseverar da
melhoria das competências na disciplina de Português, sabemos todos – pelos
programas televisivos, pelas declarações dos nossos políticos, pela inanidade
dos argumentos dos que têm responsabilidades (a APP e quem a dirige, por
exemplo) – que pensar e escrever com
propriedade é coisa rara na escola portuguesa. Daí o debate a fazer e as
decisões a tomar.
Professor e crítico literário
II - OPINIÃO
Epístola a Tiago e João: Os Maias,
a língua e a literatura para os jovens
Não dar aos alunos a hipótese de ler a
obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento
literário.
PÚBLICO, 14 de Agosto de 2018
Dirijo-me directamente ao
ministro da Educação e ao secretário de Estado desta tutela, João Costa, de
quem fui aluno nos idos de noventa na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas. Não conhecendo o ministro Tiago Rodrigues, conheço
e tenho estima por João Costa, professor que procurou fazer-nos aderir a uma
disciplina muitas vezes árida que era Sintaxe e Semântica. Na senda das lições
de Maria Francisca Xavier, docente dessa mesma área, e com quem tive aulas,
aprendi, lendo de Lindley Cintra e Celso Cunha a Nova Gramática do Português Contemporâneo,
que estudar a língua implica um saber profundo da História e da Literatura.
Creio que o magistério de Óscar Lopes se fazia ainda sentir em algumas
abordagens a documentos histórico-linguísticos de que nos aproximávamos.
Lembrando estes mestres da língua, outros docentes (Teresa Brocardo ou António
Emiliano) não esqueciam um facto simples: o interesse e a importância da
análise gramatical não dispensa, antes exige, uma sensibilidade para a
linguagem literária e, por essa via, uma forte consciência da História. De
resto, Ferdinand de Saussure, pai da linguística, não foi, ele mesmo, um
atento inquiridor da linguagem poética? Não se dedicou ele ao estudo das
potencialidades da linguagem literária, na fase final do seu trabalho? Vítor
Aguiar e Silva, não nos (não vos) elucida quanto à prioridade que o texto
literário deve assumir na formação integral dos alunos? As teses sobre o ensino
do Português, tais quais Aguiar e Silva as apresenta, tê-las-ão lido quem assim
defende estas Aprendizagens Essenciais?
Tudo isto vem a propósito
das recentes alterações aos programas na disciplina de Português, terreno
sempre fértil para as derivas mais absurdas e que, quase sempre (e quase sempre
quando o PS orienta as políticas de educação), embatem na realidade simples dos
factos. Um desses factos é a média nacional atingida este ano, a qual mostra e
demonstra que a presença da literatura em situações de exame ou teste de
avaliação não impede a compreensão dos temas e problemas que um enunciado
complexo coloca aos alunos. Mas a
questão central nesta infeliz tomada de decisão relativamente à não
obrigatoriedade de ler-se Os Maiasno 11.º
ano (Cesário merecer-me-á uma reflexão outra, tão escandalosa que é a ausência
de O Sentimento dum Ocidental nos
currículos propostos com estas Aprendizagens Essenciais) tem outras
implicações, a primeira das quais se prende com uma posição ideológica.
Não dar aos alunos a
hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a
um monumento literário em que a língua portuguesa atinge um alto grau de
expressão estética. Não é apenas a inovação (via Garrett) do discurso indirecto
livre, não se trata apenas de ali podermos ler um modo de pensar e de agir das
elites do nosso oitocentismo, de que Carlos e os seus são os representantes.
Esta obra é relevante não só por nela a densidade psicológica das personagens e
a estruturação das cenas ao longo da diegese nos convidarem à releitura das
analepses e prolepses em função das quais a evolução dos tipos se dá. Para além
desse desafio, há n’Os Maias outros
aspectos de interesse. Há um
universo de referências culturais sobre Lisboa (o Marrare, o Passeio Público, a
Brasileira), Sintra (o pitoresco romântico que Byron celebrou, os hotéis que
eram moda para quem aí descobria paixões várias), sobre a Literatura (a
portuguesa, as alusões a nomes de poetas e romancistas franceses, ingleses e
alemães), a Filosofia (Afonso lia o seu Guizot, o seu Voltaire, o seu
Robespierre), a História e a Economia (em episódios ao longo do romance
discute-se a banca, a dívida externa, Espanha, Portugal como protectorado
inglês, Taine e Darwin, a Europa dos Impérios, Bismarck ou a situação da Coroa
portuguesa, o rotativismo e a Regeneração, o fontismo...) essenciais para que o
aluno que estuda Português compreenda que um texto literário o transporta, pela
imaginação, para um mundo de possibilidades humanas, o qual, sendo pretérito,
faz parte do nosso presente.
A história do incesto entre
Carlos e Maria Eduarda, alegoricamente lida, dá-nos a chave para reflectirmos
sobre a incestuosa história entre Portugal e as colónias (Maria, filha de Maria
Monforte, “a negreira”), para além de colocar a Educação como tema e motivo que
aponta para uma tese que nos diz, ainda hoje, respeito: “Carlos falhou na vida
não por causa, mas apesar da educação”, como bem viu Jacinto do Prado Coelho.
E, já agora, como não ver, no último capítulo do romance, o tema da descida aos infernos? Não
interessará isto aos alunos? É que, apelando ao mito e ao símbolo, aquele
regresso de Carlos, dez anos depois, a Lisboa, é um aviso para nós, portugueses
do século XXI. Cristaliza-se aí tudo quanto não devemos ser: Carlos de nada se
arrepende; repete mesmo que se envolveria de novo com a irmã e nem a sua
fotografia final (o tipo de homem rico e que vive bem, mais gordo e entregue a
banalidades) o impede de orgulhar-se de ser o onagrius
baronius que Garrett, nas suas viagens, dava como caricatura
do homem político português...
Ora, é disto, meus caros Tiago e João, que se trata: de insistir num
erro (“a nossa fatalidade é a nossa história”, escreveu Antero, e Eça segue
em Os Maias o raciocínio de
Antero desenvolvido em Maio de 1871), provando à saciedade que falhamos não por
causa, mas apesar da educação. É
que não ler este livro, ou não ler Fernão Lopes ou certos passos da História Trágico-Marítima, bem como
não ler essa epopeia crepuscular que é O Sentimento, de Cesário, é
não só ideologicamente comprometedor, como é errado do ponto de vista
pedagógico. Quando, anulando a literatura em nome de uma suposta cientificidade
linguística, se apaga a memória e se dilui paulatinamente a História, o que
temos é uma educação de massas no pior sentido. Um ensino público (ou privado)
de qualidade faz-se com professores e alunos que sentem estar em pé de
igualdade com outras realidades; faz-se com o reconhecimento de que a língua
existe nos seus monumentos literários, sem cuja existência nenhum povo pode
reconhecer-se na sua identidade. Um ensino para as massas deveria ser desígnio
de um Governo socialista – mas este o que faz é mesmo educação massificada,
traduzidas, essas Aprendizagens Essenciais, na ideia da negociação de conteúdos
que conduzirão ao facilitismo e à superficialidade nas competências de leitura
e escrita.
Na sátira de costumes que também é Os Maias diz-se, a dada
altura, que a civilização nos fica curta nas mangas... Senhor ministro e senhor
secretário de Estado, não vos parece que retirar esta obra de Eça, ou amputar a
de Cesário, esquecer a de Fernão Lopes ou quaisquer outras do nosso cânone
histórico-literário, é justamente impedir um bom ensino da língua e cercear a
compreensão de métodos de análise científicos exigentes? Se para vós a ciência
é sinónimo de aprendizagens essenciais e estas significam negociar para atingir
o fácil, que ciência, que saber defendem? Só me lembro de Jacob Cohen... Há
saber, diz ele...
3 Comentários:
Ricardo Cruz,
14.08.2018: Desde 2001
(homologação a 23 de maio de 2001) que o programa de Português de 11.º ano não
obriga à leitura d' Os Maias. Tal como as Aprendizagens Essenciais (ainda em
consulta pública) propõem agora, o programa determinava a abordagem de «um
romance de Eça de Queirós». Nem mesmo com os desmandos de Nuno Crato a obra
fora obrigatória, já que o programa (demasiado extenso, demasiado ambicioso e
impossível de abordar de forma pedagogicamente aceitável) preconizava a
abordagem d' Os Maias ou de A Ilustre Casa de Ramires. Por isso, honestamente,
não sei qual é o drama. Os professores e os grupos disciplinares de Português
são competentes e capazes de decidir. Certamente que Os Maias continuarão a ser
a obra seleccionada na maioria das escolas.
Victor
Gonçalves, Vila
Franca de Xira 14.08.2018: Massificar
sem descer o nível, eis o grande desafio. Que, tudo o indica, não foi tomado em
conta por este Ministério da Educação. Mas a via fácil, numa relação
proporcional, inclui e empobrece, inclui porque empobrece, é uma espécie de
rolo compressor da mediocridade.
henrique Mota,
Coimbra 14.08.2018: Excelente análise.
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