Mais um texto enriquecedor de Bagão
Félix, que desta vez expõe sobre Miguel
Torga, um escritor de conceitos amassados numa experiência sofrida de vida,
que marcaria indelevelmente os seus livros, nas alternâncias de prosa e verso,
de observação tenaz raramente optimista, e vibração poética de extremo egocentrismo
em coesão com o sentimento telúrico de que se não distrai, numa escrita não
rebuscada mas sentenciosa, obra de arte esculpida no mármore perfeito do seu
verbo. Também eu escrevi sobre Torga, e transcrevo do texto «Colonialismo em “parti pris”» (in “Anuário, Memórias soltas”, 1999), a
propósito de “O SEXTO DIA” de “A CRIAÇÂO
DO MUNDO” de Miguel Torga, o seguinte passo, como corroboração de igual
entusiasmo pelo escritor (mau grado a discordância a respeito do seu
colonialismo):
«Um arrumar da casa, um
sintetizar de momentos vividos, arranchados de argumentação crítica, num verbo
de uma precisão e uma limpidez inimitáveis. Um Torga admirável e sempre
admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os horizontes de um
humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável. O maior vulto
presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas fragas,
livre, altivo e acutilante, como as águias que nelas poisam, novo Orfeu,
tornando estático o Mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.
E todavia, embora previsto o
comentário negativo sobre a colonização portuguesa em África, parece-nos
demasiado apressada e capciosa uma tal visão maniqueísta, feita “exprès” para a
sua síntese ideológica, que da vivência africana se limitou à viagem aérea de
antemão artilhada em função de uma atitude crítica livresca e definitiva,
escamoteando os condicionalismos que nela imperaram. …
…”O Sexto Dia” de “A Criação do
Mundo”: Mais uma obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra
igualmente quão limitados são os juízos humanos, quando reduzidos à dimensão
subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»
Sim, a admiração por Torga não obstou a um sentimento de repúdio por
uma visão distorcida, de má fé escolarizada, que de resto impregnou todos os seus
companheiros de estrada,- (pese embora a altivez do seu isolacionismo
narcísico) - favorecedores do desfazer de um império, águas passadas, com tantas
repercussões negativas presentes, que fingimos beatificamente ignorar.
Mas o texto de Bagão Félix, apesar da identidade de parecer a respeito
de Torga, peca, quanto a mim, de um conceito pedagógico de que discordo e que
transcrevo: «Recorrentemente discutem-se os livros de autores
portugueses que são de obrigatória leitura no ensino. Confesso que não tenho
paciência para o carácter sempre discricionário (senão mesmo parcial) dessas
escolhas a pretenso benefício da educação dos jovens. Também não me agrada a
lógica obrigatória, porque a obrigação pode enfraquecer o entusiasmo e
transformar-se num caminho de leitura burocrática, sem alma e sem memória
futura.»
De facto, não
vejo como uma leitura integral obrigatória, feita através de uma prévia
fragmentação em pólos de análise, tão enriquecedores na orientação de leitura, se
pode «transformar num caminho de leitura
burocrática, sem alma e sem memória futura». No caso de “Os Maias”, a
desmontagem do texto em planos de análise, leva à conclusão da obra-prima que
é, quer no plano formal, quer no plano semântico, que se traduz numa
estruturação articulada, colhendo saberes de tragédia clássica, no seu
fatalismo condicionante, sem desleixar a modernização quer do ponto de vista
das personagens, quer da tragicomédia das suas relações, em encadeamento
progressivo, alternando o presente com o passado em analepse, em reforço do conceito fatalista
pessimista que rege as vidas humanas, facilmente desmoronado pelo sentido da
ironia desarticuladora e, enfim, marca principal do escritor Eça de Queiroz.
Reduzir esses planos de análise a coisa burocrática é como negar a necessidade de
redução gradual das estruturas de análise nas Ciências do Mundo, que conduz à
descoberta da verdade.
OPINIÃO
Torga, sempre
Miguel Torga é um dos escritores
portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser obrigatório.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 3 de Agosto de 2018
Há dias, voltei ao Espaço Miguel Torga, em São
Martinho de Anta. Desta vez para participar com Fernando Alves numa iniciativa
com o sugestivo nome “A vida passa lá fora”. Foi uma
saborosa razão para lá voltar. E também para usufruir da atmosfera sobre e
em redor de Miguel Torga, através de alguns dos seus “hemogramas de letras” e
fotografias do seu itinerário de vida, num espaço sublimemente simples da
autoria do Arq. Eduardo Souto de Moura.
Ali, emociono-me genuinamente. Diante de vistas e
descobertas, sóis e sombras, atmosferas e hábitos que sempre desenho na minha
imaginação de leitor. Vibro com o respeito torguiano pela mãe-natureza e
pela dignidade da cultura do simples, hoje tão arredia. “Terra
de Deus e dos deuses que nenhuma imaginação descreve”, assim se
referia ao seu amado Trás-os-Montes, a partir do qual cinzelava uma escrita
profunda, às vezes agreste, reflectindo a sua inalienável origem, a natureza
austera, a magreza da vida real, o suor do trabalho honesto e generoso. Tudo se
torna mais luminoso quando se respira em lugares torguianos como S. Leonardo de
Galafura ou junto da Senhora da Azinheira.
Escrita
telúrica, desassombrada, límpida, verdadeira, radicalmente livre. O pseudónimo
Torga reflecte, aliás, a sua verticalidade granítica, pois que toma o nome de
uma urze bravia, de fortes raízes incrustadas na dura rocha e de caule
imponentemente rectilíneo. “Uma
urze campestre cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas
entre as rochas.”
Recorrentemente discutem-se os
livros de autores portugueses que são de obrigatória leitura no ensino.
Confesso que não tenho paciência para o carácter sempre discricionário (senão
mesmo parcial) dessas escolhas a pretenso benefício da educação dos jovens.
Também não me agrada a lógica obrigatória, porque a obrigação pode enfraquecer
o entusiasmo e transformar-se num caminho de leitura burocrática, sem alma e
sem memória futura. Miguel Torga
é um dos escritores portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser
obrigatório.
Dou tanto mais
valor à sua escrita e ao seu pensamento quanto mais observo a frivolidade que
se espalha virulentamente nos nossos dias, na vida, na cultura, na sociedade,
na política. Tudo é fugaz, de reflexão zero, de descarte e de disfarce, de
sucesso tabelado, de erosão da comunicação escrita e oral.
Na sua obra
encontramos a simbiose perfeita entre a ética do homem e a estética da palavra.
A argúcia, a limpidez da razão, a translucidez do olhar sobre o seu mundo em derredor
da vida. Numa mistura, mais serena ou mais tumultuosa, entre um idealismo sem
amarras e uma sensibilidade feita de utopismo inconformado. Preferindo sempre a
voz e o olhar dos últimos, onde – dizia ele – “encontro ainda o riso, a indignação, o espanto...”, onde não há
“nenhuma abstracção, nenhum devaneio,
nenhuma superficialidade”.
“A entronização dos escritores, agora, faz-se
pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor”, assim
desabafava. Agora que os chamados best-sellers se confundem, não raro, com a literatura light sobejamente publicitada (e
folheada na areia das praias), é preciso escarafunchar nos esconsos de uma
livraria para ir ao encontro de um livro de Torga, Vergílio Ferreira, Jorge de
Sena ou outro clássico português.
Escreveu Torga na sua carta ao poeta brasileiro
Ribeiro Couto (Traço de União – Temas
portugueses e brasileiros) que “progredir é crescer por dentro”. Por
diferentes palavras, direi que só do nosso interior se pode transformar o que
nos é exterior. Assim, se completa o exterior que brota de dentro e o interior
que perscruta de fora. Há quem chame renovação, revolução ou conversão a esta
transformação interior que nos leva a uma mudança exterior. Depende da perspectiva doutrinária, da
ética religiosa ou até da hermenêutica da vida. Seja qual for o ângulo, a sua
essência pressupõe um profundo respeito pela pessoa no seu todo.
Observo, na minha contingência, o
mundo como suportando uma crescente e porosa inércia mecanicista, mais perto da
distopia do que da utopia. A sociedade hodierna é, mais agora, o produto, a
conta e o resultado de individualismos que, paradoxalmente, atrofiam a própria
ideia de individualidade. Como também alimentam a aceitação da circunstância
estimulada pelo fascínio dos meios e pelo mimetismo que transforma pessoas
distintas em agregados dissolúveis e dissolventes. Como alertava o escritor e
poeta, “a olhar a mentira dos salões esquecemos a verdade das celas”.
Neste breve
texto, sublinho, ainda, o nobre sentido pátrio como uma das marcas de água de
Miguel Torga. “Abandonar
a Pátria com um saco às costas? Para poder partir teria de meter no bornal o
Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da
língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão
entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.”
Ou, noutro ângulo, “eu sou um homem de
impressões digitais, das mãos aos pés. O sulco do arado é tão impressivo para
mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro”.
IPSIS VERBIS
CITANDO
TORGA
(I): “Deus.
O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força
de o esquecer.”
(II) “Sim,
sou um nó de contradições: mas que seria de mim se o desatasse? Se, em vez de
uma unidade na diversidade, fosse uma diversidade sem unidade?”
(III) “A
velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez.”
(IV) “O
meu partido é o mapa de Portugal.”
(V): “Quando não
trabalho sinto-me em pecado mortal.”
(VI): “Lá em
baixo (cidade) sou uma ficção entre ficções; aqui (aldeia) sou uma criatura
entre criaturas."
SCIENTIA AMABILIS
Foto
ULMEIRO
ou NEGRILHO (Ulmus minor Miller)
A um negrilho
Na terra onde
nasci há um só poeta.
Os meus versos
são folhas dos seus ramos.
Quando chego de
longe e conversamos,
É ele que me
revela o mundo visitado.
Desce a noite do
céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol
aceso ou apagado
É nos seus olhos
que se vê pousada.
Esse poeta és
tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal
avena
Que harmonizas o
vento e adormeces o imenso
Redil de
estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a
sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros
e o tempo fazem ninho!
(Miguel Torga, Diário VII, 26 de Abril de 1954)
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