segunda-feira, 6 de agosto de 2018

“Obrigação de leitura” significativo de “leitura sem alma”?



Mais um texto enriquecedor de Bagão Félix, que desta vez expõe sobre Miguel Torga, um escritor de conceitos amassados numa experiência sofrida de vida, que marcaria indelevelmente os seus livros, nas alternâncias de prosa e verso, de observação tenaz raramente optimista, e vibração poética de extremo egocentrismo em coesão com o sentimento telúrico de que se não distrai, numa escrita não rebuscada mas sentenciosa, obra de arte esculpida no mármore perfeito do seu verbo. Também eu escrevi sobre Torga, e transcrevo do texto «Colonialismo em “parti pris”» (in “Anuário, Memórias soltas”, 1999), a propósito de “O SEXTO DIA” de “A CRIAÇÂO DO MUNDO” de Miguel Torga, o seguinte passo, como corroboração de igual entusiasmo pelo escritor (mau grado a discordância a respeito do seu colonialismo):
«Um arrumar da casa, um sintetizar de momentos vividos, arranchados de argumentação crítica, num verbo de uma precisão e uma limpidez inimitáveis. Um Torga admirável e sempre admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os horizontes de um humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável. O maior vulto presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas fragas, livre, altivo e acutilante, como as águias que nelas poisam, novo Orfeu, tornando estático o Mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.
E todavia, embora previsto o comentário negativo sobre a colonização portuguesa em África, parece-nos demasiado apressada e capciosa uma tal visão maniqueísta, feita “exprès” para a sua síntese ideológica, que da vivência africana se limitou à viagem aérea de antemão artilhada em função de uma atitude crítica livresca e definitiva, escamoteando os condicionalismos que nela imperaram.  
…”O Sexto Dia” de “A Criação do Mundo”: Mais uma obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados são os juízos humanos, quando reduzidos à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»
Sim, a admiração por Torga não obstou a um sentimento de repúdio por uma visão distorcida, de má fé escolarizada, que de resto impregnou todos os seus companheiros de estrada,- (pese embora a altivez do seu isolacionismo narcísico) - favorecedores do desfazer de um império, águas passadas, com tantas repercussões negativas presentes, que fingimos beatificamente ignorar.
Mas o texto de Bagão Félix, apesar da identidade de parecer a respeito de Torga, peca, quanto a mim, de um conceito pedagógico de que discordo e que transcrevo: «Recorrentemente discutem-se os livros de autores portugueses que são de obrigatória leitura no ensino. Confesso que não tenho paciência para o carácter sempre discricionário (senão mesmo parcial) dessas escolhas a pretenso benefício da educação dos jovens. Também não me agrada a lógica obrigatória, porque a obrigação pode enfraquecer o entusiasmo e transformar-se num caminho de leitura burocrática, sem alma e sem memória futura
De facto, não vejo como uma leitura integral obrigatória, feita através de uma prévia fragmentação em pólos de análise, tão enriquecedores na orientação de leitura, se pode «transformar num caminho de leitura burocrática, sem alma e sem memória futura». No caso de “Os Maias”, a desmontagem do texto em planos de análise, leva à conclusão da obra-prima que é, quer no plano formal, quer no plano semântico, que se traduz numa estruturação articulada, colhendo saberes de tragédia clássica, no seu fatalismo condicionante, sem desleixar a modernização quer do ponto de vista das personagens, quer da tragicomédia das suas relações, em encadeamento progressivo, alternando o presente com o passado em analepse, em reforço do conceito fatalista pessimista que rege as vidas humanas, facilmente desmoronado pelo sentido da ironia desarticuladora e, enfim, marca principal do escritor Eça de Queiroz. Reduzir esses planos de análise a coisa burocrática é como negar a necessidade de redução gradual das estruturas de análise nas Ciências do Mundo, que conduz à descoberta da verdade.
OPINIÃO
Torga, sempre
Miguel Torga é um dos escritores portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser obrigatório.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 3 de Agosto de 2018
Há dias, voltei ao Espaço Miguel Torga, em São Martinho de Anta. Desta vez para participar com Fernando Alves numa iniciativa com o sugestivo nome “A vida passa lá fora”. Foi uma saborosa razão para lá voltar. E também para usufruir da atmosfera sobre e em redor de Miguel Torga, através de alguns dos seus “hemogramas de letras” e fotografias do seu itinerário de vida, num espaço sublimemente simples da autoria do Arq. Eduardo Souto de Moura.
Ali, emociono-me genuinamente. Diante de vistas e descobertas, sóis e sombras, atmosferas e hábitos que sempre desenho na minha imaginação de leitor. Vibro com o respeito torguiano pela mãe-natureza e pela dignidade da cultura do simples, hoje tão arredia. Terra de Deus e dos deuses que nenhuma imaginação descreve”, assim se referia ao seu amado Trás-os-Montes, a partir do qual cinzelava uma escrita profunda, às vezes agreste, reflectindo a sua inalienável origem, a natureza austera, a magreza da vida real, o suor do trabalho honesto e generoso. Tudo se torna mais luminoso quando se respira em lugares torguianos como S. Leonardo de Galafura ou junto da Senhora da Azinheira.
Escrita telúrica, desassombrada, límpida, verdadeira, radicalmente livre. O pseudónimo Torga reflecte, aliás, a sua verticalidade granítica, pois que toma o nome de uma urze bravia, de fortes raízes incrustadas na dura rocha e de caule imponentemente rectilíneo. “Uma urze campestre cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas.”
Recorrentemente discutem-se os livros de autores portugueses que são de obrigatória leitura no ensino. Confesso que não tenho paciência para o carácter sempre discricionário (senão mesmo parcial) dessas escolhas a pretenso benefício da educação dos jovens. Também não me agrada a lógica obrigatória, porque a obrigação pode enfraquecer o entusiasmo e transformar-se num caminho de leitura burocrática, sem alma e sem memória futura. Miguel Torga é um dos escritores portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser obrigatório.
Dou tanto mais valor à sua escrita e ao seu pensamento quanto mais observo a frivolidade que se espalha virulentamente nos nossos dias, na vida, na cultura, na sociedade, na política. Tudo é fugaz, de reflexão zero, de descarte e de disfarce, de sucesso tabelado, de erosão da comunicação escrita e oral. 
Na sua obra encontramos a simbiose perfeita entre a ética do homem e a estética da palavra. A argúcia, a limpidez da razão, a translucidez do olhar sobre o seu mundo em derredor da vida. Numa mistura, mais serena ou mais tumultuosa, entre um idealismo sem amarras e uma sensibilidade feita de utopismo inconformado. Preferindo sempre a voz e o olhar dos últimos, onde – dizia ele – “encontro ainda o riso, a indignação, o espanto...”, onde não há “nenhuma abstracção, nenhum devaneio, nenhuma superficialidade”.
A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor”, assim desabafava. Agora que os chamados best-sellers se confundem, não raro, com a literatura light sobejamente publicitada (e folheada na areia das praias), é preciso escarafunchar nos esconsos de uma livraria para ir ao encontro de um livro de Torga, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena ou outro clássico português.
Escreveu Torga na sua carta ao poeta brasileiro Ribeiro Couto (Traço de União – Temas portugueses e brasileiros) que “progredir é crescer por dentro. Por diferentes palavras, direi que só do nosso interior se pode transformar o que nos é exterior. Assim, se completa o exterior que brota de dentro e o interior que perscruta de fora. Há quem chame renovação, revolução ou conversão a esta transformação interior que nos leva a uma mudança exterior. Depende da perspectiva doutrinária, da ética religiosa ou até da hermenêutica da vida. Seja qual for o ângulo, a sua essência pressupõe um profundo respeito pela pessoa no seu todo.
Observo, na minha contingência, o mundo como suportando uma crescente e porosa inércia mecanicista, mais perto da distopia do que da utopia. A sociedade hodierna é, mais agora, o produto, a conta e o resultado de individualismos que, paradoxalmente, atrofiam a própria ideia de individualidade. Como também alimentam a aceitação da circunstância estimulada pelo fascínio dos meios e pelo mimetismo que transforma pessoas distintas em agregados dissolúveis e dissolventes. Como alertava o escritor e poeta, a olhar a mentira dos salões esquecemos a verdade das celas”.
Neste breve texto, sublinho, ainda, o nobre sentido pátrio como uma das marcas de água de Miguel Torga. Abandonar a Pátria com um saco às costas? Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.” Ou, noutro ângulo, “eu sou um homem de impressões digitais, das mãos aos pés. O sulco do arado é tão impressivo para mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro”.
IPSIS VERBIS
CITANDO TORGA 
(I): “Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer.”
(II) “Sim, sou um nó de contradições: mas que seria de mim se o desatasse? Se, em vez de uma unidade na diversidade, fosse uma diversidade sem unidade?”
(III) “A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez.”
(IV) “O meu partido é o mapa de Portugal.”
(V): “Quando não trabalho sinto-me em pecado mortal.”
(VI): “Lá em baixo (cidade) sou uma ficção entre ficções; aqui (aldeia) sou uma criatura entre criaturas."

SCIENTIA AMABILIS
Foto
ULMEIRO ou NEGRILHO (Ulmus minor Miller)
A um negrilho
Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.
Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!
(Miguel Torga, Diário VII, 26 de Abril de 1954)

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