domingo, 26 de agosto de 2018

Crónica novelesca “à Garrett”


Caprichosa, romanceada, com uns laivos de suspense e participação pessoal, denunciadora de um espírito vivo e atento, e de boa formação moral, de sentido crítico e amor bem enraizado pelas coisas pátrias, e, sobretudo, pelas aptidões de trabalho e empreendimento produtivos, revelando, além disso, toda uma prática viageira e mundana, a merecer, aos mais vocacionados para as “sensibilites” do bem-fazer pelas camadas mais desprotegidas - tantas vezes resultado de astuciosa inércia - o apodo desprezativo de “tia de Cascais”. Eis uma crónica de Maria João Avillez, mulher que saboreia a vida com intrepidez e inteligência, e provavelmente com uma qualidade económica de mérito próprio, mas forjador também de mesquinhas invejas, no nosso país que o fado antigo modelou – ou, antes, o seu contrário: o país é que foi o agente modelador da modulação verbalizada ou entoada pelas tascas do nosso adormecimento...
Considerações estivais (1) /premium
OBSERVADOR, 23/8/2018
O que me sucede é achar que são sempre pouquíssimo banais as histórias de portugueses como Gonçalo Pessoa ou Carlos Gomes que persistem em fazer mais do que o possível e eu gosto de as contar.
1. Que fazer quando os ouço, como se fossem os primeiros, elogiar a Comporta? Sorrir, disfarçando a ironia? Dizer que fui lá pela primeira vez há quase quarenta anos e conheço tudo aquilo como os dedos da mão? Agradecer-lhes a generosa quantidade de paternalismo que nos atiram para cima por nos terem “descoberto”? Concordar amavelmente que “oui… oui” ? Para não falar em toda a sorte de revistas, “especializadas” ou apenas fúteis, onde se lê ser aquele um “fabuloso destino” ou “paraíso ainda secreto” dos ricos deste pobre mundo… Destino tão sedutor que — suspiro de alívio a soltar-se das manchetes — até dispensa “papparazzi e seguranças”.
2. “Sabe que não ‘se’ fala de outra coisa na Europa senão da Comporta?” Pausa. E onde será este “se” europeu, pergunto muito depressa a mim própria enquanto penso no que hei de dizer ao meu interlocutor, que estava aliás a ser muito mais simpático que snob?
O interlocutor era um loquaz Philippe Stark mas esta minha automática mania de tornar as conversas mais, como dizer?,  produtivas, fez o diálogo voar velozmente para outras paragens que não “ce paradis perdu de Comportááá”.
De tal forma que só a preguiça e o apelo do mar impediram o mergulho numa reportagem falada com aquele homem praticante da boa conversa, comunicativo, cabotino qb e corpulento, vestido com um traje riscado até aos pés (sim a Comportáááá “deles” tem dress code), mas em qualquer caso eu já saciara a minha curiosidade: que fazia ele, ali?
Tive sorte: Stark abundou em detalhes. O episódio — ocorrido há dois verões — foi suficientemente esclarecedor para eu antever o que já estava em curso. Para o bem e para o mal, muita coisa iria mudar. Oxalá para o bem, mas… sentimentos divididos.
3. Quando, no início da década de oitenta do outro século, íamos, num bando de amigos & filhos, para a Comporta, o paraíso, não perdido mas achado, era ali. Silencioso e magnífico. Morávamos numa casa branca, envolta de terra alaranjada e pinheiros selvagens e éramos felizes naquele quase deserto. Um jipe ronceiro levava-nos até ao mar, por dunas onde cheirava a esteva e não havia ninguém. E, depois, eram os alegres banhos, pais e filhos, brincadeiras e sanduíches até um tardio almoço mas havia quem se deixasse estar, entre o céu e o mar. Sim, já houvera a revolução de 1974 mas o Talleyrand do “quem não viveu antes da revolução, não conheceu a doçura de viver” era ali uma máxima mínima. Os dias eram amáveis e afáveis e, apesar dos solavancos do país, que não eram amáveis nem afáveis, a vida escorria, o verão também.
Na pequena vila, que me lembre, havia uma boa organização social (a antiga administração sabia o que fazia): habitação, escola, igreja, padaria, GNR, posto médico, cantina, a casa do padre com as filas de casinhas brancas ao seu redor, uma modesta tabacaria e o “sr. Gomes”, abastecedor único daquelas paragens. Vendia frescos e víveres numa semi penumbra acanhada a habitantes e a (escassos) veraneantes que logo debandavam, deixando a pequena vila entregue à sua brancura solitária, após os calores do verão.
É esta harmonia quieta e este tempo suspenso que de súbito me acodem quando, entre o pasmo e a expectativa, me apercebo de tudo o que exorbita de uma paisagem mil vezes abençoada, porque todas as fadas um dia se debruçaram sobre o seu berço. Sim, a vida anda, as coisas evoluem, o futuro é a mudança que o passado lhe reclama. Seja. Mas…
4. Gostaria de não ser mal interpretada: ainda bem que a Comporta dá brilho e dinheiro à sua região e nome ao país mas esse não é o ponto. Já não é. O ponto é saber se o fará bem. Saber se agora, à beira de um novo concurso para a sua venda, ela será defendida como a jóia que é. Protegida das armadilhas da “exclusividade” e do “luxo”, revistos por desordenamentos e abusos. Se a sua paisagem estiver — pelo menos – a ser tão protegida quanto cobiçada, teremos aprendido qualquer coisa sobre aquilo a que colectivamente nos obriga a honra de um património de excepção. (Embora, não é verdade?, o “cuidar” nunca seja, entre nós, olhado por todos, como tarefa de todos.)
Com a legitimidade de quem frequenta o sítio desde há muito (chegando a ter, várias vezes, casas alugadas no meio dos campos) é quase minha obrigação evocar hoje aqui dois nomes que justamente tudo fazem para salvaguardar a Comporta da desqualificação ou da predação.
Haveria obviamente mais nomes, escolhi estes porque vale a pena falar deles, porque os admiro e ao que fazem. São diferentes na escala, na profissão, na geração e um é de lá, o outro de fora. Iguais, porém, na exigência e na intransigência (nunca me cansarei de louvar esforço e brio numa pátria a eles avessa e quase sempre cansada).
Numa pincelada de palavras, falemos então destes dois cavalheiros, Carlos Gomes e Gonçalo Pessoa.
Começando pelo primeiro: Carlos Gomes, a que acima já aludi, vem hoje nos jornais, é fotografado, falado internacionalmente, requisitado. Quando o conheci, era o proprietário de um humilde “estaminé”, transformado hoje numa morada gastronómica de referência.
“Então, sr. Gomes, qual o segredo, qual o milagre?”, perguntei-lhe eu quando em Junho passei a cumprimentá-lo, meia estonteada face ao seu cada vez mais apetecido poiso de sabores e delícias. Mas… não havia segredo, nem houve milagre. Havia exigência e houve a capacidade de mudar. Ambas geradoras de novas iniciativas, (como foi a abertura da saborosa casa de “petiscos” ali mesmo ao lado, com a mulher aos comandos).
Começou há trinta anos, com os clientes do então nascido Soltróia a pedirem produtos “diferentes”. A seguir, um lote de novos clientes “a baterem à porta da mercearia por coisas um pouco mais alternativas e de maior qualidade”, aceleraram a mudança. Gomes soube acompanhar a passada. E, depois, o gosto pelo risco (“dentro dos limites”) e o “aconselhamento familiar” (“os mais próximos queriam sempre ir mais além”) tiveram um bom suporte: as “viagens”, uma Comporta que “ia crescendo” e “um forte gosto pela cozinha” conduziram naturalmente a família a escolhas mais “refinadas”. Trinta anos depois, o esforço e o trabalho do clã familiar impressionam. O seu êxito também.
Êxito discreto, como Carlos Gomes. Não contem com ele para se abonar com o carrossel de estrelas que sem pré-aviso lhe entra diariamente porta dentro (“Ah, nada de comentários, aqui eles estão em casa”) e ainda menos para o auto-elogio: “Alta qualidade?”,  espanta-se ele quando lhe elogio as prateleiras, “mas podia ser de outra maneira?” Não podia. Eu conheço este meu amigo.
5. Quem havia de dizer que um dia Gonçalo Pessoa viria a comandar hotéis com a mesma destreza com que comanda aviões? Uma história que começou pela descoberta da Comporta em 2002 (“foi amor à primeira vista, era o oposto do que estávamos habituados no Algarve…”), prosseguiu com a rendição ao “espaço, à natureza, à autenticidade” através da compra de um terreno (“bem arborizado e de fácil acesso”) para morada de férias; e rematou com um notável golpe de intuição: em 2011, no arranque da construção da casa, Gonçalo “alterou-a” para um “pequeno hotel de charme”. Se a intuição é meio caminho andado (“percebi que aquele destino emitia os primeiros sinais de procura de clientela estrangeira com poder de compra”) a desinstalação fez o resto: em 2014, o Sublime abre as portas com 14 quartos e um restaurante, mas o comandante continuava, do outro lado do Tejo, a pilotar aviões. Nem a distância, o trânsito ou os sobressaltos inerentes à aventura da Comporta pareciam demovê-lo ou sequer afligi-lo. Bem pelo contrário, ambos os voos, o hoteleiro e o outro, continuaram as suas rotas: em 2016 o Sublime ampliava-se com um novo edifício, 10 casas (hoje já são em maior número) e dois restaurantes, enquanto em simultâneo os aviões comandados pelo Comandante Pessoa seguiam para os seus respectivos destinos.
6. Graças à generosidade de uns sobrinhos que ali têm uma casa, passei lá uma semana no inicio do verão. No dia seguinte tinha percebido que o Sublime era sublime. Mal passara o largo portão logo me seduzira o paisagismo, a escolha das plantas, o arvoredo, o cheiro da terra quente, o desenho ordenado de casas e coisas. A impoluta beleza. Não é para qualquer um. E ainda menos para alguém tão novo (Gonçalo Pessoa não tinha 40 anos no início desta empreitada) e, mais, sem tradição hoteleira na família. Quando lá estive, pedi para falar com o “Sr. Comandante”. Cruzara-me com ele um ano antes, num jantar “comportense” mas agora ali, a minha curiosidade era directamente proporcional à surpresa que me suscitava um lugar onde tudo encaixava: exigência e natureza, refinamento e paisagem, fareniente e singularidade, boas maneiras e altíssima qualidade.
Numa das esplanadas, Gonçalo, Coca-Cola na mão, sorri. Com a serenidade paciente que o caracteriza, vai somando respostas às perguntas. As voltas ao mundo, por exemplo, foram uma boa escola: “O gosto pelo atendimento público e o viajar muito permitiu-me a mim e à minha mulher aprender com os outros o que fazer de certo e errado…”
Daí à “vontade de oferecerem serviços invulgares para um pequeno hotel” passando por “uma abordagem centrada no personalizado e no autêntico”, foi um passo.
Está dado. E agora? Agora, eis o sr. Comandante Pessoa — que não é aparatoso nem vaidoso — a desejar que o Sublime venha a ser aquilo que muito simplesmente ele talvez esteja já a caminho de ser: “um daqueles hotéis icónicos que preenchem o imaginário dos viajantes”: “Gostava que ele fosse um ‘clássico’ que resistisse ao tempo e às modas, que envelhecesse bem…”.
Subentendido: que “envelhecesse bem” nesta Comporta mágica para o desenvolvimento da qual o aviador/hoteleiro quer colaborar como partner activo e sobre cujo futuro ele tem algumas ideias. (ver a propósito a entrevista com Comandante Gonçalo Pessoa aqui no Observador).
7. Conclusão: sim, há certamente mais mercearias de excelência para além do “sr. Gomes” e o Sublime de Gonçalo Pessoa não será o único hotel português onde queremos voltar. O que me sucede é achar que são sempre pouquíssimo banais as histórias de portugueses que insistem e persistem em fazer mais do que o possível e eu gosto de as contar. Estes dois senhores (e certamente alguns outros) trabalham incansavelmente para que daqui a cinco ou cinquenta anos, o seu lugar de estimação continue um paraíso.
COMENTÁRIOS
Antonio M Graca
Continuo a achar um prazer ler a sua coluna no "Observador". A senhora fala das coisas que eu gosto com a simplicidade que eu gosto. Devo dizer que, aqui há muitos anos também encontrei o meu canto do paraíso que agorta se perdeu completamente. Embora sendo do norte (nasc ido na cidade do Porto) nos finais dos anos 60 de século passado, por motivos profissionais fui viver para o Algarve. A cidade de Faro, onde primitivamente vivi era um pequeno e sonolento burgo tendo como atractivo principal o aeroporto onde em muitas noites os aviões da TAP, em treino nocturno de piloltos, eram a atracção principal. As praias eram desertos inebriantes de areia, paz e socego que infelizmente o 25A por um lado e a descolonozação (exemplar???) por outro se encarregaram de destruír. Vim novamente para o Porto em 1980 e com uma ou ouitra excepção voltei uma ou outra vez a Portimão ou Sagres mas já não é a mesma coisa. Acredito piamente que nunca se deve voltar ao sítio em que se foi feliz e no sul, eu fui...e muito.Pena ter desaparecido aquele Algarve a que eu tanto queria...
William Smith
Como não conheço a Comporta, este seria o típico assunto em que nunca perderia o meu tempo a lê-lo. Mas como era escrito por MJA, resolvi aventurar-me. É impressionante como é que o estilo desta senhora me consegue fazer interessar e apreciar assuntos pelos quais eu nunca me passaria pela cabeça que me interessassem.
josé maria
Crónica de férias de uma tia de Cascais. Devem interessar muito aos sem-abrigo as suas selectas considerações estivais.
Manuel RB -> josé maria
Você detesta os que "brincam aos pobrezinhos". Prefere muito mais os que brincam com os pobrezinhos. E se forem poucos, há sempre uns maduros que se encarregam de arranjar mais. Nada como a desgraça dos desgraçados para alegrar o seu dia e justificar os seus ideais. Desgrace-se sozinho, deixe os outros em paz!
Jay Pi -> josé maria
Os complexos de inferioridade de classe são uma coisa tramada... Tão tramada que roubam a quem deles sofre qualquer noção do ridículo.
António Moreira
A minha descoberta da Comporta deu-se há cerca de 8 anos, já o sítio era mais ou menos o que é hoje, embora sem a ameaça que hoje, fruto das circunstâncias, por lá paira de passar a ser uma outra Quinta do Lago, isso se as coisas correrem pelo melhor, e havia já muito que não era o lugar perdido no mapa que MJA conheceu nos idos de ‘80. Partilho da ideia que mais ou menos toda a gente tem, a Comporta é um pequeno paraíso, condição que tem precisamente porque fez-se de uma forma que não se destinava a ser possível a todos. O Sublime de Gonçalo Pessoa, que MJA cita como exemplo (e que é um bom exemplo), destina-se a ser para o alcance de muito poucos... mas se as notícias que saíram há umas atrás tiverem pernas para andar, de que as casas construídas na Comporta, que eu apenas conheço vistas de fora ou de alguma revista que me tenha passado pelas mãos, estiverem em vias de ser escrutinadas por um zelosíssimo MP e pelos sempre sinistros departamentos urbanístico das autarquias, temo que o paraíso da Comporta tem os seus dias contados. Se assim for confesso que tenho imensa pena. Não tanto por ter alguma coisa a perder, pois não são casas ou hotéis onde eu me possa dar ao luxo de passar umas férias, mas essencialmente porque isso seria mais uma manifestação de um talento tão nosso, que é o das nossas autoridades públicas, por via do seu ius imperium, darem cabo do que temos ou fazemos de melhor. 
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