Um escrito (de SHAHD
WADI),
contado de forma suficientemente patética, a apelar à repulsa pelo dominador
judeu, e ao sentimento que o drama palestiniano facilmente promove, sobretudo
em nós, que para sempre nos deixamos embalar na piedade pelos pezinhos
descalços da criança caminhando na neve, da “Balada” de Augusto Gil, “Primeiro bem definidos, Depois em sulcos
compridos Porque não podia erguê-los.” Lembrei-me do som do punho de
Villaret no peito, na recitação final da Balada, que sempre me impressionou
pela parolice do gesto acompanhando as palavras: “Cai neve na natureza E cai no meu coração.” Procurei na Internet o
poema recitado por ele, mas não o encontrei, talvez por igual sentimento de
repúdio pela tradução gestual do grande declamador. Entretanto, ouvi outras
vozes, e até a voz linda de Lara Li, que o cantou mas, artista que é, não
referiu o episódio dos pezinhos na neve. Permito-me, entretanto, referir a
injustiça deste mundo, e não só para com os que lutam pela sua pátria. A mulher
palestiniana elegante que atira pedras, na primeira Intifada, ou a donzela que
é presa por esbofetear o soldado judeu, mas que aspira à liberdade e ama a
vida, são bem exemplo de mulheres valentes e bem femininas no seu gosto pela
elegância ou pelos sabores da vida, que a prepotência lhes retira e a que têm
todo o direito, como seres humanos, como os meninos descalços na neve do nosso
choradinho. Mas ao ouvir Lara Li, bem
como outros cantores esquecidos, acho que por cá se passam os mesmos
ostracismos do tipo judaico, desprezando vozes e actores que tão expressivos
foram e continuam a ser. Somos bem judeus, no egoísmo e no pedantismo dos
nossos desprezos de superioridade, ou de mesquinha indiferença.
OPINIÃO
Amamos a vida quando podemos
A ocupação israelita está a enfrentar
uma população que ama a vida, representada por uma menina com cabelos dourados
aos caracóis e um gelado na mão.
SHAHD WADI
PÚBLICO, 11 de Agosto de 2018
Uma das
fotografias icónicas da memória palestiniana da Primeira Intifada é de uma
mulher de saia travada e cachecol amarelo. A mulher descalça carrega os seus sapatos de
saltos altos, igualmente amarelos, numa mão, enquanto lança uma pedra simbólica
contra a ocupação com a outra. Nem a saia nem os saltos altos lhe travam a
resistência, nem a resistência lhe impede de saborear os pequenos prazeres da
vida quando pode. Lança o corpo, com elegância, contra a ocupação, para que a
luta se torne numa espécie de dança. Talvez por isso esta foto tenha sido
utilizada para inspirar o cartaz do Festival de Dança Contemporânea em Ramallah
do ano passado. E sim, este tipo de festivais de dança existe numa terra
ocupada, tal como existe um festival de cinema em Gaza, no meio dos escombros,
entre muitos outros festivais culturais na Palestina, porque, como diz o poeta
Mahmoud Darwish, “Também nós amamos a vida, quando podemos”.
Mas nem sempre
podemos.
A menina Ahed Tamimi, cuja história já é conhecida por muitas
pessoas, foi há poucos dias libertada das prisões israelitas, depois de ter
sido aprisionada por ter esbofeteado um soldado que estava a disparar contra os
habitantes da sua vila a partir da sua casa. O mesmo soldado tinha
anteriormente atingido o seu primo com uma bala na cara. A bofetada foi filmada
e divulgada pela sua mãe, e causou “indignação” na sociedade israelita.
A Lei do
Estado-Nação aprovada no Knesset israelita há poucas semanas, que oficializa
o apartheid israelita,
pouco indignou a sociedade israelita, mas uma bofetada merecida que uma menina
de caracóis dourados deu a um soldado mereceu um desejo do ministro da Educação
israelita de Ahed “terminar a sua vida na prisão”. Com 16 anos
então, foi detida na sua casa a meio da noite, foi interrogada por dois homens,
que para além de ameaçá-la, a ela e aos seus familiares, assediaram-na,
comentando o seu corpo de pele branca e olhos azuis. Ahed estava sozinha sem
pais, sem advogados, nem sequer na presença de uma mulher soldada. Ahed passou
oito meses nas prisões israelitas antes de ser libertada, deixando ainda para
trás cinco meninas (entre os cerca de 350 menores actualmente nas prisões
israelitas). Todavia, apesar deste pesadelo que a forçou a tornar-se numa
adulta prematura, Ahed resiste e insiste em voltar a ser criança quando pode. A
primeira coisa que fez quando saiu da prisão foi comer um gelado. A
resiliência em viver os prazeres da sua idade é algo que ninguém lhe pode
tirar, porque Ahed ama a vida quando pode.
Quando Ahed foi
questionada sobre aquilo que a prisão lhe ensinou, respondeu: “A prisão
ensinou-me amar a vida.” Mas não foi a única coisa que aprendeu na prisão, pois
acabou o último ano da escola durante o período de cativeiro. Dentro da prisão,
ao lado de outras mulheres palestinianas, também estudou textos jurídicos e
decidiu formar-se em Direito Internacional. E porque ama a vida apenas quando
pode, e nem sempre a ocupação deixa, abdicou do seu sonho de ser futebolista.
Isto fica para uma outra vida, uma vida em que uma menor palestiniana não
necessita de saber as leis internacionais.
Amando a vida,
Ahed Tamimi acabou com vários mitos israelitas que desumanizam as palestinianas
e que lhes emolduram a imagem de terroristas ou vítimas. De repente, o
“inimigo” que Israel tenta sempre criar é afinal uma criança com cabelos loiros
soltos, sem armas na mão (sem ser um gelado quando pode), enfrentada por um
soldado poderoso. Um artigo do jornalista israelita Gideon
Levy, que foi escrito na altura do seu aprisionamento, afirma que a menina da
vila Nabi Saleh conseguiu acabar com um outro mito israelita, o mito de masculinidade.
Ahed acabou com a demonstração de machismo e com a manifestação da testosterona
israelita, mostrando que um soldado de um dos exércitos mais poderosos do mundo
é vencível por uma menina que afirma que a Palestina é livre e rebelde, tal
como os seus cabelos. Ahed mostrou ao mundo quem é o forte e quem é o fraco
neste conflito, e não é o soldado que invade a casa de outros, armado da cabeça
aos pés, mas sim uma menina de cabelos aos caracóis, sem armas mas com razão.
Uma menina que defende a sua casa com o seu amor pela vida. Amando a vida, Ahed
jamais será vencida.
A ocupação israelita está a
enfrentar uma população que ama a vida, representada por uma menina com cabelos
dourados aos caracóis e um gelado na mão. Apesar da destruição, da expulsão, do
aprisionamento e da morte, a resiliência no amor para a vida que o povo
palestiniano tem talvez seja a sua arma mais forte. É a arma que mais perturba
o seu ocupante. Um ocupante que é enfrentado ora com uma saia travada, ora com
um gelado na mão e ora com uma dança ao ritmo de um poema: “Também nós amamos a
vida, quando podemos.”
Investigadora em assuntos palestinianos e Feministas
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