quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Tempo de FUTURISMO

Ou: a violência tenaz de quem sabe, pode e quer. Futuro sempre presente, passado sempre actual. Incêndio. Falência. Reconstrução.
Leiamos o ULTIMATUM de Álvaro de Campos, e riamos com ele, meditando.

Álvaro de Campos
ULTIMATUM
de Álvaro de Campos (in Portugal Futurista), via Internet
Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.
Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia homeopática, tenia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezassete, falsificada!
Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Chateaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!
Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das partículas alheias, psicólogo de tampa de brasão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade!
Fora! Fora!
Fora tu, George Bernard Shaw, vegeteriano do paradoxo, charlatão da sinceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!
Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios !
Fora tu, Yeats da céltica bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!
Fora! Fora!
Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, «D. Juan em Patmos» (solo de trombone)!
E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado!
E tu, Loti, sopa salgada, fria!
E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand!
Fora! Fora! Fora!
E se houver outros que faltem, procurem-nos aí para um canto!
Tirem isso tudo da minha frente!
Fora com isso tudo! Fora!
Aí! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismarck sem tampa a estorvar o lume?!
Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!
E tu, Venizelos, fatia de Péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para baixo?!
E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato-Boselli da incompetência ante os factos, todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! Todos! Todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!
Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Falência geral de tudo por causa de todos!
Falência geral de todos por causa de tudo!
Falência dos povos e dos destinos — falência total!
Desfile das nações para o meu Desprezo!
Tu, ambição italiana, cão de colo chamado César!
Tu, «esforço francês», galo depenado com a pele pintada de penas! (Não lhe dêem muita corda senão parte-se!)
Tu, organização britânica, com Kitchener no fundo do mar desde o princípio da guerra!
(It's a long, long way to Tipperary, and a jolly sight longer way to Berlin!)
Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristianismo e vinagre de nietzschização, colmeia de lata, transbordamento imperialoide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida porque se partiu!
Tu, «imperialimo» espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito nas almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos!
Tu, Estados Unidos da América, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da aÁorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
E tu, Brasil «república irmã», blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir!
Ponham-me um pano por cima de tudo isso!
Fechem-me isso à chave e deitem a chave fora!
Onde estão os antigos, as forças, os homens, os guias, os guardas?
Vão aos cemitérios, que hoje são só nomes nas lápides!
Agora a filosofia é o ter morrido Fouillée!
Agora a arte é o ter ficado Rodin!
Agora a literatura é Barrès significar!
Agora a crítica é haver bestas que não chamam besta ao Bourget!
Agora a política é a degeneração gordurosa da organização da incompetência!
Agora a religião é o catolicismo militante dos taberneiros da fé, o entusiasmo cozinha-franceza dos Maurras de razão-descascada, é a espectaculite dos pragmatistas cristãos, dos intuicionistas católicos, dos ritualistas nirvânicos, angariadores de anúncios para Deus!
Agora é a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá!
Sufoco de ter só isto à minha volta!
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas!
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo!
Nenhuma ideia grande, ou noção completa ou ambição imperial de imperador-nato!
Nenhuma ideia de uma estrutura, nenhum senso do Edifício, nenhuma ânsia do Orgânico-Criado!
Nem um pequeno Pitt, nem um Goethe de cartão, nem um Napoleão de Nürnberg!
Nem uma corrente literária que seja sequer a sombra do romantismo ao meio-dia!
Nem um impulso militar que tenha sequer o vago cheiro de um Austerlitz!
Nem uma corrente política que soe a uma ideia-grão, chocalhando-a, ó Caios Gracchos de tamborilar na vidraça!
Época vil dos secundários, dos aproximados, dos lacaios com aspirações de lacaios a reis-lacaios!
Lacaios que não sabeis ter a Aspiração, burgueses do Desejo, transviados do balcão instintivo! Sim, todos vós que representais a Europa, todos vós que sois políticos em evidência em todo o mundo, que sois literatos meneurs de correntes europeias, que sois qualquer coisa a qualquer coisa neste maelström de chá-morno!
Homens-altos de Lilliput-Europa, passai por baixo do meu Desprezo ! Passai vós, ambiciosos do luxo quotidiano, anseios de costureiras dos dois sexos, vós cujo tipo é o plebeu Annunzio, aristocrata de tanga de ouro!
Passai vós, que sois autores de correntes artísticas, verso da medalha da impotência de criar!
Passai, frouxos que tendes a necessidade de serdes os istas de qualquer ismo!
Passai, radicais do Pouco, incultos do Avanço, que tendes a ignorância por coluna da audácia, que tendes a impotência por esteio das neo-teorias!
Passai, gigantes de formigueiro, ébrios da vossa personalidade de filhos de burguês, com a mania da grande-vida roubada na dispensa paterna e a hereditariedade indesentranhada dos nervos!
Passai, mistos; passai, débeis que só cantais a debilidade; passai, ultra-débeis que cantais só a força, burgueses pasmados ante o atleta de feira que quereis criar na vossa indecisão febril !
Passai, esterco epileptóide sem grandezas, histerialixo dos espectáculos, senilidade social do conceito individual de juventude!
Passai, bolor do Novo, mercadoria em mau estado desde o cérebro de origem!
Passai à esquerda do meu Desdém virado à direita, criadores de «sistemas filosóficos», Boutroux, Bergsons, Euckens, hospitais para religiosos incuráveis, pragmatistas do jornalismo metafísico, lazzaroni da construção meditada!
Passai e não volteis, burgueses da Europa-Total, párias da ambição do parecer-grandes, provincianos de Paris!
Passai, decigramas da Ambição, grandes só numa época que conta a grandeza por centimiligramas!
Passai, provisórios, quotidianos, artistas e políticos estilo lightning-lunch, servos empoleirados da Hora, trintanários da Ocasião!
Passai, «finas sensibilidades» pela falta de espinha dorsal; passai, construtores de café e conferência, monte de tijolos com pretensões a casa!
Passai, cerebrais dos arrabaldes, intensos de esquina-de-rua!
Inútil luxo, passai, vã grandeza ao alcance de todos, megalomonia triunfante do aldeão de Europa-aldeia!
Vós que confundis o humano com o popular, e o aristocrático com o fidalgo! Vós que confundis tudo, que, quando não pensais nada, dizeis sempre outra coisa! Chocalhos, incompletos, maravalhas, passai!
Passai, pretendentes a reis parciais, lords de serradura, senhores feudais do Castelo de Papelão!
Passai, romantismo póstumo dos liberalões de toda a parte, classicismo em álcool dos fetos de Racine, dinamismo dos Whitmans de degrau de porta, dos pedintes da inspiração forçada, cabeças ocas que fazem barulho porque vão bater com elas nas paredes!
Passai, cultores do hipnotismo em casa, dominadores da vizinha do lado, caserneiros da Disciplina que não custa nem cria!
Passai, tradicionalistas auto-convencidos, anarquistas deveras sinceros, socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores para quererem deixar de trabalhar! Rotineiros da revolução, passai!
Passai eugenistas, organizadores de uma vida de lata, prussianos da biologia aplicada, neo-mendelianos da incompreensão sociológica!
Passai, vegeterianos, teetotalers, calvinistas dos outros, kill-joys do imperialismo de sobejo!
Passai, amanuenses do «vivre sa vie» de botequim extremamente de esquina, ibsenóides Bernstein-Bataille do homem forte de sala de palco!
Tango de pretos, fosses tu ao menos minuete!
Passai, absolutamente, passai!
Vem tu finalmente ao meu Asco, roça-te tu finalmente contra as solas do meu Desdém, grand finale dos parvos, conflagração-escárneo, fogo em pequeno monte de estrume, síntese dinâmica do estatismo ingénito da Época!
Roça-te tu e roja-te, impotência a fazer barulho!
Roça-te, canhões declamando a incapacidade de mais ambição que balas, de mais inteligência que bombas!
Que esta é a equação-lama da infâmia do cosmopolitismo de tiros:
JONNART / BÉLGICA = VON BISSING / GRÉCIA
Proclamem bem alto que ninguém combate pela liberdade ou pelo Direito! Todos combatem por medo dos outros ! Não tem mais metros que estes milímetros a estatura das suas direcções!
Lixo guerreiro-palavroso! Esterco Joffre-Hindenburguesco! Sentina europeia de Os Mesmos em excisão balofa!
Quem acredita neles?
Quem acredita nos outros?
Façam a barba aos poilus!
Descasquetem o rebanho inteiro!
Mandem isso tudo pra casa descascar batatas simbólicas!
Lavem essa celha de mixórdia inconsciente!
Atrelem uma locomotiva a essa guerra!
Ponham uma coleira a isso e vão exibi-lo para a Austrália!
Homens, nações, intuitos, está tudo nulo!
Falência de tudo por causa de todos! Falência de todos por causa de tudo! De um modo completo, de um modo total, de um modo integral:
MERDA!
A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro !
A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais !
Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo !
Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!
Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!
A Europa quer muito destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!
A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes — a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!
A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Mateira caótica!
Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!
Quer a sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!
A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!
A Europa está farta de não existir ainda ! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria ! A Era das Máquinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!
A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!
Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à época das Coisas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!
Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes Completos, Harmónicos Subtis!
A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada !
O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!
O que aí está não pode durar, porque não é nada!
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!
Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir?
Quem sabe estar em um Sagres qualquer?
Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!
Eu, ao menos sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!
Ergo-me ante, o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!
Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!
Vou indicar o caminho!
ATENÇÃO!
Proclamo, em primeiro lugar,
A Lei de Malthus da Sensibilidade
Os estímulos da sensibilidade aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão aritmética.
Compreende-se a importância desta lei. A sensibilidade — tomada aqui no mais amplo dos seus sentidos possíveis — é a fonte de toda a criação civilizada. Mas essa criação só pode dar-se completamente quando essa sensibilidade esteja adaptada ao meio em que funciona; na proporção da adaptação da sensibilidade ao meio está a grandeza e a força da obra resultante.
Ora a sensibilidade, embora varie um pouco pela influência insistente do meio actual, é, nas suas linhas gerais, constante, e determinada no mesmo indivíduo desde a sua nascença, função do temperamento que a hereditariedade lhe infixou. A sensibilidade, portanto, progride por gerações.
As criações da civilização, que constituem o «meio» da sensibilidade, são a cultura, o progresso científico, a alteração nas condições políticas (dando à expressão um sentido completo); ora estes ó e sobretudo o progresso cultural e científico, uma vez começado — progridem não por obra de gerações, mas pela interacção e sobreposição da obra de indivíduos, e, embora lentamente a princípio, breve progridem ao ponto de tomarem proporções em que, de geração a geração, centenas de alterações se dão nestes novos estímulos da sensibilidade, ao passo que a sensibilidade deu; ao mesmo tempo, só um avanço, que é o de uma geração, porque o pai não transmite ao filho senão uma pequena parte das qualidades adquiridas.
Temos, pois, que a uma certa altura da civilização há de haver uma desadaptação da sensibilidade ao meio, que consiste dos seus estímulos — uma falência portanto. Dá-se isso na nossa época, cuja incapacidade de criar grandes valores deriva dessa desadaptação.
A desadaptação não foi grande no primeiro período da nossa civilização, da Renascença ao século XVIII, em que os estímulos da sensibilidade eram sobretudo de ordem cultural, porque esses estímulos, por sua própria natureza, eram de progresso lento, e atingiam a princípio apenas as camadas superiores da sociedade.
Acentuou-se a desadaptação no segundo período, que parte da Revolução para o século XIX, e em que os estímulos são já sobretudo políticos, onde a progressão é facilmente maior e o alcance do estímulo muito mais vasto. Cresceu a desadaptação vertiginosamente no período desde meados do século XIX à nossa época, em que o estímulo, sendo as criações da ciência, produz já uma rapidez de desenvolvimento que deixa atrás os progressos da sensibilidade, e, nas aplicações práticas da ciência, atinge toda a sociedade. Assim se chega à enorme desproporção entre o termo presente da progressão geométrica dos estímulos da sensibilidade e o termo correspondente da progressão aritmética da própria sensibilidade.
Daí a desadaptação, a incapacidade criativa da nossa época. Temos, portanto, um dilema: ou morte da civilização, ou adaptação artificial, visto que a natural, a instinctiva faliu.
Para que a civilização não morra, proclamo, portanto em segundo lugar,
A Necessidade da Adaptação Artificial
O que é a adaptação artificial?
É um acto de cirurgia sociológica. É a transformação violenta da sensibilidade de modo a tornar-se apta a acompanhar pelo menos por algum tempo, a progressão dos seus estímulos.
A sensibilidade chegou a um estado mórbido, porque se desadaptou. Não há que pensar em curá-la. Não há curas sociais. Há que pensar em operá-la para que ela possa continuar a viver. Isto é, temos que substituir a morbidez natural da desadaptação pela sanidade artificial feita pela intervenção cirúrgica, embora envolva uma mutilação.
O que é que é preciso eliminar do psiquismo contemporâneo?
Evidentemente que é aquilo que seja a aquisição fixa mais recente no espírito — isto é, aquela aquisição geral do espírito humano civilizado que seja anterior ao estabelecimento da nossa civilização, mas recentemente anterior; e isto por três razões: (a) porque, por ser a mais recente das fixações psíquicas, é a menos difícil de eliminar; (b) porque, visto que cada civilização se forma por uma reacção contra a anterior, são os princípios da anterior que são os mais antagónicos à actual e que mais impedem a sua adaptação às condições especiais que durante esta apareçam; (c) porque, sendo a aquisição fixa mais recente, a sua eliminação não ferirá tão fundo a sensibilidade geral como o faria a eliminação, ou a pretensão de eliminar, qualquer fundo depósito psíquico.
Qual é a ultima aquisição fixa do espírito humano geral?
Deve ser composta de dogmas do cristianismo, porque a Idade Média, vigência plena daquele sistema religioso, precede imediatamente e duradouramente, a eclosão da nossa civilização, e os princípios cristãos são contraditados pelos firmes ensinamentos da ciência moderna.
A adaptação artificial será portanto expontanente feita desde que se faça uma eliminação das aquisições fixas do espírito humano, que derivam da sua mergência no cristianismo.
Proclamo, por isso, em terceiro lugar,
A intervenção cirúrgica anti-cristã
Resolve-se ela, como é de ver, na eliminação dos três preconceitos, dogmas, ou atitudes, que o cristianismo fez que se infiltrassem na própria substância da psique humana.
Explicação concreta:
1. — Abolição do dogma da personalidade — isto é, de que temos uma Personalidade «separada» das dos outros. É uma ficção teológica. A personalidade de cada um de nós é composta (como o sabe a psicologia moderna, sobretudo desde a maior atenção dada à sociologia) do cruzamento social com as «personalidades» dos outros, da imersão em correntes e direcções sociais e da fixação de vincos hereditários, oriundos, em grande parte, de fenómenos de ordem colectiva. Isto é, no presente, no futuro, e no passado, somos parte dos outros, e eles parte de nós. Para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o que com mais verdade possa dizer «eu sou eu»; para a ciência, o homem mais perfeito é o que com mais justiça possa dizer «eu sou todos os outros».
Devemos pois operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, do Homem-Síntese da Humanidade.
Resultados desta operação:
(a) Em política: Abolição total do conceito de democracia, conforme a Revolução Francesa, pelo qual dois homens correm mais que um homem só, o que é falso, porque um homem que vale por dois é que corre mais que um homem só! Um mais um não são mais do que um, enquanto um e um não formam aquele Um a que se chama Dois. — Substituição, portanto, à Democracia, da Ditadura do Completo, do Homem que seja, em si-próprio, o maior número de Outros; que seja, portanto, A Maioria. Encontra-se assim o Grande Sentido da Democracia, contrário em absoluto ao da actual, que, aliás, nunca existiu.
(b) Em arte: Abolição total do conceito de que cada indivíduo tem o direito ou o dever de exprimir o que sente. Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. Não confundir com «a expressão da Época», que é buscada pelos indivíduos que nem sabem
sentir por si-próprios. O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro. O artista cuja arte seja uma Síntese-Soma, e não uma Síntese-Subtracção dos outros de si, como a arte dos actuais.
(c) Em filosofia: Abolição do conceito de verdade absoluta. Criação da Super-Filosofia. O filósofo passará a ser o interpretador de subjectividades entrecruzadas, sendo o maior filósofo o que maior número de filosofias espontâneas alheias concentrar. Como tudo é subjectivo, cada opinião é verdadeira para cada homem: a maior verdade será a soma-síntese-interior do maior número destas opiniões verdadeiras que se contradizem umas às outras.
2. — Abolição do preconceito da individualidade. — É outra ficção teológica — a de que a alma de cada um é una e indivisível. A ciência ensina, ao contrário, que cada um de nós é um agrupamento de psiquismos subsidiários, uma síntese malfeita de almas celulares. Para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o mais coerente consigo próprio; para o homem de ciência, o mais perfeito é o mais incoerente consigo próprio,
Resultados:
(a) Em política: A abolição de toda a convicção que dure mais que um estado de espírito, o desaparecimento total de toda a fixidez de opiniões e de modos-de-ver; desaparecimento portanto de todas as instituições que se apoiem no facto de qualquer «opinião pública» poder durar mais de meia-hora. A solução de um problema num dado momento histórico será feita pela coordenação ditatorial (vide parágrafo anterior) dos impulsos do momento dos componentes humanos desse problema, que é uma coisa puramente subjectiva, é claro. Abolição total do passado e do futuro como elementos com que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de todas as continuidades.
(b) Em arte: Abolição do dogma da individualidade artística. O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisível.
(c) Em filosofia: Abolição total da Verdade como conceito filosófico, mesmo relativo ou subjectivo. Redução da filosofia à arte de ter teorias interessantes sobre o «Universo». O maior filósofo aquele artista do pensamento, ou antes da «arte abstracta» (nome futuro da filosofia) que mais teorias coordenadas, não relacionadas entre si, tiver sobre a «Existência».
3. — Abolição do dogma do objectivismo pessoal. — A objectividade é uma média grosseira entre as subjectividades parciais. Se uma sociedade for composta, por ex., de cinco homens, a, b, c, d, e e, a «verdade» ou «objectividade» para essa sociedade será representada por a+b+c+d+e / 5
No futuro cada indivíduo deve tender para realizar em si esta média. Tendência, portanto de cada indivíduo, ou, pelo menos, de cada indivíduo superior, a ser uma harmonia entre as subjectividades alheias (das quais a própria faz parte), para assim se aproximar o mais possível daquela Verdade-Infinito, para a qual idealmente tende a série numérica das verdades parciais.
Resultado:
(a) Em política: O domínio apenas do indivíduo ou dos indivíduos que sejam os mais hábeis Realizadores de Médias, desaparecendo por completo o conceito de que a qualquer indivíduo é lícito ter opiniões sobre política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter opiniões o que for Média.
(b) Em arte: Abolição do conceito de Expressão, substituído pelo de Entre-Expressão. Só o que tiver a consciência plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que for Média portanto) pode ter alcance.
(c) Em filosofia: Substituição do conceito de Filosofia pelo de Ciência, visto a Ciência ser a Média concreta entre as opiniões filosóficas, verificando-se ser média pelo seu «carácter objectivo», isto é, pela sua adaptação ao «universo exterior» que é a Média das subjectividades. Desaparecimento portanto da Filosofia em proveito da Ciência.
Resultados finais, sintéticos:
(a) Em política: Monarquia Científica, antitradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média. Relegação do Povo ao seu papel cientificamente natural de mero fixador dos impulsos de momento.
(b) Em arte: Substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, pela sua expressão por (por ex.), dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento.
(c) Em filosofia: Integração da filosofia na arte e na ciência; desaparecimento, portanto, da filosofia como metafísica-ciência. Desaparecimento de todas as formas do sentimento religioso (desde o cristianismo ao humanitarismo revolucionário) por não representarem uma Média.
Mas qual o Método, o feitio da operação colectiva que há-de organizar, nos homens do futuro, esses resultados? Qual o Método operatório inicial?
O Método sabe-o só a geração por quem grito por quem o cio da Europa se roça contra as paredes! Se eu soubesse o Método, seria eu próprio toda essa geração!
Mas eu só vejo o Caminho; não sei onde ele vai ter.
Em todo o caso proclamo a necessidade da vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Faço mais: garanto absolutamente a vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Proclamo, para um futuro próximo, a criação científica dos Super-homens!
Proclamo a vinda de uma Humanidade matemática e perfeita!
Proclamo a sua Vinda em altos gritos!
Proclamo a sua Obra em altos gritos!
Proclamo‑A, sem mais nada, em altos gritos!
E proclamo também: Primeiro:
O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo!
E proclamo também: Segundo:
O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo!
E proclamo também: Terceiro:
O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!
Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o Infinito.
1917.
 TEXTO I – ANÁLISE:    A Europa diz que não sai. A Daimler-Benz anuncia a saída
O Médio Oriente continua a ser um barril de pólvora, que os EUA podem dispensar (apesar de Israel) porque já não precisam do seu petróleo, mas do qual a Europa ainda depende. Faltam-lhe os meios para pesar no xadrez.
PÚBLICO, 7 de Agosto de 2018
1. Os restantes subscritores do acordo nuclear com o Irão, assinado em 2015 depois de anos de negociações, sabiam que, mais tarde ou mais cedo, a saída dos Estados Unidos acabaria por feri-lo de morte. Donald Trump anunciou que abandonava o acordo em Maio deste ano. A sua estratégia para lidar com os “inimigos” da América, que são cada vez mais, é oposta à que levou Obama a negociar o acordo. Declarou-o o “pior acordo jamais negociado pelos EUA”. Quer negociar outro mas nos seus termos: considerando “a totalidade da ameaça iraniana”.
A saída dos EUA condenava inevitavelmente o acordo por duas razões. A primeira, que está hoje diante dos nossos olhos, diz respeito à economia. A reposição parcial das sanções à economia iraniana, que entraram em vigor às zero horas de terça-feira (petróleo e gás chegam em Novembro), são um golpe muito duro na economia iraniana, não tanto porque haja muito investimento americano no Irão, mas porque serão penalizadas as empresas europeias que investiram no Irão desde o acordo.
Trump deu-lhes à escolha: ou saem do Irão ou não farão negócios nos Estados Unidos. A resposta é óbvia, por mais que a Europa tenha anunciado que vai recorrer legalmente contra esta decisão e que vai tentar proteger as suas empresas. Ontema Comissão anunciou que não autorizava as empresas europeias a retirar do Irão, sob pena de levá-las à justiça. A resposta não se fez esperar. Exactamente à mesma hora, a Daimler-Benz anunciava que iria sair do Irão.
A reposição parcial das sanções à economia iraniana, que entraram em vigor às zero horas de terça-feira (petróleo e gás chegam em Novembro), são um golpe muito duro na economia iraniana, porque serão penalizadas as empresas europeias que investiram no Irão desde o acordo
No fundo, os europeus já sabiam que seria muito difícil. Quando os EUA saíram do acordo, o Presidente francês, Macron, recebeu as multinacionais francesas com grandes investimentos no Irão (entre as quais a Airbus, Total, PSA e Renault), que lhe comunicaram que a sua estratégia era a de saída. As empresas funcionam a longo prazo, disse o Presidente na altura. Apesar de todas as transformações económicas mundiais, a economia americana continua a ser um colosso cujo comportamento afecta o mundo inteiro.
2. A segunda razão é política. Os europeus estavam a tentar negociar um acordo nuclear com o regime de Teerão há quase uma década sem qualquer sucesso. Por razões óbvias. Ninguém, a não ser os EUA, estava em condições de dar a Teerão as garantias políticas que levassem o regime a aceitar correr esse risco. A política de Washington, antes de Obama, era a do “quanto pior melhor”, visando abertamente o derrube do regime. Apenas a garantia firme dos EUA de no regime change abriria a possibilidade de uma negociação. Foi o que Obama fez.
O conselheiro nacional de segurança de Trump, John Bolton, veio dizer que a Administração não quer “mudar o regime”. O regime não acredita. Trump conta ainda com uma situação económica interna no Irão que lhe é favorável. A economia iraniana, mesmo que tivesse começado a recuperar com o fim das sanções, continua em muito mau estado. Agora será pior. Como se viu nas grandes manifestações contra o regime de 2009, há uma classe média educada, que conhece o mundo e que não está disposta a viver eternamente mal.
3. Resta o contexto regional, explosivo, que Trump também está a alterar radicalmente. Quando chegou à Casa Branca, a sua primeira visita ao estrangeiro foi a Riad, para dizer à monarquia saudita que os EUA voltavam a ser um aliado para todas as ocasiões. Quebrou o equilíbrio estratégico que Obama tinha tentado criar entre os países que representam a grande fractura religiosa entre xiitas e sunitas, que lutam pela hegemonia regional: Irão e Arábia Saudita.
Com a guerra na Síria e a intervenção da Rússia, Teerão ganhou força, graças também ao seu ponta-de-lança para a desestabilização regional – o Hezbollah. Riad perdeu em toda a linha. Trump acusa o Irão (aliás, com razão) de financiar o terrorismo. O Médio Oriente continua a ser um barril de pólvora, que os EUA podem dispensar (apesar de Israel) porque já não precisam do seu petróleo, mas do qual a Europa ainda depende. Faltam-lhe os meios para pesar no xadrez.
Fica ainda por saber se as sanções americanas vão acabar por levar o regime a sentar-se de novo à mesa das negociações. Se isso acontecer, o Presidente americano dirá que a sua estratégia do “fogo e fúria”, já testada na Coreia do Norte, está a funcionar. O que acontecer no médio prazo é outra questão.

UM COMENTÁRIO: VÍTOR SILVA, INICIANTE: A Europa diz que não sai. A Daimler-Benz anuncia a saída, 08 August 2018: É espantoso como a Europa política nunca tem mão na Europa económica. E os Estados Unidos podem passar bem sem o resto do mundo? E o que acontecerá à Europa se estalar uma guerra (cada vez mais provável) no Médio Oriente? Entre facções apoiadas pela Arábia (um país quase medieval nos privilégios imorais da sua oligarquia), armada até aos dentes pelo senhor Trump, e um Irão que é uma potência militar regional e que Putin não hesitará em apoiar. Trump quer mudar o regime no Irão. Não é democrático? E então e a Arábia? E a Europa vai atrás deste aprendiz de feiticeiro? E a estratégia fogo e fúria resultou na Coreia do Norte? O que vai acontecer é que a China irá conseguir o que quer: que os Estados Unidos retirem muito do seu arsenal da Coreia. Europa acorda: chega de chantagem americana!

TEXTO II- Não queriam que os EUA fossem como os outros?/premium
OBSERVADOR, 20/7/2018
Por mais que custe a admitir, Trump é fundamentalmente o presidente de uma época em que os EUA voltaram a ser um país que faz o que os outros países fazem.
Às antigas potências da Europa ocidental, deu sempre jeito a protecção dos EUA, que as dispensou de se preocuparem com a sua própria defesa. Isso, porém, não impediu que ressentissem a “hegemonia” americana. Daí, a recorrente exigência de que os EUA se portassem como um país igual aos outros. Mas agora, que essas preces foram atendidas, parece que os europeus não gostam.
A história torna-se mais complexa quando inclui a ambivalência americana sobre a sua missão no mundo. Os EUA emergiram como primeira potência, não no fim da Segunda Guerra Mundial, mas da primeira. Só que em 1918, escusaram-se a pagar o preço de zelar pelo planeta. Não apenas pelos custos, mas porque recearam que o policiamento internacional subvertesse o seu regime de governo limitado e administração mínima. O máximo que se propuseram fazer, nos anos 20, foi ajudar a restabelecer o comércio livre internacional. Mas quando, no fim da década,  a crise lhes bateu à porta, não tiveram dúvidas em recolher-se, cancelando créditos e protegendo-se com barreiras alfandegárias (sobre tudo isto, ver o livro de Adam Tooze, The Deluge. The Great War and the Remaking of Global Order). São conhecidas as dificuldades de Roosevelt em romper esse “isolacionismo” entre 1939 e 1941. Em 1945, porém, com os tanques soviéticos na Alemanha e enormes partidos comunistas em França e em Itália, qualquer retirada americana teria significado a entrega da Europa a Estaline. Foi preciso ficar. As elites americanas aderiram então à ideia de um destino mundial, como guardas do “mundo livre”. Para muitos críticos dessa opção internacionalista, foi apenas o começo da transformação da velha república num império. Desde 1989, sem o comunismo, houve logo quem exigisse os “dividendos da paz”. Os europeus, muito ocupados a resmungar sobre o “mundo unipolar”, não deram por isso. Mas Bill Clinton foi o último internacionalista genuíno, convencido de que os EUA podiam precipitar o “fim da história”. Em 2001, George W. Bush começou por condenar as intervenções humanitárias, e só o 11 de Setembro o desviou do “neo-isolacionismo” que todos previram. Barack Obama, porém, já pôde aproveitar a extinção da crença na universalização da democracia para cruzar os braços sempre que possível, como na Síria.
A fixação doentia em Donald Trump impede-nos de ver o que se está a passar. O primeiro agravamento dos direitos alfandegários sobre aço e alumínio é de Bush, em 2002. A tentação de apaziguar a Rússia é antiga: Bush deixou Putin invadir a Georgia em 2008, e Obama entregou-lhe o que ele quis da Ucrânia em 2014.
Não, Trump não é o começo desta história. E também não será o seu fim. Trump tem as suas excentricidades. Mas é fundamentalmente o presidente de uma época em que os EUA voltaram a ser um país como os outros: um país que propõe “negócios”, e não alianças, e que exige aquilo que desde 1945 já ninguém esperava dos EUA — “reciprocidade”. Um país, em suma, que faz o que os outros fazem. Os europeus acusam Trump de complacência para com Putin, mas eles próprios financiam a autocracia russa através da sua dependência energética. Exaltam-se porque Trump protege o aço e o alumínio, mas não se envergonham do seu próprio proteccionismo agrícola, um dos maiores obstáculos ao comércio livre no mundo.
A Europa tem razão para estar inquieta. Porque tal como o seu papel internacional afectou o regime americano, a responsabilidade pela própria defesa afectará os regimes europeus. Durante décadas, os europeus puderam deixar o Estado social absorver os seus orçamentos, confiantes em que a despesa militar estava por conta dos americanos. Sem os EUA, vão ter de aprender a viver de outra maneira.



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