domingo, 12 de agosto de 2018

Numa “Floresta de Enganos”



Não, não tem a ver o título com a farsa de Gil Vicente, em que personagens que pensam burlar saem de facto burladas. Vem ele em referência aos nossos “incêndios”, mais extensos do que nunca, nesta nossa floresta real e propícia a devastação real, mas vem também em apoio – e desta vez alegórico - do magnífico retrato feito por Alberto Gonçalves ao primeiro ministro e às suas manobras enganadoras e a um povo de abulia, desinteresse ou má-fé que o endeusa e se deixa tolamente enganar, pela sua falsa segurança de vendedor de banha de cobra – hoje em dia mais desenvolta do que nunca, nos meios mediáticos que estes ajudam a sobreviver. Escolho apenas alguns dos cerca de 300 comentários que a crónica de Alberto Gonçalves provocou, uns realmente preocupados com o estado de desinteresse imbecil a que chegámos, mas outros dignos representantes dessa nossa bestialidade, merecedora de repulsa. Quanto ao texto de Alberto Gonçalves, mais uma pequena obra-prima de coerência numa argumentação compassada, desvendando metodicamente e progressivamente as suas razões, que a anáfora «Há» solidifica formalmente em sátira feroz.
Deixar arder /premium
OBSERVADOR11/8/2018
O que aflige nesta história é a brutal desumanidade das personagens, a começar pela principal. Aquilo espreme-se e não sai dali pingo de semelhança com o que se convencionou chamar uma pessoa.
Há as declarações, obviamente deturpadas, do dr. Costa sobre Monchique ser “a excepção que confirma a regra do sucesso” no combate aos fogos florestais, talvez no sentido em que o Holocausto foi a excepção que confirma a regra do amor pelos judeus na Alemanha nazi.
Há as declarações em que o dr. Costa explica a “complexidade” de Monchique com a “vela de um bolo de aniversário”, que “todos nós apagamos com um sopro, mas quando a chama se alarga e os incêndios ganham uma escala com esta dimensão, não basta os sopros nem alguns dias de trabalho”. É uma analogia esteticamente rica, tecnicamente informada e cuja clareza só uma criança percebe.
Há o momento em que o dr. Costa culpa o eucalipto pela tragédia que afinal é um êxito, num corajoso desafio aos “especialistas” que, armados com “ciência”, “factos” e “realidade”, “provam” a inocência da dita árvore.
Há as fotografias do dr. Costa no Twitter oficial, em que, surpreendido em pleno comando das operações, o estadista ora aponta para um ecrã, ora contempla o telemóvel, ora encosta o telemóvel à orelha. Quando não fogem para praias espanholas, os estadistas distinguem-se por proezas assim, além de exibir a barriga ou o peso da responsabilidade.
Há o “texto” do dr. Costa no Twitter oficial, onde se afirma em “contacto permanente” com ministros, autarcas e uma AGIF (?) para efeitos de “actualizações”, “análise” e “orientações”. Incansável, envia uma “palavra de apoio” (qual?) aos “agentes da proteção (sic) civil” e outra de “solidariedade” (qual?) às “populações afetadas (sic)”.
E depois há as naturais degenerescências do dr. Costa, que rimam com a criatura em cada gesto. Há a protecção civil, um centro de emprego para comparsas que envia sms vagos e acerta sempre que não erra. Há o representante dos bombeiros, munido de uma licenciatura em Sporting. Há uma barbela, competentemente elevada a ministro, que declara grandes vitórias em cenários arruinados. Há polícias que pelos vistos algemam as potenciais vítimas para bem destas. Há “meios” aéreos que não voam, “meios” terrestres que não se entendem e meios malucos que juram pela excelência dos serviços. Há uma empresa indigna de gerir a TVI e excelente para dirigir o SIRESP. Há o SIRESP, embora se houvesse não se notaria a diferença. Há funcionários do “112” que se limitam a desejar “boa sorte” aos aflitos. Há “jornalistasque repetem ou legitimam as iluminações do chefe. Há silêncio dos parceiros de maioria e dos parceiros da oposição. Há um presidente avesso a ocasiões insusceptíveis de “selfie”. E há uma população que assiste ao circo com fundamental desinteresse, e que vê nos incêndios uma ocasional alternativa aos debates da bola.
Os incêndios, porém, não são o problema. Acidentes acontecem, como acontece a radical inépcia dos que recebem salário para mandar em nós. O que aflige nesta história, e nas histórias que a precedem, é a brutal desumanidade das personagens, a começar pela principal. Aquilo espreme-se e não sai dali pingo de semelhança com o que se convencionou chamar uma pessoa, cheia de defeitos e virtudes. Não se trata apenas um lamentável carácter: é uma coisa com os predicados morais do percevejo médio, a caricatura de um vilão desprovido de empatia, decência e de tudo o que não seja a manha dos simples, um perigo em suma. Estou a falar do dr. Costa.
Quanto ao resto, não vale a pena. Não vale a pena esperar demissões, indignações, sublevações. Não vale a pena respeitar um lugar que não se dá a respeito nenhum. Desde que, no saboroso ano de 2017, os donos do regime resistiram às próprias figuras durante Pedrógão, ficou estabelecido que os donos do regime resistem ao que calha – porque não calha ninguém ousar ou sequer tencionar incomodá-los. Na verdade, as “autoridades” podiam dispensar as chamas e chacinar a tiro centenas de cidadãos que, realizada a limpeza a cargo dos “media”, em poucos dias regressaria a normalidade. “Apatia” é um termo demasiado suave. “Masoquismo” também.
Há dias, tentei explicar à minha amiga Leonor (Freitas da Silva) o desagradável sentimento que o país actual me inspira. Acho que mencionei a vergonha. É pior, Leonor, pior do que vergonha e pior do que desprezo. É a impressão de que atingimos um ponto sem retorno e sem remédio, em que a prepotência é tão arrasadora e a impunidade tão evidente que quem as sofrer calado deixa de ser vítima para se tornar cúmplice. E é a certeza de que a vasta maioria dos portugueses não hesita na escolha. Deixar arder, pois, em Monchique e em todo o lado.
ALGUNS COMENTÁRIOS
ProtoTypical : Não é apatia, nem tampouco masoquismo - é, tão-somente, desinteresse. Sintomático, no fundo, de uma profunda ausência de maturidade democrática. 50 anos volvidos deste o 25 de Abril, e continuamos a deleitar-nos na mesma grosseria, na mesma baixeza, na mesma mediocridade, na mesma necedade. Embotados como ontem, indiferentes como sempre. Daí que o Partido Socialista continue a ser, 50 anos volvidos, aquele em cuja teta os Portugueses mais gostam de mamar - pois que é uma teta cujo omnipresente peito é partilhado pelo papá Estado e pela mamã República, por esses dois monstros tentaculares e criminosos que, traiçoeiramente, se confundem com as raízes da própria Portugalidade. António Costa é, em suma, o produto final, a degeneração paradigmática, o abaixamento por excelência; o triste e fatal culminar de uma Democracia de vícios na qual se banham, indistintamente, patrões e subalternos - reflexos confusos uns dos outros. Aos demais, cumpre informar - sem esquecer de pugnar pelos, e cumprir com os, mais elevados requisitos morais.
Maria Alva: Acutilante e irrebatível. Parabéns AG, e até prá semana.
Passos, O Catedrático (de Aviário): Estou muito constrangido com o silêncio ensurdecedor dos senhores Doutores Rui Rio, Fernando Negrão, Hugo Soares sobre estes incêndios, pois o meu partido é o único que ainda não se pronunciou. Receio que este silêncio não seja bem recebido pelos portugueses e que o meu partido nunca mais recupere do mínimo histórico em que o deixei de apenas 24,6% de intenções de voto, o que levou os nossos adversários políticos a denominá-lo (e com razão), de partido do tuk-tuk.
William Smith: A imagem do Holocausto e Alemães, os fogos e o Costa está soberba.
josé Maria: Portugal lidera área ardida em 2018. Monchique já é o maior fogo europeu do ano. Agradeçam ao PSD e ao seu autarca Rui André.
manel buiça: E quantas selfies tirou o Pateta Martelo com aquele fundo negro ??  É um negro diferente que não se pode comparar com o do ano passado ou de outros anos anteriores.? !  Mesmo com a área imensa de negra destruição isso nada significa?!  
 Sai mais uma Marselfie ... pra continuar a lavar mais branco a escuridão da Irresponsabilidade, da mentira, da manipulação e incompetência do Costa e da Geringonça. 
Marie de Montparnasse: Magnífica crónica de Alberto Gonçalves que diz tudo sobre os "seres" que presentemente povoam a política portuguesa e que nos levam a desistir "não vale a pena", "deixa andar", "deixa arder". Também o Observador não foi poupado ao povoamento desses mesmos "seres". Receio bem que também aqui a desistência se faça e que este Jornal de Referência se torne em mais um pasquim. ……………………….

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