Não, não tem a ver o título com a farsa
de Gil Vicente, em que personagens que pensam burlar saem de facto burladas. Vem ele em referência aos nossos “incêndios”, mais extensos do que nunca,
nesta nossa floresta real e propícia a devastação real, mas vem também em apoio
– e desta vez alegórico - do magnífico retrato feito por Alberto Gonçalves ao primeiro
ministro e às suas manobras enganadoras e a um povo de abulia, desinteresse ou
má-fé que o endeusa e se deixa tolamente enganar, pela sua falsa segurança de
vendedor de banha de cobra – hoje em dia mais desenvolta do que nunca, nos
meios mediáticos que estes ajudam a sobreviver. Escolho apenas alguns dos cerca
de 300 comentários que a crónica de Alberto Gonçalves provocou, uns realmente
preocupados com o estado de desinteresse imbecil a que chegámos, mas outros
dignos representantes dessa nossa bestialidade, merecedora de repulsa. Quanto
ao texto de Alberto Gonçalves, mais uma pequena obra-prima de coerência numa argumentação compassada,
desvendando metodicamente e progressivamente as suas razões, que a anáfora «Há»
solidifica formalmente em sátira feroz.
Deixar arder /premium
OBSERVADOR11/8/2018
O que aflige nesta história é a brutal
desumanidade das personagens, a começar pela principal. Aquilo espreme-se e não
sai dali pingo de semelhança com o que se convencionou chamar uma pessoa.
Há as declarações, obviamente deturpadas, do dr. Costa
sobre Monchique ser “a excepção que confirma a regra do sucesso” no combate aos
fogos florestais, talvez no sentido em que o Holocausto foi a excepção que
confirma a regra do amor pelos judeus na Alemanha nazi.
Há as declarações em que o dr. Costa explica a
“complexidade” de Monchique com a “vela de um bolo de aniversário”, que “todos
nós apagamos com um sopro, mas quando a chama se alarga e os incêndios ganham
uma escala com esta dimensão, não basta os sopros nem alguns dias de trabalho”.
É uma analogia esteticamente rica,
tecnicamente informada e cuja clareza só uma criança percebe.
Há o momento em que o dr. Costa culpa o eucalipto pela
tragédia que afinal é um êxito, num corajoso desafio aos “especialistas” que,
armados com “ciência”, “factos” e “realidade”, “provam” a inocência da dita
árvore.
Há as fotografias do
dr. Costa no Twitter oficial, em que, surpreendido em pleno comando das
operações, o estadista ora aponta para um ecrã, ora contempla o telemóvel, ora
encosta o telemóvel à orelha. Quando não fogem para praias espanholas, os
estadistas distinguem-se por proezas assim, além de exibir a barriga ou o peso
da responsabilidade.
Há o “texto” do dr. Costa no Twitter oficial, onde
se afirma em “contacto permanente” com ministros, autarcas e uma AGIF (?) para
efeitos de “actualizações”, “análise” e “orientações”. Incansável, envia uma
“palavra de apoio” (qual?) aos “agentes da proteção (sic) civil” e outra de
“solidariedade” (qual?) às “populações afetadas (sic)”.
E depois há as naturais degenerescências do dr. Costa, que rimam com a
criatura em cada gesto. Há a
protecção civil, um centro de emprego para comparsas que envia sms vagos
e acerta sempre que não erra. Há o
representante dos bombeiros, munido de uma licenciatura em Sporting.
Há uma barbela, competentemente
elevada a ministro, que declara grandes vitórias em cenários arruinados. Há polícias que pelos vistos algemam
as potenciais vítimas para bem destas. Há
“meios” aéreos que não voam, “meios” terrestres que não se entendem e meios
malucos que juram pela excelência dos serviços. Há uma empresa indigna de gerir a TVI e excelente para dirigir o
SIRESP. Há o SIRESP, embora
se houvesse não se notaria a diferença. Há funcionários do “112” que se limitam a desejar “boa sorte”
aos aflitos. Há “jornalistas” que
repetem ou legitimam as iluminações do chefe. Há silêncio dos parceiros de maioria e dos parceiros da oposição. Há um presidente avesso a ocasiões
insusceptíveis de “selfie”. E há uma
população que assiste ao circo com fundamental desinteresse, e que vê nos
incêndios uma ocasional alternativa aos debates da bola.
Os incêndios, porém, não são
o problema. Acidentes acontecem, como acontece a radical inépcia dos que
recebem salário para mandar em nós. O que aflige
nesta história, e nas histórias que a precedem, é a brutal desumanidade das
personagens, a começar pela principal. Aquilo espreme-se e não sai dali pingo
de semelhança com o que se convencionou chamar uma pessoa, cheia de defeitos e
virtudes. Não se trata apenas um lamentável carácter: é uma coisa com os
predicados morais do percevejo médio, a caricatura de um vilão desprovido de
empatia, decência e de tudo o que não seja a manha dos simples, um perigo em
suma. Estou a falar do dr. Costa.
Quanto ao resto, não vale a
pena. Não vale a pena esperar demissões, indignações, sublevações. Não vale a
pena respeitar um lugar que não se dá a respeito nenhum. Desde que, no saboroso
ano de 2017, os donos do regime resistiram às próprias figuras durante
Pedrógão, ficou estabelecido que os donos do regime resistem ao que calha –
porque não calha ninguém ousar ou sequer tencionar incomodá-los. Na verdade, as
“autoridades” podiam dispensar as chamas e chacinar a tiro centenas de cidadãos
que, realizada a limpeza a cargo dos “media”, em poucos dias regressaria a
normalidade. “Apatia” é um termo demasiado suave. “Masoquismo” também.
Há dias, tentei explicar à
minha amiga Leonor (Freitas da Silva) o desagradável sentimento que o país
actual me inspira. Acho que mencionei a vergonha. É pior, Leonor, pior do que
vergonha e pior do que desprezo. É a impressão de que atingimos um ponto sem
retorno e sem remédio, em que a prepotência é tão arrasadora e a impunidade tão
evidente que quem as sofrer calado deixa de ser vítima para se tornar cúmplice.
E é a certeza de que a vasta maioria dos portugueses não hesita na escolha.
Deixar arder, pois, em Monchique e em todo o lado.
ALGUNS COMENTÁRIOS
ProtoTypical : Não é apatia, nem tampouco masoquismo - é,
tão-somente, desinteresse. Sintomático, no fundo, de uma profunda ausência de
maturidade democrática. 50 anos volvidos deste o 25 de Abril, e continuamos a deleitar-nos
na mesma grosseria, na mesma baixeza, na mesma mediocridade, na mesma necedade.
Embotados como ontem, indiferentes como sempre. Daí que o Partido Socialista
continue a ser, 50 anos volvidos, aquele em cuja teta os Portugueses mais
gostam de mamar - pois que é uma teta cujo omnipresente peito é partilhado pelo
papá Estado e pela mamã República, por esses dois monstros tentaculares e
criminosos que, traiçoeiramente, se confundem com as raízes da própria
Portugalidade. António Costa é, em suma, o produto final, a degeneração paradigmática,
o abaixamento por excelência; o triste e fatal culminar de uma Democracia de
vícios na qual se banham, indistintamente, patrões e subalternos - reflexos
confusos uns dos outros. Aos demais, cumpre informar - sem esquecer de pugnar
pelos, e cumprir com os, mais elevados requisitos morais.
Maria Alva: Acutilante e irrebatível. Parabéns AG, e até prá
semana.
Passos, O Catedrático (de Aviário): Estou muito constrangido com o silêncio
ensurdecedor dos senhores Doutores Rui Rio, Fernando Negrão, Hugo Soares sobre
estes incêndios, pois o meu partido é o único que ainda não se pronunciou.
Receio que este silêncio não seja bem recebido pelos portugueses e que o meu
partido nunca mais recupere do mínimo histórico em que o deixei de apenas 24,6%
de intenções de voto, o que levou os nossos adversários políticos a denominá-lo
(e com razão), de partido do tuk-tuk.
William Smith: A imagem do Holocausto e
Alemães, os fogos e o Costa está soberba.
josé Maria: Portugal lidera área ardida em
2018. Monchique já é o maior fogo europeu do ano. Agradeçam ao PSD e ao seu
autarca Rui André.
manel buiça: E quantas selfies tirou o Pateta Martelo com aquele fundo negro
?? É um negro diferente que não se pode comparar com o do ano passado ou
de outros anos anteriores.? ! Mesmo com a área imensa de negra destruição
isso nada significa?!
Sai mais uma Marselfie ... pra continuar a
lavar mais branco a escuridão da Irresponsabilidade, da mentira, da manipulação
e incompetência do Costa e da Geringonça.
Marie de Montparnasse: Magnífica
crónica de Alberto Gonçalves que diz tudo sobre os "seres" que
presentemente povoam a política portuguesa e que nos levam a desistir "não
vale a pena", "deixa andar", "deixa arder". Também o
Observador não foi poupado ao povoamento desses mesmos "seres".
Receio bem que também aqui a desistência se faça e que este Jornal de Referência
se torne em mais um pasquim. ……………………….
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