Não, não se trata de coisa séria
à escala mundial, do tipo do ataque japonês a Pearl Harbour e quejandos e as
consequências nefastas que se lhe seguiram ou seguem. Trata-se de um caso do
nosso pequeno tamanho luso, gerador de desprezo próprio e de muito barulho para
nada, coisa observável de longa data. O certo é que gerou vasta polémica e
bastante troça em torno dos do Bloco, aparentemente despojados de interesse
próprio, o que se verificou ser menos verdadeiro, comprovado no caso presente,
protagonizado pelo benemérito falhado, Ricardo Robles, em disparidade de
ideologia e actuação, coisa que até mesmo um provérbio já atestara, acerca das
pregações de São Tomás, de verdadeiro descrédito pessoal. E assim se vão
perdendo as ilusões sobre o desapego dos bens terrenos que alguns aprendem em livros,
e que um qualquer pretexto prova ser menos real. Não é preciso termos
complexos. Somos todos farinha do mesmo saco. Os hippies dos meus tempos
passados também se revoltavam muito, sobretudo contra a família burguesa que os
alimentava, afinal, e lhes fornecia os carros e o resto para as suas diversões
temperadas de revoltas. Agora, que a
burguesia escasseia, os ódios geram-se especialmente entre os partidos. Por isso
devemos desculpar tanto ruído. Foram, de facto, muitos os textos sobre o nosso
casus belli intestino. Cito apenas o de Alexandre Homem Cristo e o de João
Miguel Tavares, que costumo apreciar.
O Bloco caiu do pedestal /premium
OBSERVADOR , 30/7/2018,
Os bloquistas sempre se
idealizaram moralmente superiores aos seus adversários e os titulares do único
projecto político verdadeiramente legítimo. Não o são e não o têm. Agora,
ficaram-no a saber.
É próprio do populismo que,
mais dia menos dia, este se vire contra o populista. A história dos partidos
políticos está repleta de casos de quem abusou da arrogância moral e advogou
comportamentos sociais que depois não foi capaz de cumprir (à direita e à
esquerda). Por
isso, o episódio de Ricardo Robles, cujo moralismo na habitação lhe valeu
notoriedade, nada tem de inovador: ele foi vítima do seu próprio discurso populista sobre a
habitação, aparecendo agora como um hipócrita. Enquanto
criticou o aumento especulativo do preço da habitação, adquiriu e recuperou um
prédio que tentou vender por quase 6 milhões de euros, valorizando cinco vezes
o seu investimento inicial. Enquanto perseguiu a explosão no alojamento
local em Lisboa, colocou o seu prédio à venda anunciando-o para alojamento
local. Enquanto acusou a lei das rendas do governo PSD-CDS de promover despejos
de inquilinos, ele próprio aumentou a renda dos apartamentos e negociou a saída
de inquilinos do prédio que adquiriu. Enquanto responsabiliza políticos pela
crise de habitação na capital, lava as mãos de responsabilidades no seu caso,
apontando à agência imobiliária a decisão sobre os valores do negócio. A lista
de contradições é extensa e insanável.
Tanto quanto se sabe, o
negócio de Ricardo Robles enquanto proprietário é legal e legítimo – a
valorização do imóvel mostra que foi, aliás, um bom negócio. Só que,
simultaneamente, tudo isto corresponde ao comportamento que, no debate
político, o BE e Ricardo Robles criticam, qualificam de “especulação
imobiliária” e definem como alvo a abater. Pelos padrões do projecto político
do BE, o que Ricardo Robles fez é factor de dano social para a comunidade. A
raiz do problema está aí – e diz mais sobre o BE do que sobre Ricardo Robles.
É este o ponto: a hipocrisia pessoal de Ricardo Robles é gritante, mas
o foco deve estar no moralismo do seu partido, que contamina o seu projecto
político e que promove a desqualificação violenta dos seus adversários. Um
moralismo que, agora, colidiu com a actuação do seu vereador lisboeta e que
destapou as incoerências pessoais dos protagonistas do BE e da natureza do seu
projecto político. Destapadas essas incoerências, não
restam agora muitas hipóteses aos bloquistas. Ou o BE as assume e age em
conformidade em relação a Ricardo Robles, censurando publicamente a sua
actuação. Ou o BE assume que as incoerências estão enraizadas no seu projecto
político, por este ser incompatível com as aspirações legítimas dos indivíduos,
e altera a sua agenda política. Ou, então, o BE simplesmente nega a realidade,
evitando rever o seu projecto político ou sequer ponderar consequências
internas para Robles.
Catarina Martins preferiu a terceira opção: perante as acusações contra
Ricardo Robles, a líder do BE ripostou que
as notícias eram falsas, criticou a comunicação social, contestou as críticas e
lançou uma teoria da conspiração – o Jornal
Económico, que publicou a investigação inicial, repudiou (e muito bem) as acusações de
Catarina Martins. Ora, mesmo que errada, a opção da líder do BE não constitui
qualquer surpresa. É que é assim mesmo que todos os partidos se comportam: têm
olhos de falcão para as falhas dos outros, mas ficam cegos perante as suas
próprias incoerências.
A moral da história é essa: o BE é um partido como os outros,
igualmente contraditório, igualmente cheio de vícios e igualmente repleto de
incoerências internas. Dito assim, parece que isto apenas sublinha o óbvio.
Mas, para a retórica do BE, este óbvio é fatal: equivale à queda do seu castelo
e a uma facada no seu projecto político. Os bloquistas sempre se idealizaram
moralmente superiores aos seus adversários políticos e os titulares do único
projecto político verdadeiramente legítimo. Não o são e não o têm. Quem tem
juízo, já o sabia. A partir de agora, o próprio BE ficou a saber.
OPINIÃO
Coitadinho do Bloco, que está a ser
perseguido
Na primeira hora de aperto ético, o
partido que fez carreira a tentar provar que era diferente dos outros
comportou-se como um partido banal.
PÚBLICO, 30 de Julho de 2018
Para a direita portuguesa, o
Natal chegou em Julho. Desconfio que para a esquerda não-bloquista
também. Foi para casos como estes que os alemães inventaram a palavra “schadenfreude”
– a alegria perversa que sentimos com certas desgraças alheias. Nem
nos sonhos mais optimistas de um liberal lusitano se poderia prever que a sigla
BE pudesse um dia confundir-se com Burgueses Especuladores. Reparem: não
foi só aquilo que Ricardo Robles fez, nem as desculpas esfarrapadas que
arranjou (a minha favorita é aquela em que ele garante que a intenção original
da irmã era vir para Lisboa viver num apartamento de 41 metros quadrados depois
de ter investido um milhão de euros a dividir um prédio em 11 mini-fracções com
11 cozinhas e 11 casas de banho). A negociata de Robles é, sem dúvida,
espantosa, e daí o seu sucesso mediático. Mas
ainda mais divertido foi a reacção de gente como Mariana Mortágua, Francisco
Louçã ou Catarina Martins.
Que um bloquista um dia
metesse à grande o pé na poça, era apenas uma questão de tempo. Que o
estado-maior do Bloco saísse em sua defesa de forma tão desastrada, é realmente
surpreendente. Ricardo Robles vai custar muito caro ao partido por ter atrasado
três dias o seu pedido de demissão. Aquilo que o Bloco acaba de perder vale
mais do que 5,7 milhões de euros – o partido que fez carreira a tentar provar
que era diferente dos outros, na primeira hora de aperto ético comportou-se
como um partido banal. Mariana Mortágua, na SIC Notícias, parecia Cassete
Carvalhas, repetindo um mantra defensivo de modo deprimente para alguém com a
sua inteligência. Francisco Louçã referiu-se à polémica como “uma forma de
entretenimento de fim de Julho”. E Catarina Martins, à porta do acampamento do
Bloco, teve a mais estapafúrdia reacção de todas: pôs as vestes da indignação,
pediu emprestada a José Sócrates a palavra “infâmia”, e chegou até a falar numa
“campanha de difamação”. Parecia uma secretária-geral do PS. Ou do PSD. Ou do
CDS. No último fim-de-semana, o Bloco aderiu oficialmente ao PNEC – Processo de
Normalização em Curso. Passou a ser um partido como qualquer outro no
campeonato das desculpas esfarrapadas.
Uma dessas desculpas
interessa-me particularmente – o argumento da conspiração: o Bloco
estaria a mexer nos interesses imobiliários instalados, e por isso alguém
soprou a notícia do prédio milionário. Catarina Martins é bem capaz de ter razão.
Acho até altamente provável que a notícia tenha sido passada por alguém da
câmara que seja inimiga de Robles ou do Bloco. Mas isso só dá razão àqueles que
consideram politicamente inaceitável o seu comportamento. É exactamente por
este tipo de notícia poder ser divulgado com facilidade, destruindo a reputação
de um vereador enquanto o diabo esfrega um olho – como veio a acontecer –, que
Robles jamais poderia ter-se colocado em semelhante posição.
Expliquemos a cabala a Catarina: ela só existe porque o vereador do
Bloco, que ainda por cima é decisivo para o PS ter maioria absoluta na câmara,
se pôs a jeito para ser facilmente chantageado. Se tu não fazes isto, então eu
conto aquilo. Talvez por estar pouco habituada a lidar com este tipo de
situações, Catarina Martins cometeu um erro colossal ao reagir como reagiu. Não
conseguiu salvar Ricardo Robles, deu cabo da sua credibilidade e comprometeu
para sempre a superioridade moral do Bloco de Esquerda. E a superioridade moral
é assim como a virgindade: uma vez perdida, nunca mais se recupera.
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