quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Auto-avaliação, imagem de um país da farra

Auto-avaliação, imagem de um país da farra
Nos meus tempos de estudante e de docente não havia auto-avaliação, nem dos alunos nem dos professores. Cada professor ia capitalizando pontos de valorização no seu currículo segundo os anos decorridos, e, porque estava assente em dados objectivos irrefutáveis - o avanço do tempo, comum a todos – tal valorização, real ou menos, de acordo com o grau de empenhamento de cada um - a todos protegia, sem elitismos, obscuramente, democraticamente, na controversa questão da progressão na carreira. Não. Justa ou injusta, a ninguém criava expectativas de ultrapassagem, na maior rigidez das regras, mas também ela não produzia animosidade de invejas, como hoje, de preferências quantas vezes dependentes do saber fazer ou do saber ser, arrivista, segundo padrões de actual ascensão, junto Direcções não democraticamente eleitas, protectores dos sábios seus aduladores, Dâmasos Salcedes de bela caligrafia e prestabilidade para “despachar caixotes”, da amizade deferente que se traduz tantas vezes em habilidosas ultrapassagens – relativamente a professores de maiores competências - na escolha de turmas mais “compostinhas”, para esses tais e outras coisas mais, próprias de uma democracia de amizades e arranjismos, como tantas vezes lemos na imprensa diária, quer ao nível dos governos quer das demais ascensões pouco sérias, facilitadas por truques de conivências e tantas vezes ausência de concursos, tudo feito a ocultas, no doce país dos compadrios.
Mas hoje existe auto-avaliação – palavrosa, de parâmetros implicando análises comportamentais de um vasto arrazoado, trabalhoso, ineficaz, que felizmente já não apanhei na minha docência, pois sentiria o ridículo, o inócuo e o artificial de um registo exigido apenas para massacrar e fazer perder tempo – no caso dos professores, já atormentados por profusas reuniões de discussão de leis provindas do ME, implicativas de vazio formativo, pela perda de tempo que implicam, de estagnação formativa: um homem não é de ferro, o tempo não é elástico.
Uma auto-avaliação, pois, que nada significa e que ninguém lê, na banalidade oca do seu significado, para efeitos de esclarecimento real das competências docentes.
Conto o caso de uma professora que conheci jovem, de um bom currículo escolar e universitário e uma prática docente que se traduziu em competência, porque a desempenhou sempre com entusiasmo e o necessário estudo. Mas, apanhada nas malhas das reformas trazidas pela monstruosidade amalgamante dos agrupamentos escolares e de um ensino sem a disciplina adequada a uma prática docente honesta, aceitou, juntamente com as turmas de formação real, algumas de acompanhamento quer de estrangeiros em formação da língua portuguesa, quer turmas de crianças inadaptadas, sofrendo de perturbações psicológicas ou mentais, turmas de uma realidade para as quais eu jamais me sentiria vocacionada a acompanhar, pois não foi esse o estatuído, quando me preparei para a vida de formação docente.
Mas a jovem que conheço sabe dar amor a esses, entretendo-os com filmes, receitas de culinária, brinquedos que chega a comprar do seu bolso, e actividades várias que, todavia, julgo não preencherem as naturais aspirações que o seu curso universitário implicaria.
Mostrou-me o seu relatório de auto-avaliação, com os parâmetros seguintes: 1 - PRÁTICA LECTIVA; 2 – ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS; 3 – ACTIVIDADES PROMOVIDAS; 4 – CONTRIBUTO PARA OS OBJECTIVOS E METAS FIXADAS NO PROJECTO EDUCATIVO; 5- FORMAÇÃO REALIZADA E O SEU CONTRIBUTO PARA A MELHORIA DA ACÇÃO EDUCATIVA (As acções de formação devem ser devidamente identificadas, devendo ser indicada a entidade formadora, a duração, avaliação e os créditos obtidos, se for o caso). (Não adepta do AO, permito-me alterar a ortografia no meu texto, o que, inteligentemente, a Internet já não condena, continuando nós, portugueses, prudentemente, a aceitar o “tanto faz” asnático das nossas duplicidades várias, e portanto nesta do “escreve como te aprouver”).
Há quatro ou cinco anos, desde que lhe foi distribuída a sua nova rota docente, que aceitou, talvez por julgar que ela seria benéfica a um processo depressivo de que o “ensino” actual é, em parte, responsável, a professora faz a sua auto-avaliação de “chuchadeira”, ciente da falta de seriedade que implica todo um processo vazio e fútil que, como ela diz, ninguém lê.
Relativamente aos parâmetros 1 e 2, a auto-avaliação deste ano contém, na sua maioria, um discurso imperativo e denotativo de receitas de cozinha, algumas provindas das aptidões dos seus alunos estrangeiros, discurso semeado de reflexões como a seguinte: “Pode dizer-se que o Breakfast Roll é uma versão do café da manhã irlandês criada para ser consumida no caminho para o trabalho ou escola, além de ser considerado um excelente remédio para ressaca. Essa sanduíche possui a maioria dos ingredientes do café da manhã, como linguiças, bacon, cogumelos, ovos, no meio de uma baguete. Aqui, podemos encontrar o breakfast roll na maioria dos cafés, supermercados e até algumas lojas de conivência.»
Assim, em relação ao seu grupo de 5 alunos com CEI, para a prática lectiva, inscreve a receita de um bolo de chocolate, com os dados iniciais seguidos dos imperativos comece por derreter, pré-aqueça, bata os ovos, acrescente a farinha (aos poucos), coloque, leve (ao forno), desligue (o forno), desenforme e enfeite (com morangos), tudo bem estruturadinho, para os seus CEI.
Para o Grupo de PLNM (Português língua não materna), de 13 alunos, apresenta várias receitas estrangeiras, que recolheu do grupo – a de momo, com uso de verbos no infinitivo – acrescentar, sovar, cobrir a massa, rechear… (Rechear os momos é um pouco difícil, mas com paciência a gente chega lá)…  a receita do Drániki,  a já citada do Breakfast Roll, as Arepas venezuelanas e outros cozinhados estrangeiros que informam sobre costumes, como o seguinte : “Na Moldávia é costume fazer sopas leves à base de legumes e carne (o que é opcional). Temos, por exemplo, a chamada zeamã (canja), feita com galinha de campo e massa caseira e temos outras sopas que levam batatas, cenoura, cebola e, entre outros legumes, leva também couve e beterraba, o que não é costume encontrar-se na canja. Estas sopas são chamadas de borsh, semelhante ao sumo de limão, que é usado nas sopas para dar sabor). Não há comida típica, na Holanda, mais barata do que o Frikandel que é uma salsicha frita recheada com molho de cenoura, maionese e ketchup. Se se comprar em mercados, festas e feiras, vem dentro de um plástico ou papel no seu formato, com um molho extra. E, como tudo que é frito, é quase sempre delicioso.
Relativamente a uma turma do 9º ano de Português, dada em parceria com outra professora (num processo que não resultou, pela sobranceria da colega titular da turma, em parte justificativa de um estado depressivo, que se prolongou ao longo do ano), o poema de Reinaldo FerreiraReceita para fazer um herói”, é manifestação sagaz da sua inútil ironia: «Tome-se um homem, Feito de nada, como nós, E em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda, irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim, Agite-se um pendão E toque-se um clarim. Serve-se morto.»
Retoma as receitas para outra turma do 9º de Francês e conclui, após mais de 60 sessões de acompanhamento educativo, vulgo “aulas de substituição”, com que os professores absentistas ajudavam o PROJECTO EDUCATIVO DA ESCOLA e massacravam os sempre presentes, conclui, pois, com a informação “…e fui um hipopótamo feliz, saltitando de nenúfar em nenúfar… de saiote e de flor na orelha…”
Conclui a sua PRÁTICA LECTIVA com o Dicionário da Porto Editora de apoio à sua gestão e um esclarecimento em relação à palavra interajuda, provavelmente a que a define actualmente, no seu magistério de múltiplas funções, desabando na “flor na orelha” do paquiderme do seu optimismo forçado:
O Dicionário da Porto Editora regist(r)a interajuda (ajuda mútua; ajuda recíproca). O mesmo dicionário também regista entreajuda (derivação regressiva de entreajudar»), com o significado de «ajuda recíproca». Assim, podemos considerar interajuda e entreajuda palavras sinó(ô)nimas. N.E.: É de notar que, há cerca de nove anos, José Neves Henriques rejeitava interajuda, apesar de bem formado. Contudo, a prática dicionarística recente acolheu esta forma. Observe-se, mesmo assim, que é preferível entreajuda, porque já existia com o mesmo sentido de interajuda antes de este vocábulo ter aparecido.
No 3º parâmetro – ACTIVIDADES PROMOVIDAS, informa sobre uma receita de favas com entrecosto, feitas de véspera, que azedaram por terem os coentros misturados e conclui com uma canção de Mafalda Veiga, da gargalhada forçada pela revolta profunda, de uma ânsia de viver não consentida:
“Ninguém disse Que os dias eram nossos Ninguém prometeu nada
Fui eu que julguei que podia arrancar sempre mais uma madrugada
Ninguém disse Que o riso nos pertence Ninguém prometeu nada
 Fui eu que julguei que podia arrancar sempre Mais uma gargalhada
E deixar-me devorar pelos sentidos E rasgar-me do mais fundo que há em mim
Emaranhar-me no mundo e morrer por ser preciso
Nunca por chegar ao fim
No 4º parâmetro - CONTRIBUTO PARA OS OBJECTIVOS E METAS FIXADAS NO PROJECTO EDUCATIVO – retoma as receitas: “Coloque os lombos de bacalhau”…. “polvilhadas com salsa”. A servir com em refresco de frutas e” vinho italiano doce  Lambrusco e gelo”, julgo que uma espécie de sangria, formatando a “dolce vita” idealizada a partir de tanto anseio e frustração.
O 5º parâmetro - FORMAÇÃO REALIZADA E O SEU CONTRIBUTO PARA A MELHORIA DA ACÇÃO EDUCATIVA (As acções de formação devem ser devidamente identificadas, devendo ser indicada a entidade formadora, a duração, avaliação e os créditos obtidos, se for o caso) remata com um poema-canção de Carolina  Deslandes, prova da sua odisseica viagem através de uma docência miserável, como é a maioria, julgo, neste país, hoje. Contrabalançada, é certo, pela sua maravilhosa – inicialmente acidentada – experiência de avó, experiências dessas não abolidas ainda dos decretos, apesar dos rigores ministeriais sobre os docentes, do PROJECTO EDUCATIVO ali forjado.
A NUVEM
Tinhas as mãos enrugadas e cheias de histórias A roupa lavada e vem-me à memória Como me embalavas depois de jantar Tinhas o rosto sereno, calmo e sempre vivo E o meu corpo pequeno, mas tão emotivo Não te sabe lembrar sem chorar Eras da minha alma, da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua sala, na tua asa Quente como a chama de uma vela E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar Tinhas um corpo de lar E um cheiro a infância Os olhos de mar, e hoje à distância Se fechar os olhos ainda lá estou E deitada no teu colo O mundo era meu Só me resta o consolo De que aí no céu Exista uma nuvem com nome de Avô Eras da minha alma, da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua sala, na tua asa Quente como a chama de uma vela E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar Há um sítio lá ao pé do sol Onde eu te vou encontrar Há um sítio lá ao pé do sol Onde eu te vou encontrar Eras da minha alma, da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua sala, na tua asa Quente como a chama de uma vela E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar.

Relativamente às alternativas propostas para o Cumprimento do Serviço – Mais de 95% / Menos de 95%, naturalmente pôs o x na primeira. Com todo o mérito que a sua extraordinária e original auto-avaliação bem denuncia.
O fruto das suas pesquisas internáuticas, de um outro copy/paste (normalmente utilizado pelos colegas ano após ano, de uns relatórios para os outros, que apenas apresentam diferenças na distribuição do serviço lectivo) e do seu amor em relação ao seu público-alvo.

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