Auto-avaliação, imagem de um país da farra
Nos meus tempos de estudante e
de docente não havia auto-avaliação, nem dos alunos nem dos professores. Cada
professor ia capitalizando pontos de valorização no seu currículo segundo os
anos decorridos, e, porque estava assente em dados objectivos irrefutáveis - o
avanço do tempo, comum a todos – tal valorização, real ou menos, de acordo com
o grau de empenhamento de cada um - a todos protegia, sem elitismos,
obscuramente, democraticamente, na controversa questão da progressão na
carreira. Não. Justa ou injusta, a ninguém criava expectativas de
ultrapassagem, na maior rigidez das regras, mas também ela não produzia
animosidade de invejas, como hoje, de preferências quantas vezes dependentes do
saber fazer ou do saber ser, arrivista, segundo padrões de actual ascensão, junto
Direcções não democraticamente eleitas, protectores dos sábios seus aduladores,
Dâmasos Salcedes de bela caligrafia e prestabilidade para “despachar caixotes”,
da amizade deferente que se traduz tantas vezes em habilidosas ultrapassagens –
relativamente a professores de maiores competências - na escolha de turmas mais
“compostinhas”, para esses tais e outras coisas mais, próprias de uma
democracia de amizades e arranjismos, como tantas vezes lemos na imprensa
diária, quer ao nível dos governos quer das demais ascensões pouco sérias,
facilitadas por truques de conivências e tantas vezes ausência de concursos,
tudo feito a ocultas, no doce país dos compadrios.
Mas hoje existe auto-avaliação
– palavrosa, de parâmetros implicando análises comportamentais de um vasto
arrazoado, trabalhoso, ineficaz, que felizmente já não apanhei na minha
docência, pois sentiria o ridículo, o inócuo e o artificial de um registo
exigido apenas para massacrar e fazer perder tempo – no caso dos professores,
já atormentados por profusas reuniões de discussão de leis provindas do ME,
implicativas de vazio formativo, pela perda de tempo que implicam, de
estagnação formativa: um homem não é de ferro, o tempo não é elástico.
Uma auto-avaliação, pois, que
nada significa e que ninguém lê, na banalidade oca do seu significado, para
efeitos de esclarecimento real das competências docentes.
Conto o caso de uma professora
que conheci jovem, de um bom currículo escolar e universitário e uma prática
docente que se traduziu em competência, porque a desempenhou sempre com
entusiasmo e o necessário estudo. Mas, apanhada nas malhas das reformas
trazidas pela monstruosidade amalgamante dos agrupamentos escolares e de um
ensino sem a disciplina adequada a uma prática docente honesta, aceitou,
juntamente com as turmas de formação real, algumas de acompanhamento quer de
estrangeiros em formação da língua portuguesa, quer turmas de crianças
inadaptadas, sofrendo de perturbações psicológicas ou mentais, turmas de uma
realidade para as quais eu jamais me sentiria vocacionada a acompanhar, pois
não foi esse o estatuído, quando me preparei para a vida de formação docente.
Mas a jovem que conheço sabe
dar amor a esses, entretendo-os com filmes, receitas de culinária, brinquedos
que chega a comprar do seu bolso, e actividades várias que, todavia, julgo não
preencherem as naturais aspirações que o seu curso universitário implicaria.
Mostrou-me o seu relatório de
auto-avaliação, com os parâmetros seguintes: 1 - PRÁTICA LECTIVA; 2 – ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS; 3 –
ACTIVIDADES PROMOVIDAS; 4 – CONTRIBUTO PARA OS OBJECTIVOS E METAS FIXADAS NO
PROJECTO EDUCATIVO; 5- FORMAÇÃO REALIZADA E O SEU CONTRIBUTO PARA A MELHORIA DA
ACÇÃO EDUCATIVA (As acções de formação devem ser devidamente identificadas,
devendo ser indicada a entidade formadora, a duração, avaliação e os créditos
obtidos, se for o caso). (Não adepta do AO, permito-me alterar a ortografia
no meu texto, o que, inteligentemente, a Internet já não condena, continuando
nós, portugueses, prudentemente, a aceitar o “tanto faz” asnático das nossas
duplicidades várias, e portanto nesta do “escreve
como te aprouver”).
Há quatro ou cinco anos, desde
que lhe foi distribuída a sua nova rota docente, que aceitou, talvez por julgar
que ela seria benéfica a um processo depressivo de que o “ensino” actual é, em
parte, responsável, a professora faz a sua auto-avaliação de “chuchadeira”,
ciente da falta de seriedade que implica todo um processo vazio e fútil que,
como ela diz, ninguém lê.
Relativamente aos parâmetros 1
e 2, a auto-avaliação deste ano contém, na sua maioria, um discurso imperativo
e denotativo de receitas de cozinha, algumas provindas das aptidões dos seus
alunos estrangeiros, discurso semeado de reflexões como a seguinte: “Pode dizer-se que o Breakfast Roll é uma versão do café da manhã irlandês criada para
ser consumida no caminho para o trabalho ou escola, além de ser considerado um
excelente remédio para ressaca. Essa sanduíche possui a maioria dos
ingredientes do café da manhã, como linguiças, bacon, cogumelos, ovos, no meio
de uma baguete. Aqui, podemos encontrar o breakfast roll na maioria dos cafés,
supermercados e até algumas lojas de conivência.»
Assim, em relação ao seu grupo
de 5 alunos com CEI, para a prática lectiva, inscreve a receita de
um bolo de chocolate, com os dados iniciais seguidos dos imperativos comece por derreter, pré-aqueça, bata os
ovos, acrescente a farinha (aos poucos), coloque, leve (ao forno), desligue (o forno), desenforme e enfeite (com morangos), tudo bem estruturadinho,
para os seus CEI.
Para o Grupo de PLNM (Português língua não materna), de
13 alunos, apresenta várias receitas estrangeiras, que recolheu do grupo – a de
momo, com uso de verbos no
infinitivo – acrescentar, sovar, cobrir a
massa, rechear… (Rechear os momos é
um pouco difícil, mas com paciência a gente chega lá)… a receita do Drániki, a já citada do Breakfast Roll, as
Arepas venezuelanas e outros
cozinhados estrangeiros que informam sobre costumes, como o seguinte : “Na Moldávia é costume fazer sopas leves à
base de legumes e carne (o que é opcional). Temos, por exemplo, a chamada zeamã (canja), feita com galinha de
campo e massa caseira e temos outras sopas que levam batatas, cenoura, cebola
e, entre outros legumes, leva também couve e beterraba, o que não é costume
encontrar-se na canja. Estas sopas são chamadas de borsh, semelhante ao sumo de limão, que é usado nas sopas para dar
sabor). Não há comida típica, na Holanda, mais barata do que o Frikandel que é uma salsicha frita recheada
com molho de cenoura, maionese e ketchup. Se se comprar em mercados, festas e
feiras, vem dentro de um plástico ou papel no seu formato, com um molho extra.
E, como tudo que é frito, é quase sempre delicioso.
Relativamente a uma turma do
9º ano de Português, dada em parceria com outra professora (num processo que
não resultou, pela sobranceria da colega titular da turma, em parte
justificativa de um estado depressivo, que se prolongou ao longo do ano), o
poema de Reinaldo Ferreira “Receita
para fazer um herói”, é manifestação sagaz da sua inútil ironia: «Tome-se um homem, Feito de nada, como nós, E
em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda,
irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim, Agite-se um
pendão E toque-se um clarim. Serve-se morto.»
Retoma as receitas para outra
turma do 9º de Francês e conclui, após mais de 60 sessões de acompanhamento
educativo, vulgo “aulas de substituição”,
com que os professores absentistas ajudavam o PROJECTO EDUCATIVO DA ESCOLA e massacravam os sempre presentes,
conclui, pois, com a informação “…e fui
um hipopótamo feliz, saltitando de nenúfar em nenúfar… de saiote e de flor na
orelha…”
Conclui a sua PRÁTICA LECTIVA com o Dicionário da Porto Editora de apoio à
sua gestão e um esclarecimento em relação à palavra interajuda, provavelmente a que a define actualmente, no seu
magistério de múltiplas funções, desabando na “flor na orelha” do paquiderme do
seu optimismo forçado:
“O Dicionário da Porto Editora
regist(r)a interajuda (ajuda mútua; ajuda recíproca). O mesmo dicionário também
regista entreajuda (derivação regressiva de entreajudar»), com o significado de
«ajuda recíproca». Assim, podemos considerar interajuda e entreajuda palavras
sinó(ô)nimas. N.E.: É de notar que, há cerca de nove anos, José Neves Henriques
rejeitava interajuda, apesar de bem formado. Contudo, a prática dicionarística
recente acolheu esta forma. Observe-se, mesmo assim, que é preferível
entreajuda, porque já existia com o mesmo sentido de interajuda antes de este
vocábulo ter aparecido.
No 3º parâmetro – ACTIVIDADES PROMOVIDAS, informa sobre
uma receita de favas com entrecosto, feitas de véspera, que azedaram por terem
os coentros misturados e conclui com uma canção de Mafalda Veiga, da gargalhada
forçada pela revolta profunda, de uma ânsia de viver não consentida:
“Ninguém disse Que os dias eram
nossos Ninguém prometeu nada
Fui eu que julguei que podia
arrancar sempre mais uma madrugada
Ninguém disse Que o riso nos
pertence Ninguém prometeu nada
Fui eu que julguei que podia arrancar sempre Mais
uma gargalhada
E deixar-me devorar pelos
sentidos E rasgar-me do mais fundo que há em mim
Emaranhar-me no mundo e morrer
por ser preciso
Nunca por chegar ao fim
No 4º parâmetro - CONTRIBUTO
PARA OS OBJECTIVOS E METAS FIXADAS NO PROJECTO EDUCATIVO – retoma as
receitas: “Coloque os lombos de
bacalhau”…. “polvilhadas com salsa”. A servir com em refresco de frutas e” vinho italiano doce Lambrusco e gelo”, julgo que uma espécie
de sangria, formatando a “dolce vita” idealizada a partir de tanto anseio e
frustração.
O 5º parâmetro - FORMAÇÃO REALIZADA E O SEU CONTRIBUTO PARA
A MELHORIA DA ACÇÃO EDUCATIVA (As acções de formação devem ser devidamente
identificadas, devendo ser indicada a entidade formadora, a duração, avaliação
e os créditos obtidos, se for o caso) remata com um poema-canção de Carolina Deslandes, prova da sua odisseica
viagem através de uma docência miserável, como é a maioria, julgo, neste país,
hoje. Contrabalançada, é certo, pela sua maravilhosa – inicialmente acidentada
– experiência de avó, experiências dessas não abolidas ainda dos decretos,
apesar dos rigores ministeriais sobre os docentes, do PROJECTO EDUCATIVO ali
forjado.
A NUVEM
Tinhas as mãos enrugadas e
cheias de histórias A roupa lavada e vem-me à memória Como me embalavas depois
de jantar Tinhas o rosto sereno, calmo e sempre
vivo E o meu corpo pequeno, mas tão emotivo Não te sabe lembrar sem chorar Eras
da minha alma, da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua sala, na tua asa
Quente como a chama de uma vela E agora não te tenho, só te lembro E gosto de
te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar Tinhas um
corpo de lar E um cheiro a infância Os olhos de mar, e hoje à distância Se fechar
os olhos ainda lá estou E deitada no teu colo O mundo era meu Só me resta o
consolo De que aí no céu Exista uma nuvem com nome de Avô Eras da minha alma,
da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua sala, na tua asa Quente como a
chama de uma vela E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar
Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá morar Há um sítio lá ao pé do
sol Onde eu te vou encontrar Há um sítio lá ao pé do sol Onde eu te vou
encontrar Eras da minha alma, da minha casa Eu era tua costela Dormia na tua
sala, na tua asa Quente como a chama de uma vela E agora não te tenho, só te
lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho da tua nuvem Para um dia eu lá
morar E agora não te tenho, só te lembro E gosto de te cantar Guarda um cantinho
da tua nuvem Para um dia eu lá morar.
Relativamente às alternativas
propostas para o Cumprimento do Serviço – Mais
de 95% / Menos de 95%, naturalmente pôs o x na primeira. Com todo o mérito que a sua extraordinária e original auto-avaliação
bem denuncia.
O fruto das suas pesquisas internáuticas, de um outro
copy/paste (normalmente utilizado pelos colegas ano após ano, de uns relatórios
para os outros, que apenas apresentam diferenças na distribuição do serviço
lectivo) e do seu amor em relação ao seu público-alvo.
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