Não,
não vou comentar o caso do Ricardo Robles,
já muito debatido, citado por São José
Almeida e por João Miguel Tavares,
embora desconhecesse o de Catarina
Martins que João Miguel Tavares enfileira
no grupo da burguesia, afinal só porque é trabalhadora e soube aproveitar bem
os dinheiros de Bruxelas em negócio próprio, com a sua família. Não vou
comentar. Apenas refiro a letra de uma modinha brasileira que não encontro na
Internet, mas que fui buscar às lembranças antigas, e que aplico, com o devido
empenho, às nossas coisas modernas, de sentimentos igualmente tocantes de muita
afeição, pese embora o repúdio próprio da boa formação política condenatória
dos desníveis sociais, excepto no que toca ao nosso próprio caso, que busca,
naturalmente, o perfeito nível, específico da nossa condição de racionais
realmente progressistas, que não exclui, pois, o nosso próprio progresso:
Mas por que é que você se zanga
Quando eu lhe roubo um beijo
Se nos seus olhos o desejo eu vejo
A dar ensejo
Para outro beijo?
I - Não chateiem!
Se o que Louçã fez é uma desonestidade
intelectual, Catarina Martins superou o seu mentor
PÚBLICO, 4 de Agosto de 2018
Os dirigentes do BE
comportam-se genericamente como se estivessem grávidos de vanguardismo e
empanturrados de superioridade moral. Eles são a vanguarda e a elite moral que
está do lado certo da história. Eles são os ungidos pelo espírito
revolucionário, os eleitos a quem foi dado o dom e a graça de anteciparem o
futuro Sol na terra, os iluminados predestinados a conduzir as ignorantes e
impreparadas massas até aos amanhãs que cantam. Agem com um extremismo e um
radicalismo discursivo que impossibilitam e reduzem a caricatura qualquer
tentativa de debate político saudável e positivo. Eis senão quando, a máscara
caiu.
A demissão de Ricardo Robles era inevitável. Não porque
Robles decidiu ser empresário imobiliário e agiu usando a favor do sucesso dos
seus negócios as leis da República. É bom saber que Robles tem espírito
empreendedor e sabe fazer bons negócios. Desde que pague ao Estado os impostos
sobre as mais-valias que lucra, tudo bem, pois beneficia através deles toda a
sociedade. Desejo-lhe até uma vida de sucesso empreendedor. Quanto mais ganhar,
mais carga fiscal pagará, a bem de todos nós.
A demissão era inevitável por uma questão de coerência e credibilidade.
Ninguém pode bramir e erguer bandeiras políticas, como a da defesa da habitação
para todos e entrar em contradição moral na condição das suas acções individuais
e privadas. Sobretudo, alguém que tem uma atitude e discursiva de superioridade
moral.
Robles demitiu-se da Câmara de Lisboa. Fez
bem. Pecou por tarde. Mas o assunto não acaba aqui. E não acaba aqui devido ao
comportamento que, perante este caso, tiveram a líder do BE, Catarina Martins,
e o pai tutelar do partido, o conselheiro de Estado e comentador político
Francisco Louçã.
É
inacreditável a atitude de Louçã, no seu espaço de comentário na SIC, logo na
sexta-feira, quando o caso foi conhecido. Começando por elogiar o escrutínio
democrático dos políticos, que é uma das missões do jornalismo, acabou a tentar
esvaziar a crise política que estava instalada no partido de que foi fundador,
refugiando-se e limitando-se ao aspecto da legalidade formal que presidiu ao
negócio feito por Robles — questão que nunca esteve em causa. Omitiu, porém, o
problema de fundo, o da coerência política e da credibilidade dos políticos.
Neste caso, de Robles.
Mas se o que Louçã fez é uma
desonestidade intelectual, Catarina
Martins superou o seu mentor. No domingo, em defesa do seu camarada e
primeiro vereador eleito pelo BE em Lisboa, Catarina Martins aplicou as
piores técnicas demagógicas e populistas. Indignou-se contra as alegadas
mentiras que os jornais escreveram sobre o impoluto Robles — pois claro,
quando as notícias não nos agradam, mata-se o mensageiro.
Catarina Martins teve o topete de atirar lixo para cima do Presidente da República. Reivindicou, como sendo do BE, o conteúdo de uma lei que o deputado do PCP António Filipe já esclareceu resultar de uma alteração na especialidade proposta por si. Atirou se contra o PSD, acusando este partido de, ao ter pedido a demissão de Robles, liderar uma campanha para destruir a luta política do BE no domínio da habitação — uma luta que o próprio Robles enterrou sozinho, sem precisar de ajuda de ninguém, e com direito a toque de finados e missa do sétimo dia.
Catarina Martins teve o topete de atirar lixo para cima do Presidente da República. Reivindicou, como sendo do BE, o conteúdo de uma lei que o deputado do PCP António Filipe já esclareceu resultar de uma alteração na especialidade proposta por si. Atirou se contra o PSD, acusando este partido de, ao ter pedido a demissão de Robles, liderar uma campanha para destruir a luta política do BE no domínio da habitação — uma luta que o próprio Robles enterrou sozinho, sem precisar de ajuda de ninguém, e com direito a toque de finados e missa do sétimo dia.
Já agora, quando a deputada
socialista Helena Roseta há décadas carrega esta bandeira da habitação
praticamente sozinha e na legislatura em que o Governo do PS avança com medidas
para sanar o sector, não é despudor Catarina Martins erguer o BE como mártir
e baluarte desta causa?
Catarina Martins teve mesmo o descaramento de dizer que Robles agiu
de forma legítima, pois a sua propriedade ia ser alugada a preços acessíveis e
não vendida. Uma tese arranjada pelo próprio empresário de imobiliário na sexta
-feira à tarde, depois de a notícia rebentar, para remendar o facto de ter tido
o edifício à venda durante meses com o lucro potencial de 4,7 milhões de euros.
Só resta um comentário: não chateiem
OPINIÃO
II - Em defesa de Catarina Martins, a
burguesa
Deixem, por amor de Deus,
Catarina Martins ser burguesa à vontade. A extrema-esquerda só é perigosa
quando é revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 2 de Agosto de 2018
Também não vale a pena
exagerar. Tanto foi o entusiasmo em torno do investimento imobiliário de
Ricardo Robles, que de repente já há uma
fila de gente a bater à porta dos negócios familiares de Catarina Martins, com
ar indignado. Objectivo: provar que por trás de cada bloquista há um
especulador clandestino, que utiliza o seu radicalismo pequeno burguês de
fachada socialista para camuflar opíparos investimentos em alojamento local.
Era giro que assim fosse, mas nada indica que assim é. Por isso, manda o rigor
e os bons modos não confundir coisas, até para não dar razão àqueles que acham
que todo este caso foi apenas uma manobra conspirativa da direita, para pôr em
causa o brilhante trabalho do Bloco na luta contra aquela palavra que agora
toda a gente usa e que me lembra sempre casas de repouso para a terceira idade:
gentrificação.
O negócio do Ricardo nada tem a ver com o negócio da Catarina.
Limitam-se ambos a arrendarem imóveis e a terem na carteira o cartão de
militante do Bloco de Esquerda. Catarina Martins
transformou uma casa dos pais do marido, mais uns palheiros abandonados na zona
do Sabugal, num pequeno negócio de turismo rural. A empresa, na qual detém uma
posição minoritária (apenas 4%), é gerida pelo marido e pelos sogros – o que
até é bonito, e valoriza a importância da família tradicional, para alegria do
CDS-PP. Na notícia do jornal online Eco, ficamos a saber que “a
coordenadora do BE fundou a Logradouro Lda. com o marido há quase dez anos e
foi sócia-gerente da empresa até final de 2009, altura em que assumiu funções
como deputada em regime de exclusividade. Actualmente, a empresa explora quatro
empreendimentos turísticos e uma unidade de alojamento local no concelho do
Sabugal, distrito da Guarda.” Tudo certo.
A unidade de alojamento
local é modesta (dois quartos e duas camas), e parece que a reconversão dos
antigos palheiros para turismo recebeu 137,3 mil euros ao abrigo do QREN. Há gente que decidiu embirrar com isto tudo:
com o negócio turístico de Catarina, com o facto de o Bloco não apreciar a
União Europeia mas ela andar a usufruir de fundos europeus, com o ordenado que
a Logradouro Lda. supostamente paga aos seus colaboradores, e até com o mau
gosto das colchas das camas, segundo as fotos disponíveis no Airbnb. Pois
bem: tirando a opinião sobre as colchas das camas, eu discordo de tudo. A
senhora Catarina tem toda a legitimidade para ter um pequeno negócio familiar
na província; isso em nada contradiz o seu discurso político; e quaisquer
comparações entre apostar no turismo em Lisboa com um prédio comprado à
Segurança Social ou investir em palheiros devolutos no Sabugal são
absolutamente descabidas.
Mais do que isso: deixem, por amor de Deus, Catarina
Martins ser burguesa à vontade. A extrema esquerda só é perigosa quando é
revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder. Um vereador que
acabou de investir um milhão de euros num prédio não quer uma revolução. Tal
como não quer uma coordenadora do Bloco com casas a render na Beira Alta. A
hipocrisia do Bloco deve ser denunciada, com certeza, mas deixem o partido
aburguesar-se, que só lhe faz bem. O PCP é mais coerente – só que também é mais
perigoso. Preocupa-me mais Miguel Tiago, que deixou o Parlamento com críticas à
moderação do PCP, do que Ricardo Robles. Os protestos esquerdistas do Bloco são
parte da coreografia do regime. Enquanto houver Sabugal, há democracia liberal.
Negoceia, Catarina, negoceia.
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