terça-feira, 14 de agosto de 2018

O beijo


Não, não vou comentar o caso do Ricardo Robles, já muito debatido, citado por São José Almeida e por João Miguel Tavares, embora desconhecesse o de Catarina Martins que João Miguel Tavares enfileira no grupo da burguesia, afinal só porque é trabalhadora e soube aproveitar bem os dinheiros de Bruxelas em negócio próprio, com a sua família. Não vou comentar. Apenas refiro a letra de uma modinha brasileira que não encontro na Internet, mas que fui buscar às lembranças antigas, e que aplico, com o devido empenho, às nossas coisas modernas, de sentimentos igualmente tocantes de muita afeição, pese embora o repúdio próprio da boa formação política condenatória dos desníveis sociais, excepto no que toca ao nosso próprio caso, que busca, naturalmente, o perfeito nível, específico da nossa condição de racionais realmente progressistas, que não exclui, pois, o nosso próprio progresso:
Mas por que é que você se zanga
Quando eu lhe roubo um beijo
Se nos seus olhos o desejo eu vejo
A dar ensejo
Para outro beijo?
I - Não chateiem!
Se o que Louçã fez é uma desonestidade intelectual, Catarina Martins superou o seu mentor
PÚBLICO, 4 de Agosto de 2018
Os dirigentes do BE comportam-se genericamente como se estivessem grávidos de vanguardismo e empanturrados de superioridade moral. Eles são a vanguarda e a elite moral que está do lado certo da história. Eles são os ungidos pelo espírito revolucionário, os eleitos a quem foi dado o dom e a graça de anteciparem o futuro Sol na terra, os iluminados predestinados a conduzir as ignorantes e impreparadas massas até aos amanhãs que cantam. Agem com um extremismo e um radicalismo discursivo que impossibilitam e reduzem a caricatura qualquer tentativa de debate político saudável e positivo. Eis senão quando, a máscara caiu.
A demissão de Ricardo Robles era inevitável. Não porque Robles decidiu ser empresário imobiliário e agiu usando a favor do sucesso dos seus negócios as leis da República. É bom saber que Robles tem espírito empreendedor e sabe fazer bons negócios. Desde que pague ao Estado os impostos sobre as mais-valias que lucra, tudo bem, pois beneficia através deles toda a sociedade. Desejo-lhe até uma vida de sucesso empreendedor. Quanto mais ganhar, mais carga fiscal pagará, a bem de todos nós.
A demissão era inevitável por uma questão de coerência e credibilidade. Ninguém pode bramir e erguer bandeiras políticas, como a da defesa da habitação para todos e entrar em contradição moral na condição das suas acções individuais e privadas. Sobretudo, alguém que tem uma atitude e discursiva de superioridade moral.
Robles demitiu-se da Câmara de Lisboa. Fez bem. Pecou por tarde. Mas o assunto não acaba aqui. E não acaba aqui devido ao comportamento que, perante este caso, tiveram a líder do BE, Catarina Martins, e o pai tutelar do partido, o conselheiro de Estado e comentador político Francisco Louçã.
É inacreditável a atitude de Louçã, no seu espaço de comentário na SIC, logo na sexta-feira, quando o caso foi conhecido. Começando por elogiar o escrutínio democrático dos políticos, que é uma das missões do jornalismo, acabou a tentar esvaziar a crise política que estava instalada no partido de que foi fundador, refugiando-se e limitando-se ao aspecto da legalidade formal que presidiu ao negócio feito por Robles — questão que nunca esteve em causa. Omitiu, porém, o problema de fundo, o da coerência política e da credibilidade dos políticos. Neste caso, de Robles.
Mas se o que Louçã fez é uma desonestidade intelectual, Catarina Martins superou o seu mentor. No domingo, em defesa do seu camarada e primeiro vereador eleito pelo BE em Lisboa, Catarina Martins aplicou as piores técnicas demagógicas e populistas. Indignou-se contra as alegadas mentiras que os jornais escreveram sobre o impoluto Robles — pois claro, quando as notícias não nos agradam, mata-se o mensageiro.
Catarina Martins teve o topete de atirar lixo para cima do Presidente da República. Reivindicou, como sendo do BE, o conteúdo de uma lei que o deputado do PCP António Filipe já esclareceu resultar de uma alteração na especialidade proposta por si. Atirou se contra o PSD, acusando este partido de, ao ter pedido a demissão de Robles, liderar uma campanha para destruir a luta política do BE no domínio da habitação — uma luta que o próprio Robles enterrou sozinho, sem precisar de ajuda de ninguém, e com direito a toque de finados e missa do sétimo dia.
Já agora, quando a deputada socialista Helena Roseta há décadas carrega esta bandeira da habitação praticamente sozinha e na legislatura em que o Governo do PS avança com medidas para sanar o sector, não é despudor Catarina Martins erguer o BE como mártir e baluarte desta causa?
Catarina Martins teve mesmo o descaramento de dizer que Robles agiu de forma legítima, pois a sua propriedade ia ser alugada a preços acessíveis e não vendida. Uma tese arranjada pelo próprio empresário de imobiliário na sexta -feira à tarde, depois de a notícia rebentar, para remendar o facto de ter tido o edifício à venda durante meses com o lucro potencial de 4,7 milhões de euros. Só resta um comentário: não chateiem
OPINIÃO
II - Em defesa de Catarina Martins, a burguesa
Deixem, por amor de Deus, Catarina Martins ser burguesa à vontade. A extrema-esquerda só é perigosa quando é revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 2 de Agosto de 2018
Também não vale a pena exagerar. Tanto foi o entusiasmo em torno do investimento imobiliário de Ricardo Robles, que de repente já há uma fila de gente a bater à porta dos negócios familiares de Catarina Martins, com ar indignado. Objectivo: provar que por trás de cada bloquista há um especulador clandestino, que utiliza o seu radicalismo pequeno burguês de fachada socialista para camuflar opíparos investimentos em alojamento local. Era giro que assim fosse, mas nada indica que assim é. Por isso, manda o rigor e os bons modos não confundir coisas, até para não dar razão àqueles que acham que todo este caso foi apenas uma manobra conspirativa da direita, para pôr em causa o brilhante trabalho do Bloco na luta contra aquela palavra que agora toda a gente usa e que me lembra sempre casas de repouso para a terceira idade: gentrificação.
O negócio do Ricardo nada tem a ver com o negócio da Catarina. Limitam-se ambos a arrendarem imóveis e a terem na carteira o cartão de militante do Bloco de Esquerda. Catarina Martins transformou uma casa dos pais do marido, mais uns palheiros abandonados na zona do Sabugal, num pequeno negócio de turismo rural. A empresa, na qual detém uma posição minoritária (apenas 4%), é gerida pelo marido e pelos sogros – o que até é bonito, e valoriza a importância da família tradicional, para alegria do CDS-PP. Na notícia do jornal online Eco, ficamos a saber que “a coordenadora do BE fundou a Logradouro Lda. com o marido há quase dez anos e foi sócia-gerente da empresa até final de 2009, altura em que assumiu funções como deputada em regime de exclusividade. Actualmente, a empresa explora quatro empreendimentos turísticos e uma unidade de alojamento local no concelho do Sabugal, distrito da Guarda.” Tudo certo.
A unidade de alojamento local é modesta (dois quartos e duas camas), e parece que a reconversão dos antigos palheiros para turismo recebeu 137,3 mil euros ao abrigo do QREN. Há gente que decidiu embirrar com isto tudo: com o negócio turístico de Catarina, com o facto de o Bloco não apreciar a União Europeia mas ela andar a usufruir de fundos europeus, com o ordenado que a Logradouro Lda. supostamente paga aos seus colaboradores, e até com o mau gosto das colchas das camas, segundo as fotos disponíveis no Airbnb. Pois bem: tirando a opinião sobre as colchas das camas, eu discordo de tudo. A senhora Catarina tem toda a legitimidade para ter um pequeno negócio familiar na província; isso em nada contradiz o seu discurso político; e quaisquer comparações entre apostar no turismo em Lisboa com um prédio comprado à Segurança Social ou investir em palheiros devolutos no Sabugal são absolutamente descabidas.
Mais do que isso: deixem, por amor de Deus, Catarina Martins ser burguesa à vontade. A extrema esquerda só é perigosa quando é revolucionária, e só é revolucionária quando nada tem a perder. Um vereador que acabou de investir um milhão de euros num prédio não quer uma revolução. Tal como não quer uma coordenadora do Bloco com casas a render na Beira Alta. A hipocrisia do Bloco deve ser denunciada, com certeza, mas deixem o partido aburguesar-se, que só lhe faz bem. O PCP é mais coerente – só que também é mais perigoso. Preocupa-me mais Miguel Tiago, que deixou o Parlamento com críticas à moderação do PCP, do que Ricardo Robles. Os protestos esquerdistas do Bloco são parte da coreografia do regime. Enquanto houver Sabugal, há democracia liberal. Negoceia, Catarina, negoceia.

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