Celeste Rodrigues morreu, a sua voz cansada mas harmoniosa,
ficará no nosso ouvido, bem como a sua figura serena e discreta que, quando
mais nova, cantou “A Lenda das algas”,
que nós repetíamos, naqueles tempos de adolescência despreocupada e risonha,
participando nos desempenhos de preparação para a vida que nos cumpriria, com
pais atentos ao futuro das filhas. Uma guerra acabara, condições rudes foram
impostas a uma Alemanha nazi poderosa e que acabara perdendo. Sete décadas mais
tarde, recuperada na sua vitalidade de povo inteligente, trabalhador e
ambicioso, que passara por um período inicial de derrota e ocupação e
finalmente se agrupara estrategicamente, numa função benemérita, aliada a
outros países unidos por um aparentemente comum ideal de solidariedade,
decretado a quando das conferências que impuseram condições de rigor e castigo,
a Alemanha cedo assumiu, pela mão de Angela Merkel, o controlo das operações
tendentes a transformar uma Europa fraccionada, numa que, não deixando de o ser,
pretendia criar condições de interapoio e eficiência nem sempre cumpridas,
devido a desníveis comportamentais entre os diferentes grupos étnicos. Mas os considerandos de Paulo
Rangel são absolutamente aterradores, caso venham a ser cumpridas as ameaças
de fortalecimento nuclear germânico, como resposta às provocações de D. Trump. O
texto de Paulo Rangel é elucidativo, os seus comentadores perceberam-no,
como todos de nós que o lermos com seriedade e bom senso. Não, não se trata
agora das palhaçadas Trump-Kim Jong Un, de ensaios nucleares desfeitos com um
piparote, pela submissão humilde à prepotência vaidosa. A Alemanha não se
importará com os acordos de Ialta, para defender a sua ambição de todo o sempre,
não é um Trump apalhaçado que a impedirá de pôr em
prática, novamente, as suas ambições de domínio, mesmo que tal signifique o
apocalipse, há muito previsto.
Leiamos também o bonito texto de Nuno Pacheco de homenagem a Celeste Rodrigues, cantemos com esta, não mais “A
Lenda das Algas” da sua voz jovem, mas ouçamos a do You Tube, voz
perdida pelos desgastes de um tempo que, retirando-lhe a frescura, lhe não
suprimiu a harmonia.
OPINIÃO
Europa pós-Trump: e se a Alemanha se
tornasse uma potência nuclear?
A ideia de uma novel potência nuclear
alemã parece peregrina. Mas basta considerá-la para perceber como estamos em
plena deriva de transição.
PÚBLICO, 31 de Julho de 2018, 7:15
1. Quem tenha tropeçado na
edição electrónica de ontem e de anteontem do prestigiado jornal alemão Die
Welt terá ficado, no mínimo, estupefacto. Primeiro, terá topado com um artigo, que
teve honras de destaque por escassas horas, em que se equaciona a possibilidade
de dotar a Alemanha de armamento nuclear, atenta a incerteza da política de
alianças de defesa de Donald Trump. Logo de seguida – seguramente, com menos
espanto –, deparava-se com uma crónica em que se considera a ideia de uma
Alemanha atómica como uma ideia trágica e desastrosa. Finalmente, e algures na
rubrica de artigos de história, um outro texto bem assinalado ostentava o
seguinte título: “Já Adenauer queria armas atómicas para o Exército federal”.
A questão não é nova e tem
sido intermitentemente aflorada na imprensa internacional (seja de língua
alemã, seja de língua inglesa), em especial depois da eleição de Donald Trump. Em todo o caso, a simples enunciação da
questão é obviamente inesperada ou não fosse a Alemanha o país que, em 2011, no
seguimento da catástrofe de Fukushima, anunciou o encerramento de todas as
centrais nucleares (para fins civis) até 2022. E que o fez pela mão de Angela
Merkel, física de formação e Ministra do Ambiente e da Segurança Nuclear nos
anos finais do consulado de Helmut Kohl. Para quem conhece a sociedade alemã, a
importância das correntes “ecológicas” e a sensibilidade com a situação
ambiental do Leste, a decisão de “descontinuar” as centrais nucleares não é
surpreendente. Estranho é, isso sim, por esta e por razões históricas e
políticas de peso, que possa discutir-se – ainda que só teoricamente – a
criação de uma capacidade militar de natureza nuclear. Ela teria decerto uma
rejeição maioritária da população e está vedada pelo Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares. Uma coisa é certa: a Alemanha dispõe de todas
as condições científicas, técnicas e financeiras para poder montar, num prazo
curto, um programa de armamento nuclear bem sucedido. Nunca será de esquecer
que os “inventores” da primeira bomba atómica eram, em boa parte, cientistas
alemães “emigrados” nos Estados Unidos.
2. A questão, tal como vem posta, parece – e
será com quase absoluta certeza – do domínio do inverosímil. Não
deixa, no entanto, de nos confrontar com um exercício útil e conveniente.
Especialmente, se considerarmos a posição de Trump quanto à NATO e à defesa
europeia, a emergência do "Brexit" e os recentes avanços da UE na
área da defesa.
Donald Trump, na esteira dos seus antecessores, mas de modo muito mais
assertivo e intransigente, tem feito a apologia do reforço dos gastos com a
defesa por parte dos aliados europeus. Ainda que com um discurso errático, tem
ido bem mais longe do que os predecessores, ao sugerir que a Europa se deve defender
a si mesma e que, em certos casos (por exemplo, Montenegro e Bálticos), poderá
não estar disponível para dar cumprimento à obrigação de solidariedade do art. 5.º
do Tratado da Aliança Atlântica. Esta posição, combinada com uma
hostilidade manifesta em relação à UE em geral e à Alemanha, em particular,
levou a que se criasse a impressão de que os europeus não podem mais contar com
o “guarda-chuva” militar dos EUA. No discurso de Munique de
abertura das jornadas parlamentares do Grupo PPE, em inícios de Junho, Merkel
clamou alto e a bom som: “allein zu Hause” (“sozinhos em casa”).
De resto, na habitual conferência de imprensa que antecede as férias, ela foi claríssima ao assumir que havia
um novo contexto geopolítico em que a Europa já não podia contar com a
protecção americana e que isso implicaria tratar da autodefesa.
3. O ponto aqui é o de saber se a estratégia do Presidente norte-americano
não terá efeitos contraproducentes. Mesmo pondo de parte, pelo menos para
já, a capacidade nuclear, a pergunta que tem de se fazer é a que segue: os EUA têm mesmo interesse em que os
Estados europeus e, em especial, a Alemanha assumam plena responsabilidade pela
sua defesa? A retórica de que cada um deve pagar a sua conta e a consequência
que lhe vai associada de que cada qual trata de si não abrirão a porta a um
rearmamento das médias-grandes potências europeias? Não seria mais curial
deixar claríssimo que o inadiável aumento da contribuição financeira nunca
dispensará um quadro operacional comum? Uma Alemanha, com um gasto em defesa de
2% ou mais, plenamente rearmada (ainda que só com meios convencionais), não
alteraria seriamente o equilíbrio político europeu, mais do que já altera a sua
absoluta supremacia económica e, em particular, o desproporcionado superavit comercial?
Com a entrega da Europa a si mesma, pressionada pelo potencial de ameaça da
Rússia, não estará Trump a dar argumentos a um ressurgimento de uma polarização
militar especificamente europeia?
4. Também no palco da política de
defesa da UE, designadamente da Cooperação Estruturada Permanente na área da
Segurança e da Defesa, podem plantear-se estas questões. A criação de uma verdadeira união de defesa – que é uma velha e
nunca atingida ambição – teve sempre, entre as suas motivações, o enquadramento
“transnacional” de um eventual ressurgimento militar da Alemanha. Os avanços na
área da defesa não podem nem devem nunca iludir esta “motivação”, sob pena de
gerarem desequilíbrios que, num novo contexto geopolítico, podem ser mais
dificilmente compensáveis. Não é, por acaso, que a Alemanha apoia a criação de
um lugar para UE no Conselho de Segurança da ONU. É justamente porque esse
seria o veículo mais à mão para poder fazer chegar a posição teutónica àquele
concílio.
A ideia de uma novel potência nuclear alemã parece peregrina. Mas basta
considerá-la para perceber como estamos em plena deriva de transição. Se os EUA
a considerassem, talvez moderassem e corrigissem alguns dos seus mais recentes
ímpetos “isolacionistas”. A bem de todos, alemães, europeus e americanos
incluídos.
SIM. Tolentino de Mendonça. A nomeação do cristão-poeta para a biblioteca e
os arquivos do Vaticano é uma nova boa e bela para a cultura universal. Mais um
sinal do Papa Francisco.
NÃO. Bloco de Esquerda. A posição sectária da liderança do BE sobre a
contradição de Robles diz muito acerca do partido. E foi a melhor prenda
política que podia dar ao PCP e ao PS.
Colunista
Jose, 31.07.2018: A probabilidade da Alemanha se transformar numa potência nuclear é
bastante alta. As potências nucleares mantêm a ordem económica e financeira. A
Alemanha que após a derrota na guerra ficou restringida no plano militar não
desaprendeu. Sabe bem que ou tem cobertura militar para ser alguém, como tem
tido, ou passa a ser ninguém. O fim do mundo bipolar já ocorreu há décadas. Os
EUA tentaram um mundo unipolar, o deles, a que a Alemanha se resignou sem
desenvolver as medidas que se impõem pela alteração geopolítica e militar
gerada pelo fim do mundo bipolar. A China reagiu determinadamente nos planos
militares, diplomáticos, comerciais económicos e financeiros. A Alemanha
acomodou-se ao establishment e fracassou.
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia)31.07.2018: Oportuníssimo este grande artigo do Sr Dr
Paulo Rangel. Muito obrigado por trazer até nós estas notícias que nos fazem
pensar!
João Macedo, Porto - Meadela - Perre - Viana do Castelo -
Romorantin-Lanthenay - Paris - Bruxelas – Lisboaensonho, 31.07.2018: Artigo inteligentíssimo. Dá gosto ler. Mas
não refere, a não ser talvez subliminarmente, o perigo de entregar uma
capacidade nuclear militar alemã a uma Alemanha sempre na iminência de se
tornar novamente nazi. Ui, ui, ui! (Desculpem os calafrios.)
OPINIÃO
Agora? Celebremos a vida de CR95
Como no célebre
filme de Capra, também sem Celeste Rodrigues o fado seria outra coisa. E bem
mais pobre.
PÚBLICO, 2 de Agosto de 2018,
Em Maio, celebrámos com ela o fado.
Hoje, despedimo-nos de Celeste Rodrigues com uma visão mais clara do que foi a
sua vida, desse Fado Celeste que sublimou os
fados (e foram tantos) que ao longo da vida cantou e gravou. Já aqui se
escreveu que cantar, na sua idade, era uma bênção, uma bênção do fado que com
ela ganhava uma sobriedade e um bom gosto dignos de nota. É certo que só depois
da morte de Amália, sua irmã mais velha, ela assomou à ribalta, mas não é menos
certo que tudo isso era já intrínseco à sua carreira. Reagindo à morte de
Celeste, Rui Vieira Nery disse que “foi já nos últimos 20 anos, depois da morte
da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste como uma personalidade
autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E ganhou, no fim da vida, um
reconhecimento que tardava.”
Isso é verdade, mas é curioso
ver como, muitos anos antes, essa “sombra” já era uma evidência. Leia-se isto:
“[Celeste Rodrigues] não tem o lugar que merece, única e simplesmente porque
não quer, porque não acredita em si própria, porque se sente ofuscada pelo nome
rutilante da sua irmã Amália.” Voz de um crítico? Não, pelo contrário. Apenas a
introdução a um texto de uma revista de 36 páginas inteiramente dedicada a
Celeste Rodrigues e publicada há meio século, no dia 1 de Maio de 1967. A
revista, intitulada Álbum da
Canção (pode ser vista e lida, na íntegra, no blogue Curiosidades de Imprensa e
Afins), também serve de testemunho contrário: embora
Celeste fosse “o mais antivedeta que possa imaginar-se”, já nessa altura tinha
sido convidada para gravar na BBC de Londres e já tinha sido filmada por Ed
Sullivan (em Lisboa!) para um dos seus célebres programas na televisão dos
Estados Unidos. Não só isso. Por essa altura, já actuara no Brasil, na rádio e
na televisão. “Como se vê, a minha carreira é muito simples. Limitei-me a
cantar o fado, especialmente em casas típicas, e em programas da rádio e da
televisão”, dizia ela no longo texto da revista. Recusou convites para o cinema
e para o teatro (e se ela gostava de ambos, como então dizia num daqueles
inquéritos “gosta/detesta” que a revista também publicava) porque não se sentia
com coragem para enfrentar as câmaras ou pisar esses outros palcos. No fado
sim, estava à vontade. “Canto porque gosto de cantar”, dizia, depois de
afirmar: “Reconheço que não dou a importância que devia dar à minha carreira
artística.” E foi nessa dualidade que sempre viveu, com o prazer da vida e
deixando de lado o peso da fama. Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro,
para o PÚBLICO, em 2014, disse Celeste: “Deixem-me andar cá a cantar
as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as
pessoas mudam. E eu não queria nada mudar.”
Não mudou. Porque, dando
incessante alento às novas gerações de fadistas, manteve essa simplicidade
altiva de quem nada deve mas muito sabe. Às vezes exagerando, como fez na tal
revista de 1967, ao dizer isto ao entrevistador: “Ao pé de Amália, eu não sou
nada. Se eu tivesse realmente talento, todos me notariam, quanto mais não fosse
para comentarem: ‘Tem um certo talento’. Assim, como não tenho qualquer réstia
de génio, limitam-se a dizer: ‘É a irmã da Amália’. E eu acho muito bem.” Mas a
verdade é que Celeste tinha muitos talentos e isso será lembrado, justamente,
por mais do que uma geração de músicos e de públicos. Portugal, que tanto
celebra o seu CR7 (Cristiano Ronaldo) bem pode celebrar também a sua CR95
(Celeste Rodrigues, 95 anos) naquilo que lhe é devido. Porque, como no célebre
filme de Capra, também sem ela o fado seria outra coisa. E bem mais pobre.
Lenda
das Algas
Letra: Laiert dos Santos Brito Neves
Música: Jaime Mendes
Repertório: Celeste Rodrigues
Letra: Laiert dos Santos Brito Neves
Música: Jaime Mendes
Repertório: Celeste Rodrigues
O
mar espreguiçando-se na areia
Trouxe no seu espreguiçar
Algas envoltas em espuma
E quando à noite veio a maré cheia
Voltaram todas ao mar
Mas na praia ficou uma
Trouxe no seu espreguiçar
Algas envoltas em espuma
E quando à noite veio a maré cheia
Voltaram todas ao mar
Mas na praia ficou uma
Conta
a lenda que essa alga pequenina
Que o destino ali deixou
Tomou forma e tomou vida
E quando um pescador por ali passou
Encontrou uma menina
Sobre a areia adormecida
Que o destino ali deixou
Tomou forma e tomou vida
E quando um pescador por ali passou
Encontrou uma menina
Sobre a areia adormecida
E
quem passar pela cabana do pescador
Há-de sentir um não-sei-quê de nostalgia
E aos seus ouvidos há-de chegar um rumor
Que tem do mar a estranha melancolia
Há-de sentir um não-sei-quê de nostalgia
E aos seus ouvidos há-de chegar um rumor
Que tem do mar a estranha melancolia
E
nessas notas doloridas e plangentes
Talvez não saiba quem é que está a escutar
Talvez um búzio a soluçar notas dolentes
Ou talvez seja eu sozinha a soluçar
Talvez não saiba quem é que está a escutar
Talvez um búzio a soluçar notas dolentes
Ou talvez seja eu sozinha a soluçar
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