sexta-feira, 3 de agosto de 2018

“Ou talvez seja eu sozinha a soluçar”



Celeste Rodrigues morreu, a sua voz cansada mas harmoniosa, ficará no nosso ouvido, bem como a sua figura serena e discreta que, quando mais nova, cantou “A Lenda das algas”, que nós repetíamos, naqueles tempos de adolescência despreocupada e risonha, participando nos desempenhos de preparação para a vida que nos cumpriria, com pais atentos ao futuro das filhas. Uma guerra acabara, condições rudes foram impostas a uma Alemanha nazi poderosa e que acabara perdendo. Sete décadas mais tarde, recuperada na sua vitalidade de povo inteligente, trabalhador e ambicioso, que passara por um período inicial de derrota e ocupação e finalmente se agrupara estrategicamente, numa função benemérita, aliada a outros países unidos por um aparentemente comum ideal de solidariedade, decretado a quando das conferências que impuseram condições de rigor e castigo, a Alemanha cedo assumiu, pela mão de Angela Merkel, o controlo das operações tendentes a transformar uma Europa fraccionada, numa que, não deixando de o ser, pretendia criar condições de interapoio e eficiência nem sempre cumpridas, devido a desníveis comportamentais entre os diferentes grupos étnicos. Mas os considerandos de Paulo Rangel são absolutamente aterradores, caso venham a ser cumpridas as ameaças de fortalecimento nuclear germânico, como resposta às provocações de D. Trump. O texto de Paulo Rangel é elucidativo, os seus comentadores perceberam-no, como todos de nós que o lermos com seriedade e bom senso. Não, não se trata agora das palhaçadas Trump-Kim Jong Un, de ensaios nucleares desfeitos com um piparote, pela submissão humilde à prepotência vaidosa. A Alemanha não se importará com os acordos de Ialta, para defender a sua ambição de todo o sempre, não é um Trump apalhaçado que a impedirá de pôr em prática, novamente, as suas ambições de domínio, mesmo que tal signifique o apocalipse, há muito previsto.
Leiamos também o bonito texto de Nuno Pacheco de homenagem a Celeste Rodrigues, cantemos com esta, não mais “A Lenda das Algas” da sua voz jovem, mas ouçamos a do You Tube, voz perdida pelos desgastes de um tempo que, retirando-lhe a frescura, lhe não suprimiu a harmonia.

OPINIÃO
Europa pós-Trump: e se a Alemanha se tornasse uma potência nuclear?
A ideia de uma novel potência nuclear alemã parece peregrina. Mas basta considerá-la para perceber como estamos em plena deriva de transição.
PÚBLICO, 31 de Julho de 2018, 7:15
1. Quem tenha tropeçado na edição electrónica de ontem e de anteontem do prestigiado jornal alemão Die Welt terá ficado, no mínimo, estupefacto. Primeiro, terá topado com um artigo, que teve honras de destaque por escassas horas, em que se equaciona a possibilidade de dotar a Alemanha de armamento nuclear, atenta a incerteza da política de alianças de defesa de Donald Trump. Logo de seguida – seguramente, com menos espanto –, deparava-se com uma crónica em que se considera a ideia de uma Alemanha atómica como uma ideia trágica e desastrosa. Finalmente, e algures na rubrica de artigos de história, um outro texto bem assinalado ostentava o seguinte título: “Já Adenauer queria armas atómicas para o Exército federal”.
A questão não é nova e tem sido intermitentemente aflorada na imprensa internacional (seja de língua alemã, seja de língua inglesa), em especial depois da eleição de Donald Trump. Em todo o caso, a simples enunciação da questão é obviamente inesperada ou não fosse a Alemanha o país que, em 2011, no seguimento da catástrofe de Fukushima, anunciou o encerramento de todas as centrais nucleares (para fins civis) até 2022. E que o fez pela mão de Angela Merkel, física de formação e Ministra do Ambiente e da Segurança Nuclear nos anos finais do consulado de Helmut Kohl. Para quem conhece a sociedade alemã, a importância das correntes “ecológicas” e a sensibilidade com a situação ambiental do Leste, a decisão de “descontinuar” as centrais nucleares não é surpreendente. Estranho é, isso sim, por esta e por razões históricas e políticas de peso, que possa discutir-se – ainda que só teoricamente – a criação de uma capacidade militar de natureza nuclear. Ela teria decerto uma rejeição maioritária da população e está vedada pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Uma coisa é certa: a Alemanha dispõe de todas as condições científicas, técnicas e financeiras para poder montar, num prazo curto, um programa de armamento nuclear bem sucedido. Nunca será de esquecer que os “inventores” da primeira bomba atómica eram, em boa parte, cientistas alemães “emigrados” nos Estados Unidos.
2. A questão, tal como vem posta, parece – e será com quase absoluta certeza – do domínio do inverosímil. Não deixa, no entanto, de nos confrontar com um exercício útil e conveniente. Especialmente, se considerarmos a posição de Trump quanto à NATO e à defesa europeia, a emergência do "Brexit" e os recentes avanços da UE na área da defesa.  
Donald Trump, na esteira dos seus antecessores, mas de modo muito mais assertivo e intransigente, tem feito a apologia do reforço dos gastos com a defesa por parte dos aliados europeus. Ainda que com um discurso errático, tem ido bem mais longe do que os predecessores, ao sugerir que a Europa se deve defender a si mesma e que, em certos casos (por exemplo, Montenegro e Bálticos), poderá não estar disponível para dar cumprimento à obrigação de solidariedade do art. 5.º do Tratado da Aliança Atlântica. Esta posição, combinada com uma hostilidade manifesta em relação à UE em geral e à Alemanha, em particular, levou a que se criasse a impressão de que os europeus não podem mais contar com o “guarda-chuva” militar dos EUA. No discurso de Munique de abertura das jornadas parlamentares do Grupo PPE, em inícios de Junho, Merkel clamou alto e a bom som: allein zu Hause” (“sozinhos em casa”). De resto, na habitual conferência de imprensa que antecede as férias, ela foi claríssima ao assumir que havia um novo contexto geopolítico em que a Europa já não podia contar com a protecção americana e que isso implicaria tratar da autodefesa.
3. O ponto aqui é o de saber se a estratégia do Presidente norte-americano não terá efeitos contraproducentes. Mesmo pondo de parte, pelo menos para já, a capacidade nuclear, a pergunta que tem de se fazer é a que segue: os EUA têm mesmo interesse em que os Estados europeus e, em especial, a Alemanha assumam plena responsabilidade pela sua defesa? A retórica de que cada um deve pagar a sua conta e a consequência que lhe vai associada de que cada qual trata de si não abrirão a porta a um rearmamento das médias-grandes potências europeias? Não seria mais curial deixar claríssimo que o inadiável aumento da contribuição financeira nunca dispensará um quadro operacional comum? Uma Alemanha, com um gasto em defesa de 2% ou mais, plenamente rearmada (ainda que só com meios convencionais), não alteraria seriamente o equilíbrio político europeu, mais do que já altera a sua absoluta supremacia económica e, em particular, o desproporcionado superavit comercial? Com a entrega da Europa a si mesma, pressionada pelo potencial de ameaça da Rússia, não estará Trump a dar argumentos a um ressurgimento de uma polarização militar especificamente europeia?
4. Também no palco da política de defesa da UE, designadamente da Cooperação Estruturada Permanente na área da Segurança e da Defesa, podem plantear-se estas questões. A criação de uma verdadeira união de defesa – que é uma velha e nunca atingida ambição – teve sempre, entre as suas motivações, o enquadramento “transnacional” de um eventual ressurgimento militar da Alemanha. Os avanços na área da defesa não podem nem devem nunca iludir esta “motivação”, sob pena de gerarem desequilíbrios que, num novo contexto geopolítico, podem ser mais dificilmente compensáveis. Não é, por acaso, que a Alemanha apoia a criação de um lugar para UE no Conselho de Segurança da ONU. É justamente porque esse seria o veículo mais à mão para poder fazer chegar a posição teutónica àquele concílio.
A ideia de uma novel potência nuclear alemã parece peregrina. Mas basta considerá-la para perceber como estamos em plena deriva de transição. Se os EUA a considerassem, talvez moderassem e corrigissem alguns dos seus mais recentes ímpetos “isolacionistas”. A bem de todos, alemães, europeus e americanos incluídos.
SIM. Tolentino de Mendonça. A nomeação do cristão-poeta para a biblioteca e os arquivos do Vaticano é uma nova boa e bela para a cultura universal. Mais um sinal do Papa Francisco. 
NÃO. Bloco de Esquerda. A posição sectária da liderança do BE sobre a contradição de Robles diz muito acerca do partido. E foi a melhor prenda política que podia dar ao PCP e ao PS. 
Colunista

Jose, 31.07.2018: A probabilidade da Alemanha se transformar numa potência nuclear é bastante alta. As potências nucleares mantêm a ordem económica e financeira. A Alemanha que após a derrota na guerra ficou restringida no plano militar não desaprendeu. Sabe bem que ou tem cobertura militar para ser alguém, como tem tido, ou passa a ser ninguém. O fim do mundo bipolar já ocorreu há décadas. Os EUA tentaram um mundo unipolar, o deles, a que a Alemanha se resignou sem desenvolver as medidas que se impõem pela alteração geopolítica e militar gerada pelo fim do mundo bipolar. A China reagiu determinadamente nos planos militares, diplomáticos, comerciais económicos e financeiros. A Alemanha acomodou-se ao establishment e fracassou.
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia)31.07.2018: Oportuníssimo este grande artigo do Sr Dr Paulo Rangel. Muito obrigado por trazer até nós estas notícias que nos fazem pensar!
João MacedoPorto - Meadela - Perre - Viana do Castelo - Romorantin-Lanthenay - Paris - Bruxelas – Lisboaensonho, 31.07.2018: Artigo inteligentíssimo. Dá gosto ler. Mas não refere, a não ser talvez subliminarmente, o perigo de entregar uma capacidade nuclear militar alemã a uma Alemanha sempre na iminência de se tornar novamente nazi. Ui, ui, ui! (Desculpem os calafrios.)

OPINIÃO
Agora? Celebremos a vida de CR95
Como no célebre filme de Capra, também sem Celeste Rodrigues o fado seria outra coisa. E bem mais pobre.
PÚBLICO, 2 de Agosto de 2018,
Em Maio, celebrámos com ela o fado. Hoje, despedimo-nos de Celeste Rodrigues com uma visão mais clara do que foi a sua vida, desse Fado Celeste que sublimou os fados (e foram tantos) que ao longo da vida cantou e gravou. Já aqui se escreveu que cantar, na sua idade, era uma bênção, uma bênção do fado que com ela ganhava uma sobriedade e um bom gosto dignos de nota. É certo que só depois da morte de Amália, sua irmã mais velha, ela assomou à ribalta, mas não é menos certo que tudo isso era já intrínseco à sua carreira. Reagindo à morte de Celeste, Rui Vieira Nery disse que “foi já nos últimos 20 anos, depois da morte da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste como uma personalidade autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E ganhou, no fim da vida, um reconhecimento que tardava.”
Isso é verdade, mas é curioso ver como, muitos anos antes, essa “sombra” já era uma evidência. Leia-se isto: “[Celeste Rodrigues] não tem o lugar que merece, única e simplesmente porque não quer, porque não acredita em si própria, porque se sente ofuscada pelo nome rutilante da sua irmã Amália.” Voz de um crítico? Não, pelo contrário. Apenas a introdução a um texto de uma revista de 36 páginas inteiramente dedicada a Celeste Rodrigues e publicada há meio século, no dia 1 de Maio de 1967. A revista, intitulada Álbum da Canção (pode ser vista e lida, na íntegra, no blogue Curiosidades de Imprensa e Afins), também serve de testemunho contrário: embora Celeste fosse “o mais antivedeta que possa imaginar-se”, já nessa altura tinha sido convidada para gravar na BBC de Londres e já tinha sido filmada por Ed Sullivan (em Lisboa!) para um dos seus célebres programas na televisão dos Estados Unidos. Não só isso. Por essa altura, já actuara no Brasil, na rádio e na televisão. “Como se vê, a minha carreira é muito simples. Limitei-me a cantar o fado, especialmente em casas típicas, e em programas da rádio e da televisão”, dizia ela no longo texto da revista. Recusou convites para o cinema e para o teatro (e se ela gostava de ambos, como então dizia num daqueles inquéritos “gosta/detesta” que a revista também publicava) porque não se sentia com coragem para enfrentar as câmaras ou pisar esses outros palcos. No fado sim, estava à vontade. “Canto porque gosto de cantar”, dizia, depois de afirmar: “Reconheço que não dou a importância que devia dar à minha carreira artística.” E foi nessa dualidade que sempre viveu, com o prazer da vida e deixando de lado o peso da fama. Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, para o PÚBLICO, em 2014, disse Celeste: “Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar.”
Não mudou. Porque, dando incessante alento às novas gerações de fadistas, manteve essa simplicidade altiva de quem nada deve mas muito sabe. Às vezes exagerando, como fez na tal revista de 1967, ao dizer isto ao entrevistador: “Ao pé de Amália, eu não sou nada. Se eu tivesse realmente talento, todos me notariam, quanto mais não fosse para comentarem: ‘Tem um certo talento’. Assim, como não tenho qualquer réstia de génio, limitam-se a dizer: ‘É a irmã da Amália’. E eu acho muito bem.” Mas a verdade é que Celeste tinha muitos talentos e isso será lembrado, justamente, por mais do que uma geração de músicos e de públicos. Portugal, que tanto celebra o seu CR7 (Cristiano Ronaldo) bem pode celebrar também a sua CR95 (Celeste Rodrigues, 95 anos) naquilo que lhe é devido. Porque, como no célebre filme de Capra, também sem ela o fado seria outra coisa. E bem mais pobre.
Lenda das Algas
Letra:            Laiert dos Santos Brito Neves
Música:         Jaime Mendes
Repertório:     Celeste Rodrigues
  
O mar espreguiçando-se na areia
Trouxe no seu espreguiçar
Algas envoltas em espuma
E quando à noite veio a maré cheia
Voltaram todas ao mar
Mas na praia ficou uma
   
Conta a lenda que essa alga pequenina
Que o destino ali deixou
Tomou forma e tomou vida
E quando um pescador por ali passou
Encontrou uma menina
Sobre a areia adormecida
   
E quem passar pela cabana do pescador
Há-de sentir um não-sei-quê de nostalgia
E aos seus ouvidos há-de chegar um rumor
Que tem do mar a estranha melancolia
que, cretaa sua figura serena, , ficar cansada mas
E nessas notas doloridas e plangentes
Talvez não saiba quem é que está a escutar
Talvez um búzio a soluçar notas dolentes
Ou talvez seja eu sozinha a soluçar

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