segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Lições de História de um mês de distância



6/8 // 6/7 - 2018: Ambos do Observador, o primeiro, de José Milhazes; o segundo de João Pedro Marques. Trata o primeiro da natural oclusão actual das teorias beneméritas favorecedoras do princípio libertário dos povos ocupados no século passado e que tão bons resultados alcançou, como tivemos e temos ocasião de verificar, actualmente, com o fenómeno migratório de alguns desses povos libertados, por vezes redundando em actos de terrorismo, outras vezes em naufrágios de perdição, para além de muitas outras misérias de que temos tido conhecimento. Instituída a libertação nos continentes, os povos instigadores dela trabalham hoje que se desunham para nelas colherem as mesmas riquezas que os povos de outrora nela colheram, mas agora metendo negócios mais confortáveis para as grandes potências, como a Rússia e o seu esclarecido presidente, como esclarece José Milhazes. Trata o segundo texto da manipulação feita por Fernanda Câncio, na esteira de outros espíritos sensíveis que fecham de preferência os olhos aos males presentes para acusarem raivosamente os seus antecessores históricos no fenómeno da escravatura, instituída pelos portugueses e largamente observada ao longo dos tempos de que há memória por muitos outros povos que até foram exterminadores de raças, lá pelas Américas, mas isso não conta para os abnegados anti-esclavagistas da nossa actualidade. João Pedro Marques aponta a unilateralidade do critério, com manipulação ignorante, dos dados. Duas boas lições de História, intervaladas de um mês, para os espíritos atentos à verdade esclarecida e não manipulada pelos habituais detractores da própria pátria, quando enviesada para um elitismo de má memória, embora, concedo, de má qualidade.
I - Vladimir Putin, novo descobridor de África e da América do Sul /premium
OBSERVADOR, 6/8/2018             
Putin apresenta-se mais bem preparado do que velha URSS e sublinha que os investimentos russos em África são para ter retorno financeiro e que a época do “internacionalismo proletário” passou à história.

Alvo de sanções cada vez mais gravosas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, o regime de Vladimir Putin tenta encontrar novos parceiros noutras paragens, nomeadamente em África e na América Latina. O princípio  da “nova” diplomacia russa é: “olhai para o que eu digo e não para o que eu faço”.
Além da participação na Cimeira dos BRICS em Joanesburgo, o Presidente russo aproveitou a oportunidade para se encontrar com dirigentes de vários países africanos, incluindo o seu homólogo angolano João Lourenço.
O tempo irá mostrar se os líderes dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) conseguirão alcançar um dos objectivos mais ousados dessa reunião: ultrapassar os países do G7 (grupo internacional composto por: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) quanto ao produto interno bruto conjunto lá para 2030 ou 2050. Por um lado, os países dos BRICS enfrentam graves problemas internos, o que pode dificultar essa tarefa, mas, por outro lado, a política externa norte-americana poderá ter consequências catastróficas nas economias ocidentais.
Em Moscovo nota-se um descontentamento e irritação crescentes face à “inoperância” dos governos dos países da UE que gozam das graças do Kremlin: Itália, Hungria e Grécia, face à política de sanções de Bruxelas. Na semana passada, a União Europeia anunciou novas sanções, desta vez contra seis empresas russas que participaram na construção da ponte entre o território russo e a península da Crimeia ocupada, mas os aliados de Putin não abriram a boca. No caso da Grécia, as relações bilaterais conheceram mesmo uma grave deterioração, pois as autoridades gregas decidiram expulsar dois diplomatas russos e não autorizaram a entrada a outros dois, dando a entender que não permitirão que os espiões russos se comportem como estivessem em casa.
Por isso, Vladimir Putin voltou a proclamar a política do regresso da Rússia a África. As tentativas da União Soviética de “meter uma lança em África” falharam, não tendo também a primeira tentativa do dirigente russo, encetada anteriormente,  sortido o efeito esperado. Desta vez, Putin apresenta-se melhor preparado e sublinha que os investimentos russos em África são para ter retorno financeiro e que a época do “internacionalismo proletário” passou à história.
Angola é um dos parceiros principais da Rússia no continente africano. As ligações dos dirigentes angolanos à Rússia - tanto o anterior como o actual Presidente estudaram aí - a participação dos soviéticos/russos na guerra civil do lado do MPLA e o alto nível de corrupção nos dois países contribuem para um bom relacionamento. Por exemplo, na Cimeira de Joanesburgo dos BRICS, Vladimir Putin revelou que, em 2017, Moscovo e Luanda assinaram um acordo para o fornecimento de equipamentos militares e armas russas no valor de três mil milhões de dólares. Uma soma significativa para um país que enfrenta graves dificuldades económicas e sociais.
Além das armas, homens de negócios russos ligados ao Kremlin avançam na exploração de diamantes e extracção de petróleo e gás. Moscovo tenta também vender centrais atómicas para o fabrico de energia, mas a falta de meios financeiros constitui um forte obstáculo. Por exemplo, a África do Sul tinha assinado um acordo com a Rússia, mas suspendeu a sua realização devido à grave crise económica que o país atravessa.
Uma das razões apontadas pelos dirigentes africanos para o estreitamento dos laços económicos e políticos com a Rússia consiste em que esta pode ser mais um jogador internacional importante no continente além dos Estados Unidos e da China, aumentando assim o poder de manobra deles. Resta saber se Moscovo dispõe de meios financeiros, políticos e tecnológicos para participar nessa competição.
E não se pode deixar de ter em conta os custos da corrupção em todos estes negócios. Por exemplo, em 2006, Hugo Chavez, Presidente da Venezuela, assinou um contrato com a empresa pública russa de exportação de armamentos no valor de 474 milhões de dólares, que previa a construção de uma fábrica de metralhadoras Kalachnikov (até 25 mil unidades por ano) e uma de munições para essas armas. Caracas pagou o dinheiro, mas a construção ainda não chegou ao fim e as autoridades russas procuram mais de um milhão de dólares que desapareceu nas teias da corrupção.
O assassinato de três jornalistas russos na República Centro-Africana, que ocorreu na semana passada, poderá também estar ligado à presença de empresas russas na exploração pouco transparente de diamantes nesse país. Eles pretendiam investigar o papel da famigerada “Wagner”, empresa que recruta mercenários russos para a realização de operações delicadas, no negócio dos diamantes.
Essa empresa, que está presente, pelo menos, no Leste da Ucrânia, na Síria, no Sudão e na República Centro-Africana, é dirigida por Evgueni Prigojin, conhecido como o “cozinheiro de Putin”, por ter a exclusividade do fornecimento de produtos alimentares ao Kremlin.
P.S. Fiquei muito espantado com toda a surpresa da opinião pública face à “telenovela Ricardo Robles e BE”. Mas será que ainda há muitos cidadãos que acreditem na sinceridade e honestidade da chamada extrema-esquerda? É o mesmo que acreditar que o PCP adquiriu todo o imobiliário que possui com as quotas dos militantes ou que só os políticos de direita são corruptos.

II - Portugal e a escravatura: dois mal-entendidos
OBSERVADOR, 6/7/2018
Se o fito de Fernanda Câncio for esclarecer a opinião pública, então deve parar um pouco para se informar melhor. Mas se a sua intenção for flagelar Portugal, então não precisa de se informar.

A jornalista Fernanda Câncio, que, em Abril de 2017, na sequência da ida de Marcelo Rebelo de Sousa à ilha de Gorée, no Senegal, foi uma das iniciadoras do debate em torno da questão da antiga escravatura, esteve longos meses alheada desse tema, mas regressou agora a ele num artigo publicado no DN, no qual fez duas afirmações enganadoras. Disse, nomeadamente,“que Portugal sozinho (…) foi responsável por quase metade dos 12,5 milhões de negros escravizados e traficados de África para as Américas entre 1501 e 1875”; e acrescentou que “o grosso desse recorde mundial decorreu entre 1826 e 1850, ou seja, já após a mítica abolição da escravatura por Pombal (1761)”.
Comecemos pelo fim. Há, da parte de Fernanda Câncio, um mal-entendido quanto ao alvará abolicionista de Pombal. O dito alvará nada tinha a ver com tráfico transatlântico, aplicava-se apenas a Portugal metropolitano. Mas não é mítico. Existiu e produziu efeito. Deixaram de se importar escravos para o território metropolitano e um alvará posterior (1773) extinguiu gradualmente o estado de escravidão em Portugal continental. Foram os primeiros passos no sentido da abolição que, no âmbito do império português, só décadas depois seriam continuados. Mas esses passos deram-se e não foram revertidos. Fernanda Câncio parece ignorar que as leis abolicionistas foram muitas vezes graduais e sucessivas, abolindo parcela a parcela. A própria Inglaterra, a incontestável campeã do abolicionismo, aboliu o seu tráfico de escravos em anos sucessivos e não de uma só vez. Fernanda Câncio parece ignorar, também, que na terminologia do século XVIII, a palavra escravatura significava geralmente tráfico de escravos (e não escravidão, como significa para nós). Daí, talvez, alguma da sua confusão.
Mas a mais importante e mais enganadora confusão de Fernanda Câncio é a que a leva a afirmar que Portugal terá sido o recordista de negros escravizados e traficados de África para as Américas, sendo que o grosso desse horrível recorde teria acontecido entre 1826 e 1850. A jornalista esqueceu-se que nesse período Portugal já não tinha colónias nas Américas. Como é do conhecimento geral, o Brasil tornara-se independente em 1825. O que quer dizer que o grosso do tráfico de escravos foi feito por e para um novo país chamado Brasil. Ou seja, não foi Portugal sozinho que escravizou e traficou 5,8 milhões de pessoas africanas. Muito menos foi Portugal sozinho que escravizou e traficou os 2,5 milhões de africanos que, no século XIX, atravessaram o Atlântico em direcção ao Rio, a Pernambuco, à Bahia. Foram Portugal, o Brasil e muitas entidades políticas africanas, que já tinham escravizado aquelas pobres pessoas antes de as venderem para a costa e, daí, para a coberta dos navios negreiros.
Dir-se-á que boa parte do tráfico de escravos realizado entre 1826 e 1850 foi levado a cabo por negreiros portugueses residentes em cidades brasileiras, homens como José Bernardino de Sá, Tomás da Costa Ramos, Manuel Pinto da Fonseca e vários outros; e que, num determinado período, entre os anos 1830-1840, esse tráfico foi em larga medida feito sob a protecção da bandeira portuguesa, que se obtinha no consulado português no Rio de Janeiro, por meios ilícitos e fraudulentos. Sim, é verdade que assim foi. Mas é igualmente verdade que o tráfico era feito com capital e gente de várias origens, com têxteis ingleses, em navios segurados em companhias de seguros europeias, etc. O tráfico nessa época envolvia pessoas e meios de muitas proveniências.
Para que se fique com uma ideia da complexidade e modernidade da actividade negreira no período em causa, valerá talvez a pena transcrever uma pequena passagem do livro de David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade:“No início de 1859, vários marítimos espanhóis e portugueses viajaram de comboio, de Londres a Hartlepool, um porto na costa nordeste inglesa, para aí receberem e tripularem o Wilhemina, um recém-construído navio a vapor. Navegaram nele até Cádiz e daí até à costa ocidental africana, onde adquiriram um carregamento de escravos que, depois, desembarcaram em Cuba. Nos quatro anos seguintes, este e outros vapores de construção inglesa fizeram várias viagens negreiras. Muitos desses navios eram propriedade de uma sociedade por acções com sede em Cuba e accionistas de várias nacionalidades. Tinha uma rede de agentes que ia de Nova Iorque a Quelimane. Os escravos levados para Cuba eram vendidos a produtores de açúcar que já utilizavam a mais sofisticada maquinaria de construção britânica, e o açúcar que produziam era vendido para os países mais desenvolvidos”.
Ou seja, no século XIX o tráfico transatlântico de escravos foi uma actividade multinacional, ligada a uma economia global e que se servia de tudo o que havia de mais moderno no mundo de então. Daí a enorme dificuldade em pôr-lhe fim, o que ainda assim se conseguiu, após décadas de esforços continuados de políticos, diplomatas e marinheiros europeus e americanos. Portugal teve uma pequena quota parte desse esforço. Mas foi um processo lento e complexo, e por isso o tráfico prosseguiu até à década de 1850, para o Brasil, e até à de 1860, para Cuba, apesar de já ser, em ambos os casos, ilegal.
Há dezenas de bons livros de História, escritos por historiadores competentes, onde qualquer pessoa pode aprofundar o seu conhecimento sobre esta matéria. Estranho, por isso, que Fernanda Câncio continue a reproduzir o mesmo mal-informado discurso, sem alterações assinaláveis de Abril de 2017 até agora. Fala em mitos e exige que se conte a verdadeira história, mas não parece estar a par da verdade histórica e não se dá conta de que ela própria perpetua mitos que invertem os mitos que diz combater. É interessante ver que no quadro quantitativo do tráfico transatlântico de escravos em que Fernanda Câncio se apoiou está bem explícito que se trata de números de Portugal e do Brasil, como pode verificar-se neste link. Mas, no seu artigo no DN, Câncio cortou a referência ao Brasil e Portugal ficou “sozinho” — como ela própria diz — no pelourinho da opinião pública. Estou convencido de que o corte da referência ao Brasil não foi intencional ou malicioso, com o propósito de manipular o leitor. Julgo, isso sim, que Fernanda Câncio o terá feito devido a uma mistura de desconhecimento dos factos e de preconceito ideológico.
E é sobretudo isso que estes quinze meses de debate sobre a antiga escravatura nos têm mostrado à exaustão: gente cheia de ideias apressadas, que mal conhece os factos de que fala e que tem toneladas de preconceitos ideológicos. O diálogo com essas pessoas é difícil e improdutivo, porque de um lado está o saber histórico e do outro a ideologia política e os preceitos morais.
Se o fito de Fernanda Câncio for esclarecer a opinião pública, então deve parar um pouco para se informar melhor. Mas se a sua intenção for flagelar Portugal, torná-lo responsável por muito do que de mau existiu na história, fazê-lo campeão das iniquidades, se o seu propósito for culpabilizar os actuais portugueses, fazendo-os crer que os seus antepassados eram invulgarmente nocivos e cruéis, então não precisa de se informar, é só continuar na mesma senda.
Historiador e romancista





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