6/8 // 6/7 - 2018: Ambos do Observador,
o primeiro, de José Milhazes; o segundo de João Pedro Marques.
Trata o primeiro da natural oclusão actual das teorias beneméritas
favorecedoras do princípio libertário dos povos ocupados no século passado e
que tão bons resultados alcançou, como tivemos e temos ocasião de verificar,
actualmente, com o fenómeno migratório de alguns desses povos libertados, por
vezes redundando em actos de terrorismo, outras vezes em naufrágios de
perdição, para além de muitas outras misérias de que temos tido conhecimento. Instituída
a libertação nos continentes, os povos instigadores dela trabalham hoje que se
desunham para nelas colherem as mesmas riquezas que os povos de outrora nela
colheram, mas agora metendo negócios mais confortáveis para as grandes
potências, como a Rússia e o seu esclarecido presidente, como esclarece José Milhazes. Trata o segundo texto da
manipulação feita por Fernanda Câncio,
na esteira de outros espíritos sensíveis que fecham de preferência os olhos aos
males presentes para acusarem raivosamente os seus antecessores históricos no
fenómeno da escravatura, instituída pelos portugueses e largamente observada ao
longo dos tempos de que há memória por muitos outros povos que até foram exterminadores
de raças, lá pelas Américas, mas isso não conta para os abnegados anti-esclavagistas
da nossa actualidade. João Pedro Marques
aponta a unilateralidade do critério, com manipulação ignorante, dos dados.
Duas boas lições de História, intervaladas de um mês, para os espíritos atentos
à verdade esclarecida e não manipulada pelos habituais detractores da própria
pátria, quando enviesada para um elitismo de má memória, embora, concedo, de má
qualidade.
I
- Vladimir Putin, novo descobridor de África e da América do Sul /premium
OBSERVADOR,
6/8/2018
Putin apresenta-se mais bem preparado
do que velha URSS e sublinha que os investimentos russos em África são para ter
retorno financeiro e que a época do “internacionalismo proletário” passou à
história.
Alvo de sanções cada vez
mais gravosas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, o regime de
Vladimir Putin tenta encontrar novos parceiros noutras paragens, nomeadamente
em África e na América Latina. O princípio da “nova” diplomacia russa é: “olhai para o que eu digo e não para o que eu
faço”.
Além da participação na Cimeira dos BRICS em Joanesburgo, o
Presidente russo aproveitou a oportunidade para se encontrar com dirigentes de
vários países africanos, incluindo o seu homólogo angolano João Lourenço.
O tempo irá mostrar se os
líderes dos BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) conseguirão alcançar um
dos objectivos mais ousados dessa reunião: ultrapassar os países do G7 (grupo internacional composto por: Alemanha, Canadá, Estados Unidos,
França, Itália, Japão e Reino Unido) quanto ao produto interno bruto conjunto lá
para 2030 ou 2050. Por
um lado, os países dos BRICS enfrentam graves problemas internos, o que pode
dificultar essa tarefa, mas, por outro lado, a política externa norte-americana
poderá ter consequências catastróficas nas economias ocidentais.
Em Moscovo nota-se um
descontentamento e irritação crescentes face à “inoperância” dos governos dos
países da UE que gozam das graças do Kremlin: Itália, Hungria e Grécia, face à política de sanções de Bruxelas.
Na semana passada, a União Europeia anunciou novas sanções, desta vez contra
seis empresas russas que participaram na construção da ponte entre o território
russo e a península da Crimeia ocupada, mas os aliados de Putin não abriram a
boca. No caso da Grécia, as relações bilaterais conheceram mesmo uma grave
deterioração, pois as autoridades gregas decidiram expulsar dois diplomatas
russos e não autorizaram a entrada a outros dois, dando a entender que não
permitirão que os espiões russos se comportem como estivessem em casa.
Por isso, Vladimir Putin voltou a proclamar a política do regresso da
Rússia a África. As tentativas da União Soviética de “meter uma lança em
África” falharam, não tendo também a primeira tentativa do dirigente russo,
encetada anteriormente, sortido o efeito esperado. Desta vez, Putin
apresenta-se melhor preparado e sublinha que os investimentos russos em África
são para ter retorno financeiro e que a época do “internacionalismo proletário”
passou à história.
Angola é um dos parceiros principais da Rússia no continente africano. As
ligações dos dirigentes angolanos à Rússia - tanto o anterior como o actual
Presidente estudaram aí - a participação dos soviéticos/russos na guerra civil
do lado do MPLA e o alto nível de corrupção nos dois países contribuem para um
bom relacionamento. Por exemplo, na Cimeira de Joanesburgo
dos BRICS, Vladimir Putin revelou que, em 2017, Moscovo e Luanda assinaram um
acordo para o fornecimento de equipamentos militares e armas russas no valor de
três mil milhões de dólares. Uma soma significativa para um país que enfrenta
graves dificuldades económicas e sociais.
Além das armas, homens de negócios russos ligados ao Kremlin avançam na
exploração de diamantes e extracção de petróleo e gás. Moscovo tenta também
vender centrais atómicas para o fabrico de energia, mas a falta de meios
financeiros constitui um forte obstáculo. Por exemplo, a África do Sul tinha
assinado um acordo com a Rússia, mas suspendeu a sua realização devido à grave
crise económica que o país atravessa.
Uma das razões apontadas pelos dirigentes africanos para o
estreitamento dos laços económicos e políticos com a Rússia consiste em que
esta pode ser mais um jogador internacional importante no continente além dos
Estados Unidos e da China, aumentando assim o poder de manobra deles. Resta
saber se Moscovo dispõe de meios financeiros, políticos e tecnológicos para
participar nessa competição.
E não se pode deixar de ter em
conta os custos da corrupção em todos
estes negócios. Por exemplo, em 2006, Hugo Chavez, Presidente da Venezuela,
assinou um contrato com a empresa pública russa de exportação de armamentos no
valor de 474 milhões de dólares, que previa a construção de uma fábrica de
metralhadoras Kalachnikov (até 25 mil unidades por ano) e uma de munições para
essas armas. Caracas pagou o dinheiro, mas a construção ainda não chegou ao fim
e as autoridades russas procuram mais de um milhão de dólares que desapareceu
nas teias da corrupção.
O assassinato de três
jornalistas russos na República Centro-Africana, que ocorreu na semana passada,
poderá também estar ligado à presença de empresas russas na exploração pouco
transparente de diamantes nesse país. Eles pretendiam investigar o papel da
famigerada “Wagner”, empresa que recruta mercenários russos para a realização
de operações delicadas, no negócio dos diamantes.
Essa empresa, que está
presente, pelo menos, no Leste da Ucrânia, na Síria, no Sudão e na República
Centro-Africana, é dirigida por Evgueni Prigojin, conhecido como o “cozinheiro
de Putin”, por ter a exclusividade do fornecimento de produtos alimentares ao
Kremlin.
P.S. Fiquei
muito espantado com toda a surpresa da opinião pública face à “telenovela
Ricardo Robles e BE”. Mas será que ainda há muitos cidadãos que acreditem na
sinceridade e honestidade da chamada extrema-esquerda? É o mesmo que acreditar
que o PCP adquiriu todo o imobiliário que possui com as quotas dos militantes
ou que só os políticos de direita são corruptos.
II - Portugal
e a escravatura: dois mal-entendidos
OBSERVADOR, 6/7/2018
Se o fito de Fernanda Câncio
for esclarecer a opinião pública, então deve parar um pouco para se informar
melhor. Mas se a sua intenção for flagelar Portugal, então não precisa de se
informar.
A jornalista Fernanda Câncio, que, em Abril de 2017, na sequência
da ida de Marcelo Rebelo de Sousa à ilha de Gorée, no Senegal, foi uma das
iniciadoras do debate em torno da questão da antiga escravatura, esteve longos
meses alheada desse tema, mas regressou agora a ele num
artigo publicado no DN, no
qual fez duas afirmações enganadoras. Disse, nomeadamente,“que Portugal sozinho
(…) foi responsável por quase metade dos 12,5 milhões de negros escravizados e
traficados de África para as Américas entre 1501 e 1875”; e acrescentou que “o
grosso desse recorde mundial decorreu entre 1826 e 1850, ou seja, já após a
mítica abolição da escravatura por Pombal (1761)”.
Comecemos pelo fim. Há, da parte de Fernanda Câncio, um
mal-entendido quanto ao alvará abolicionista de Pombal. O dito alvará nada
tinha a ver com tráfico transatlântico, aplicava-se apenas a Portugal
metropolitano. Mas não é mítico. Existiu e produziu efeito. Deixaram de se
importar escravos para o território metropolitano e um alvará posterior (1773)
extinguiu gradualmente o estado de escravidão em Portugal continental. Foram os
primeiros passos no sentido da abolição que, no âmbito do império português, só
décadas depois seriam continuados. Mas esses passos deram-se e não foram
revertidos. Fernanda Câncio parece ignorar que as leis abolicionistas
foram muitas vezes graduais e sucessivas, abolindo parcela a parcela. A própria
Inglaterra, a incontestável campeã do abolicionismo, aboliu o seu tráfico de
escravos em anos sucessivos e não de uma só vez. Fernanda Câncio parece
ignorar, também, que na terminologia do século XVIII, a palavra escravatura
significava geralmente tráfico de escravos (e não escravidão, como significa
para nós). Daí, talvez, alguma da sua confusão.
Mas a mais importante e
mais enganadora confusão de Fernanda Câncio é a que a leva a afirmar que
Portugal terá sido o recordista de negros escravizados e traficados de África
para as Américas, sendo que o grosso desse horrível recorde teria acontecido
entre 1826 e 1850. A jornalista
esqueceu-se que nesse período Portugal já não tinha colónias nas Américas.
Como é do conhecimento geral, o Brasil tornara-se independente em 1825. O que
quer dizer que o grosso do tráfico de escravos foi feito por e para um novo país chamado Brasil.
Ou seja, não foi Portugal sozinho que escravizou e traficou 5,8 milhões de
pessoas africanas. Muito menos foi Portugal sozinho que escravizou e traficou
os 2,5 milhões de africanos que, no século XIX, atravessaram o Atlântico em
direcção ao Rio, a Pernambuco, à Bahia.
Foram Portugal, o Brasil e muitas entidades políticas africanas, que já tinham
escravizado aquelas pobres pessoas antes de as venderem para a costa e, daí,
para a coberta dos navios negreiros.
Dir-se-á que boa parte
do tráfico de escravos realizado entre 1826 e 1850 foi levado a cabo por
negreiros portugueses residentes em cidades brasileiras, homens como José
Bernardino de Sá, Tomás da Costa Ramos, Manuel Pinto da Fonseca e vários
outros; e que, num determinado período, entre os anos 1830-1840, esse tráfico
foi em larga medida feito sob a protecção da bandeira portuguesa, que se
obtinha no consulado português no Rio de Janeiro, por meios ilícitos e
fraudulentos. Sim, é verdade que assim foi. Mas é igualmente verdade que o tráfico era feito com capital e gente de
várias origens, com têxteis ingleses, em navios segurados em companhias de
seguros europeias, etc. O tráfico nessa época envolvia pessoas e meios de
muitas proveniências.
Para que se fique com
uma ideia da complexidade e modernidade da actividade negreira no período em
causa, valerá talvez a pena transcrever uma pequena passagem do livro de David
Eltis, Economic Growth and the Ending of the
Transatlantic Slave Trade:“No início de 1859, vários
marítimos espanhóis e portugueses viajaram de comboio, de Londres a Hartlepool,
um porto na costa nordeste inglesa, para aí receberem e tripularem o Wilhemina, um recém-construído
navio a vapor. Navegaram nele até Cádiz e daí até à costa ocidental africana,
onde adquiriram um carregamento de escravos que, depois, desembarcaram em Cuba.
Nos quatro anos seguintes, este e outros vapores de construção inglesa fizeram
várias viagens negreiras. Muitos desses navios eram propriedade de uma
sociedade por acções com sede em Cuba e accionistas de várias nacionalidades.
Tinha uma rede de agentes que ia de Nova Iorque a Quelimane. Os escravos levados
para Cuba eram vendidos a produtores de açúcar que já utilizavam a mais
sofisticada maquinaria de construção britânica, e o açúcar que produziam era
vendido para os países mais desenvolvidos”.
Ou seja, no século XIX o tráfico transatlântico de
escravos foi uma actividade multinacional, ligada a uma economia global e que
se servia de tudo o que havia de mais moderno no mundo de então. Daí a
enorme dificuldade em pôr-lhe fim, o que ainda assim se conseguiu, após décadas
de esforços continuados de políticos, diplomatas e marinheiros europeus e
americanos. Portugal teve uma pequena quota parte desse esforço. Mas foi
um processo lento e complexo, e por isso o tráfico prosseguiu até à década de
1850, para o Brasil, e até à de 1860, para Cuba, apesar de já ser, em ambos os
casos, ilegal.
Há dezenas de bons
livros de História, escritos por historiadores competentes, onde qualquer
pessoa pode aprofundar o seu conhecimento sobre esta matéria. Estranho, por
isso, que Fernanda Câncio continue a reproduzir o mesmo mal-informado discurso,
sem alterações assinaláveis de Abril de 2017 até agora. Fala em mitos e exige que se conte a
verdadeira história, mas não parece estar a par da verdade histórica e não se
dá conta de que ela própria perpetua mitos que invertem os mitos que diz
combater. É interessante ver que no quadro quantitativo do tráfico
transatlântico de escravos em que Fernanda Câncio se apoiou está bem explícito
que se trata de números de Portugal e do Brasil, como pode verificar-se neste link. Mas, no seu artigo no DN, Câncio cortou a referência ao
Brasil e Portugal ficou “sozinho” — como ela própria diz — no pelourinho da
opinião pública. Estou convencido de que o corte da referência ao
Brasil não foi intencional ou malicioso, com o propósito de manipular o leitor.
Julgo, isso sim, que Fernanda Câncio o terá feito devido a uma mistura de
desconhecimento dos factos e de preconceito ideológico.
E é sobretudo isso que
estes quinze meses de debate sobre a antiga escravatura nos têm mostrado à
exaustão: gente cheia de ideias
apressadas, que mal conhece os factos de que fala e que tem toneladas de
preconceitos ideológicos. O diálogo com essas pessoas é difícil e improdutivo,
porque de um lado está o saber histórico e do outro a ideologia política e os
preceitos morais.
Se o fito de Fernanda
Câncio for esclarecer a opinião pública, então deve parar um pouco para se
informar melhor. Mas se a sua intenção for flagelar Portugal, torná-lo
responsável por muito do que de mau existiu na história, fazê-lo campeão das
iniquidades, se o seu propósito for culpabilizar os actuais portugueses,
fazendo-os crer que os seus antepassados eram invulgarmente nocivos e cruéis,
então não precisa de se informar, é só continuar na mesma senda.
Historiador e romancista
Nenhum comentário:
Postar um comentário