A dar conta de duplicidades, de necessidades de concertações no
emaranhado labiríntico do cargo, numa geringonça atamancada artreiramente às
pressas, mas, no final de contas, de uma sensatez a que não é alheio o seu novo
cargo europeu. Um texto de Paulo Tunhas
sério e certeiro, um de João Miguel
Tavares de maior leveza analítica, mas igualmente sagaz, seguido de dois lúcidos
comentários. E em meio da divagação, a competente responsabilização de António
Costa e seus sequazes, nas suas astúcias interactivas.
I - GRÉCIA
Kalimera, Dr. Centeno! /premium
OBSERVADOR, 23/8/2018
Mário Centeno prestou-se ao pouco bonito jogo da mentira descarada, mas
a ideia foi-lhe certamente vendida com belas palavras, daquelas de que a
esquerda tem o segredo.
O vídeo em que Mário Centeno, presidente do Eurogrupo, tece elogios aos
efeitos do “programa de austeridade” grego, criou entre nós a polémica que se
sabe. A esquerda radical do PS (João Galamba, em primeiro lugar), com a fartura
de indignação virtuosa com que costuma apresentar-se ao público, quando não se
baba de admiração pelo génio de António Costa, viu no vídeo horrores
inomináveis, no que foi logo acompanhada pelo Bloco, dela distinto quase apenas
nominalmente, e, de forma apesar de tudo mais sóbria, pelo PCP. Centeno teria
defendido políticas injustificáveis, cruéis, destruidoras e selvagens
destinadas a confortar os sinistros interesses dos “mercados” e a humilhar o
martirizado povo grego. Exactamente o que havia logo dito o fatal Varoufakis,
com a diferença que ao desprezo deste último se acrescentava a dor incontida
por Mário Centeno, além de presidente do Eurogrupo, ser igualmente o nosso
ministro das Finanças, isto é, ministro de um governo do PS, apoiado pelo Bloco
e pelo PCP, que desde o primeiro momento não só viu no Syriza revolucionário
dos seus inícios uma maravilhosa esperança para o mundo como não deixou de
insistir no carácter anti-austeritário (anti-troika) das suas próprias
políticas, em tudo contrárias às do precedente governo de Pedro Passos Coelho,
notório lacaio desses mesmos interesses de que, para grande desgosto das
esquerdas, Mário Centeno aparece agora o grande campeão.
Este drama das esquerdas, que em si é absolutamente desinteressante e
que se limita a revelar-nos mais uma vez a irresponsabilidade do seu discurso
habitual, tem no entanto um mérito indisputável: o de mostrar a extensão da
incalculável hipocrisia em que assenta não só a origem do governo de António
Costa como praticamente a totalidade da sua acção governativa. E não só a
hipocrisia do governo como a dos seus aliados parlamentares (Bloco e PC), que,
para se manterem encostados ao poder, se prestam sempre, sem pestanejar, à
cíclica encenação de virgindades recicladas que, felizmente, não impedem a
realização de legítimos anseios que a concepção da geringonça desde o início se
destinou a satisfazer. Uma hipocrisia que não faz grande sentido condenar
moralmente, mas que faz todo o sentido condenar politicamente, porque traz
consigo a degradação da sociedade, uma degradação que só se pode avolumar e que
iremos todos pagar um dia por um preço difícil de imaginar.
Em tudo isto, Mário Centeno é o menos. É claro que ele andou todo o
tempo a fazer o contrário do que dizia e que o recente vídeo é perfeitamente
coerente com o que ele fez e faz cá por casa: a “austeridade”, com tudo o que
ela acarreta, foi e é necessária e imprescindível à sobrevivência do país. O
ele dizer o contrário do que fazia, proclamando alto e bom som o célebre “virar
da página da austeridade” e a turpitude das políticas do governo anterior,
compreende-se facilmente pela sua decisão de cumprir a estratégia do seu chefe
António Costa, que precisou de a inventar para sobreviver politicamente.
Centeno prestou-se ao pouco bonito jogo da mentira descarada, mas a ideia
foi-lhe certamente vendida com belas palavras, daquelas de que a esquerda tem o
segredo e que gozam, por razões que, de resto, conviria explorar, de um sucesso
praticamente garantido. Há cinismo na sua atitude? É claro que há, mas é um
cinismo que vem de cima.
De António Costa, evidentemente. De Sócrates, quando tudo o que de
catastrófico se avizinhava furava os olhos de evidente, costumava-se elogiar,
com indisfarçada admiração, o facto da sua “esperteza”. A “esperteza” é uma
característica que qualquer um pode compreender, já que não implica nenhuma
qualidade rara do espírito e aproxima o poderoso do cidadão comum, que também
não desdenha exibi-la, na medida das suas possibilidades, quando necessário. A
“habilidade” de António Costa é a legítima herdeira da “esperteza” de Sócrates.
Como esta, representa a capacidade de recorrer a ficções sempre que tal recurso
seja pagante e de saber apresentar tais ficções como algo de coerente e capaz
de sugerir a aparência da realidade. Mais uma vez, algo que o cidadão comum não
desconhece por inteiro e cuja necessidade já se lhe apresentou na sua vida
privada várias vezes.
A “habilidade” de António Costa residiu desde o princípio na capacidade
de proclamar o “fim da austeridade”, sabendo perfeitamente que a dita
“austeridade” havia sido inevitável (e em larga medida inevitável em
consequência do delírio das políticas de Sócrates, do qual chegou a ser o
“número dois”) e continuaria a sê-lo por muitos e bons anos. E de agir,
obedecendo ao princípio da realidade, mantendo a “austeridade”, deslocando os
meios do seu exercício, como se não existisse uma qualquer contradição entre as
palavras e os actos. E não se pode dizer que não tenha sido sucesso. Com o
auxílio dos palhaços pobres do seu circo (o Bloco e o PC) e de alguns histriões
mais vocais do seu próprio partido, como João Galamba, bem como de uma
comunicação social doce e respeitosa, a ficção aguentou-se e aguenta-se. A
partida de Pedro Passos Coelho do PSD, bem como, começa a tornar-se palpável, o
advento de Rui Rio à frente deste, são os sinais negativos desse sucesso.
A questão, no entanto, merece ser colocada: será que é bom viver assim,
na mentira e na duplicidade? Mais: será que se pode viver assim
indefinidamente? A resposta parece ser negativa nos dois casos. Há um certo
pudor, que é também uma virtude política, que é indispensável manter para que a
sociedade funcione de um modo aceitável. E uma das manifestações desse pudor é
a procura de, na medida do possível, não procurar envolver o mundo que nos
rodeia num manto de ficções e a busca de um discurso político que se mantenha
próximo da realidade. Pedro Passos Coelho, para surpresa de muitos, alçou-se,
em circunstâncias particularmente difíceis, a esse patamar. António Costa
escolheu, por necessidade política, o trajecto inverso: o da ficção e da
negação, por palavras, de uma realidade que os seus actos não desmentem, muito
pelo contrário. E exemplos disto não faltam.
O vídeo de Centeno tinha, é verdade, algumas particularidades que é
impossível não notar. Em primeiro lugar, uma espécie de paternalismo que mostra
não só uma falta de jeito sua para aquelas coisas como algo que resulta da
própria evolução da União Europeia. Mas é preciso distinguir o essencial do
acessório. E aqui o estilo de Centeno e da União Europeia relevam do acessório.
O essencial reside mesmo no facto de a “austeridade” ter sido consequência directa,
na Grécia como em Portugal, do uso e abuso de políticas suicidárias. E, no que
toca a Portugal, na exibição o mais clara possível da mistificação em que o
governo de Costa, com a prestimosa ajuda do Bloco e do PC, nos anda a fazer
viver. Tudo isto é óbvio? Claro que é. Mas há certas alturas em que repetir o
óbvio do óbvio é a única coisa que faz sentido, sobretudo quando ele nos é
servido de bandeja num vídeo como este. Sempre que, pela manhãzinha, tivermos
notícias de mais problemas com a CP, com os hospitais, com a educação e por aí
adiante, não devemos hesitar na cordial saudação: Kalimera, Dr. Centeno! E, já
agora, ainda mais simpaticamente: Kalimera, Dr. Costa!
II - OPINIÃO
O vídeo onde Mário Centeno aparece todo nu
Metaforicamente falando, podemos admitir que
Mário Centeno apareceu realmente em pelota naquele vídeo – no sentido em que
interpretou a crise grega (e, por extensão, a portuguesa) com uma transparência
inédita.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 23 de
Agosto de 2018
Metaforicamente
falando, podemos admitir que Mário Centeno apareceu realmente em pelota naquele
vídeo – no sentido em que interpretou a crise grega (e, por extensão, a
portuguesa) com uma transparência inédita. Ora, revelar intimidades económicas e políticas é pornografia para as esquerdas que
nos governam. Tendo em conta que eles inventaram uma narrativa para eleitores
com idade mental de cinco anos – que diz que a culpa disto tudo foi da troika e de Passos Coelho,
porque se não tivessem sido eles o país estaria espectacular –, qualquer
complexificação do discurso é inadequada para a nossa política de escola
primária. O que os tuítes de João Galamba querem dizer é isto: “Veste-te, Mário,
volta a pôr a roupa do português brutalmente oprimido, que isto assim não pode
ser.”
Mas não só pode como deve – até porque não
tem sido de outra maneira. Eu sei que parece que existe um Mr. Mário, ministro
das Finanças de Portugal, e um Dr. Centeno, presidente do Eurogrupo, já que as
coisas que um faz lá fora não coincidem com as coisas que o outro diz cá
dentro. Só que não há dois – nem nunca houve. Sim, o vídeo do Dr. Centeno
poderia ter sido escrito por Vítor Gaspar. Mas isso é tão surpreendente quanto
descobrir que José Sócrates é um bocado mentiroso e Bruno de Carvalho tem
problemas de equilíbrio emocional. Toda a actuação de Centeno ao longo dos
últimos três anos tem sido no sentido não só de cumprir as metas europeias,
como de ir além delas. E ainda bem. Só que – lá está – não se pode dizer isto
em voz alta, nem em línguas perceptíveis. O erro de Centeno foi ter falado
inglês. Tivesse optado pelo grego e ninguém daria conta.
Se
o vídeo de Mário Centeno tem pouco para dizer aos gregos, ele tem muito para
dizer aos portugueses. A certa altura, Centeno afirma isto: “Eu sei que estas
melhorias ainda não são sentidas por todos os segmentos da população [grega]
mas, gradualmente, passarão a ser.” Reparem como é uma variação da famosa frase
de Luís Montenegro, de Fevereiro de 2014: “A vida das pessoas não está
melhor mas a do País está muito melhor.” Lembram-se dos
rios de tinta que ela fez correr? A insensibilidade, a falta de contacto com a
realidade, a crueldade dos sociais-democratas! E vai-se a ver, Mário Centeno
teve 65 segundos de lucidez onde disse exactamente o mesmo, responsabilizou um
país intervencionado pelo desastre da sua política económica e aconselhou-o a
ter mais juízo daqui para a frente. Percebo que isso irrite imenso Bloco, PCP e
boa parte do PS. Mas eu gosto muito. Antes um Mário Centeno descascado do que
maquilhado com quilos de demagogia, como é costume.
Dois dos comentários:
Macuti,
23.08.2018: Centeno
limitou-se a dizer a verdade. O que se lamenta é nunca se ter ouvido uma
palavra de reconhecimento de Costa ou de Centeno sobre a saída conseguida por
Portugal, em menos tempo e com muito menos austeridade, o que motivou o
reconhecimento da comunidade internacional. Aliás, fê-lo, mas de forma
escondida, numa reunião com empresários chineses que queriam investir em
Portugal.
Luis Fonte,
23.08.2018: A
bem dizer, tentar passar a mensagem de que a troika nos salvou de males
maiores, é como tentar explicar à extrema-esquerda que a democracia conquistada
no 25A (na realidade mais no 25 de Novembro) não devia ter implicado
nacionalizações que destruíram o tecido industrial e interrompeu crescimentos
médios de 7% ao ano... jamais vão aceitar! Mas sem os empréstimos da troica, e
sem o aperto do cinto imposto, hoje teríamos os empregados públicos e
pensionistas a receber metade e o resto da população a viver a meio caminho
entre o actual e a Venezuela. O positivo é que perceberíamos todos os reais
efeitos da governação socialista de Guterres e Sócrates entre 1995 e 2011.
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