Tal é a de Aretha Franklin, que morreu hoje, 16/8/18, morte a que os
noticiários deram relevo, e assim os cronistas, como Luís Miguel Queirós em biografia expressiva, que reproduzo. Como a
voz que a definiu, que acabo de escutar na Internet, e recordei com a surpresa
de um conhecimento antigo. Sim, uma intérprete conhecida, que acompanhou, de
menina, Luther King, que lutou pelos direitos dos seus, em companhia de outros
acólitos, que acompanhou a eleição de Barack Obama, e tudo isso nos é mostrado
no artigo de Luís Miguel Queirós,
que a homenageia. Aretha Franklin, «uma cantora e compositora norte-americana de
gospel, R&B e soul que virou ícone da música negra» segundo a Wikipédia.
Escutei-a no YouTube, relembrando uma voz escutada distraidamente, no acaso
dos programas musicais. Mas em breve passei para a profundidade graciosa ou
sentida de Amália e de Ana Moura, qui me
bouleversent, tal como julgo que poderiam também revolucionar o mundo, pela
sua beleza – de voz, de presença, de graciosidade, de mensagem. Beleza que
perdurará na história, tal como a de tantos cantores, por esse mundo além. Mas
estes são nossos e bons em qualquer parte da Terra.
"Quando Aretha Franklin canta, é a
história americana que jorra"
Muito próxima de Martin Luther
King e de outras figuras da luta pelos direitos civis dos negros, Aretha
Franklin viu a sua versão de Respect tornar-se, em 1967, um hino
desse movimento. Quase meio século depois, o primeiro presidente afro-americano
dos Estados Unidos, Barack Obama, ouviu-a cantar Natural woman e não
conseguiu conter as lágrimas.
16 de Agosto de 2018
Filha do pastor baptista C.
L. Franklin (1915-1984), figura de relevo do movimento de luta contra a
discriminação dos negros americanos nos anos 50 e 60, Aretha Franklin conviveu desde muito nova
com Martin Luther King, que era amigo da família, e chegou mesmo a acompanhá-lo
em digressões pelo país, cantando em serviços religiosos e comícios. “Tinha
acabado de deixar a escola, via como era importante o que o Dr. King estava a
tentar fazer, e pedi ao meu pai para viajar com ele”, lembrou a cantora em
2014, numa entrevista televisiva conduzida pelo reverendo Al Sharpton.
A cantora teria então 15
anos, a idade com que abandonou os estudos, mas já era mãe de um filho e
lançara no ano anterior o seu primeiro álbum, Songs of Faith,
gravado na igreja do pai, a New Bethel Baptist Church em Detroit, no Michigan.
Alguns anos depois, em Junho de 1963, os reverendos Franklin e King desfilariam
juntos na marcha pelos direitos civis que o primeiro organizou em Detroit, e
que serviu ao segundo como balão de
ensaio para testar o célebre discurso “I have a dream”, com o qual iria
depois galvanizar, no final de Agosto, os 250 mil manifestantes que
participaram na marcha sobre Washington.
O prestígio de C. L.
Franklin – diziam que tinha uma voz que valia milhões, e o reverendo
empregava-a proveitosamente nos seus sermões, tão apreciados que começaram a
ser difundidos na rádio e gravados em disco – atraiu também a sua casa alguns
dos cantores mais envolvidos na luta contra a segregação racial, como Harry
Belafonte, Mahalia Jackson ou Sam Cooke, com os quais Aretha privou desde muito
nova.
“A
música é a alma do movimento”, escreveu o próprio Luther King. E tendo em
conta o seu contexto familiar e o seu precoce e extraordinário talento como
cantora, Aretha Franklin estava
destinada a tornar-se, também ela, um ícone (apetece acrescentar “natural”) da
luta pelos direitos civis. Mas se indiscutivelmente o foi, acabou por devê-lo
menos ao seu efectivo activismo juvenil do que ao facto de a sua versão
de Respect, um tema de Otis Redding que gravou em 1967,
se ter transformado do dia para a noite não apenas num hino feminista, mas
também num protesto contra a discriminação racial.
Uma circunstância que a
cantora garante não ter pretendido ou antecipado, mas que resulta quer das
cirúrgicas alterações que ela e a sua irmã Carolyn introduziram na letra
original, quer da intensidade da sua interpretação, que transformaram mais uma
canção sobre o homem que trabalha no duro para trazer dinheiro para casa, e
apenas exige em troca que a mulher o respeite, numa espécie de grito de guerra
que captava exemplarmente o sentimento de urgência de um tempo de mudança.
Respect foi lançado em 1967, num
país onde se sucediam as manifestações contra a guerra do Vietname, dezenas de
milhares de hippies convergiam para São
Francisco, o epicentro do tsunami psicadélico, as lutas pela igualdade de
género davam os primeiros passos e os motins raciais incendiavam as cidades
americanas: os mais violentos ocorreram precisamente na Detroit de Aretha
Franklin, onde no final de Julho desse ano morreram 43 pessoas e centenas
ficaram feridas.
A change is gonna come, previra Sam Cooke em 1963, na canção que
escreveu após ter sido impedido de entrar num hotel só para brancos. Times
they are a changin’, confirmaria Bob Dylan no ano seguinte. Mas
em 1967 ainda havia muito por mudar: I Never Loved a
Man the Way I Love You, o álbum que tinha Respect como
tema de abertura, fora já lançado há alguns meses quando o Supremo Tribunal dos
Estados Unidos aprovou a histórica decisão de considerar inconstitucional toda
a legislação estadual que proibisse os casamentos inter-raciais.
"O Dr. King mudou a minha vida"
I Never Loved a Man the Way I
Love You,
primeiro álbum da cantora na Atlantic Records, teve um extraordinário
sucesso – em Maio, o single Respect já estava no topo dos
mais vendidos – e consagrou Aretha
Franklin como uma das grandes cantoras do seu tempo. Quando esta
regressa a Detroit, a 16 de Fevereiro de 1968, para actuar no Cobo Hall, é já
uma estrela mundial. O concerto, ao qual assistirão 12 mil pessoas, é de tal
ordem que o presidente da Câmara não se contém e institui logo ali a data de 16
de Fevereiro como o “dia de Aretha Franklin”. Mas a subida ao palco que causou
maior impacto não foi a sua, antes a de Martin Luther King, que voou
propositadamente para Detroit para entregar à cantora um prémio em
reconhecimento do seu contributo para a definição da identidade afro-americana.
O líder do movimento dos
direitos civis é assassinado meio ano mais
tarde, em Abril de 1968, e é Aretha Franklin quem canta no seu
funeral o hino Take my
hand, precious Lord. “Era
um dos seus favoritos, e pedia-me sempre que o cantasse quando viajávamos
juntos”, justificará mais tarde.
Em Agosto desse ano, já
depois do assassinato de Robert Kennedy, em Junho, Aretha Franklin cantou o
hino dos Estados Unidos na convenção nacional do Partido Democrata que
apontaria como candidato Hubert Humphrey, depois derrotado pelo republicano
Richard Nixon. Militante do Partido Democrata, a cantora estará também na gala
da tomada de posse de Jimmy Carter, em 1977, a interpretar God
bless America.
Ao longo da vida, Aretha
Franklin apoiará de muitas formas, incluindo financeiramente, a luta contra a
discriminação dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas nunca foi, como ela
própria sublinhará repetidamente, uma activista no sentido mais estrito. “Não
estava na linha da frente”, diz numa entrevista à CNN em 2015. O que não impede
que tenha sido considerável, e desde cedo reconhecido, o papel que a sua música e a sua
personalidade desempenharam na luta contra o racismo e o sexismo.
E se a cantora sempre procurou relativizar esse impacto é talvez por estar mais
segura do movimento inverso: “Por causa do Dr. King e do movimento dos direitos
civis, a minha vida mudou para sempre”, afirma numa entrevista de 2014.
Em 2005, George W. Bush
atribui-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração civil
do país. Nesse mesmo ano faz questão de cantar no funeral de Rosa Parks, veterana da luta
contra a segregação racial, a mulher negra do Alabama que, 50 anos
antes, em 1955, tivera a coragem de recusar-se a ceder o seu lugar a um branco
num autocarro.
Em 2009, Aretha Franklin canta My country ‘tis of thee na tomada de posse do primeiro
presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, actuação que depois
evocará na já referida conversa com Al Sharpton: “Foi espantoso ver aquelas
vagas de gente até onde a vista alcançava, sabendo o que significava aquele
momento histórico.”
Obama voltará a ouvi-la ao
vivo em Dezembro de 2015, e dessa vez não conseguiu conter as lágrimas. O
presidente assistia à gala anual de atribuição dos prémios de carreira do
Kennedy Center, em Washington, e um dos artistas homenageados era a cantora e
compositora Carole King, co-autora de (You make me feel like a)
Natural woman. Sem que King ou os restantes convidados soubessem, pediram a Aretha
Franklin que subisse ao palco para interpretar essa canção, que esta gravara e
lançara em 1967 e que se tornaria um dos seus temas mais conhecidos. Dando
provas de uma vitalidade prodigiosa, e que torna ainda mais pungente a rapidez
com que a sua saúde depois declinaria, a cantora de 73 anos deitou
verdadeiramente a casa abaixo. Começou a cantar sentada ao piano, mas depois
levantou-se, e quando se libertou do casaco de peles e o atirou para o chão,
preparando-se para chegar às notas mais altas, toda a gente se ergueu
espontaneamente das cadeiras, a aplaudi-la de pé. Carole King abria a boca de
comovido espanto, Obama limpava as lágrimas.
Não foi a última vez que Aretha Franklin subiu a um palco. Em 2016 foi
à Casa Branca despedir-se de Barack e Michelle Obama, e antes de começar a
cantar resumiu o que tinha a dizer numa frase breve: “I hate to see you
go”. A sua derradeira actuação
pública, em Novembro de 2017, dedicou-a à luta contra a sida, cantando em Nova
Iorque numa gala da Elton John AIDS Foundation.
Mas é a interpretação de Natural woman no Kennedy Center que merece ficar
para a história como o seu verdadeiro adeus. Por ser uma actuação espantosa,
mas também porque na intensidade das emoções que provocou se adivinha o
inextricável efeito conjugado de tudo o que Aretha Franklin foi: talvez a maior
de todos os tempos (a Rolling Stone acha que sim), mas também a mulher negra independente, destemida,
talentosa, que exigia e impunha respeito, como na canção, e que se tornou para
muitos o símbolo vivo das mudanças sociais e culturais que a América atravessou
nos anos 60.
Obama disse-o melhor quando
tentou explicar a comoção que sentiu no seu camarote do Kennedy Center.
“Ninguém encarna tão completamente a ligação entre os espirituais
afro-americanos, os blues, o R&B e o rock'n'roll, o modo como a adversidade
e o sofrimento são transformados em algo cheio de beleza e vitalidade e
esperança. "Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que
jorra".
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