Nas missas católicas os padres orientam-nas segundo os rituais
estabelecidos, por vezes lêem ou mandam ler passos da Bíblia ilustrativos, mas
o povo segue passivamente, não possuidor de livro para acompanhar, repetindo,
contudo, monocordicamente, as palavras e os rituais que a rotina incrustou na sua memória. Julgo que a educação religiosa protestante é mais inteligentemente
acompanhada pelo público, que lê a Bíblia e medita nas questões teológicas. Eu
também sigo distraidamente os rituais, sempre que assisto às missas – nos
funerais, sobretudo, ou quando, submissamente, acompanhava a minha mãe, no
aniversário do meu pai - mas ouço com atenção as leituras bíblicas, por vezes
tema do sermão. Era essa religião (ao modo protestante), não dogmática mas inteligente
e viva, que gostaria que fosse seguida nas missas, tal como se explora, nas
escolas, os temas de Literatura ou outras disciplinas que implicam
demonstração. Mas muitas vezes os sermões, que o nosso Vieira elevou ao
estatuto de peças de arte literária, servem também de instrumento de propaganda
política, ou até mesmo de educação moral, explorando a dualidade Bem e Mal com
a recompensa do Céu ou o castigo do Inferno, como Júlio Dinis, na sua Morgadinha
dos Canaviais, denuncia, em episódio burlesco condenatório da orientação
beata e hipócrita de que se revestia uma religião que foi instrumento
castigador e repressor de heresias. Por isso o texto de Frei Bento Domingues, tão rico de informação, me agradou tanto,
levando-nos aos primórdios de uma Teologia construída por grandes pensadores e
mestres, como foi São Tomás de Aquino, ele
próprio apoiado em tantos outros
filósofos que o fizeram tentar interpretar e esclarecer os princípios da fé e
as verdades da doutrina, segundo a razão e o coração. E do texto de Frei Bento Domingues, parti em pesquisa
pela Internet, sobre a “Suma Teológica”
de Tomás de Aquino, resenha feita
por Felipe Ferreira, que destaca os
princípios da religião e da crença em Deus, para perceber melhor a desenvoltura
teológica de Frei Bento Domingues.
OPINIÃO
Uma religião inteligente
Uma religião que não pensa, ou que só
pensa o já pensado, cai no fundamentalismo e na violência.
OBSERVADOR, 29 de Julho de 2018
1. Para António Damásio, “não temos qualquer relato científico
satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos
uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os
nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar abertos e
atentos quando decidimos abordar o desconhecido” [1].
Em certas formas de
espiritualidade e de teologia, a modéstia não é a regra. Na orientação espiritual, não falta quem se
julgue conhecedor da vontade de Deus e com capacidade de a discernir para si e
para os outros. Implorar o Espírito Santo para acolher a sua luz é uma condição
essencial para estarmos prontos a dar razão da nossa esperança, como recomenda
S. Pedro [2]. Sem esse cuidado, seremos cegos guias de cegos. Pedir
conselho é próprio de quem reconhece os seus limites. Daí a convencer-se que
podemos coincidir, nas nossas opiniões, com a vontade de Deus, é presunção a
mais.
Em teologia, sempre me agradou a extrema modéstia de Tomás de Aquino. Foi discípulo de Alberto Magno, assim chamado pelo seu
saber enciclopédico e pela sua curiosidade insaciável. Tomás tinha uma
consciência pedagógica mais apurada. Notava
que os mais novos tinham dificuldade em seguir a multiplicidade de questões no
campo científico, filosófico e teológico. Comentou Aristóteles e muitos
livros da Bíblia, participou em muitas questões disputadas e
não receava ser exposto à curiosidade dos estudantes acerca dos temas mais
variados. Resolveu
elaborar um imenso guião para principiantes. Acabou por ser muito
apreciado pelos investigadores. Trata-se da Suma de Teologia.
Modesta era a sua própria ideia
de teologia. Depois de expor o seu
projecto, as suas exigências, o seu método e de estabelecer os argumentos humanos
que apoiam a fé na existência de Deus, ao dizer vamos tentar saber como Deus é, suspende esse atrevimento: vamos saber como Deus não é [3]. A sua teologia é,
sobretudo, uma anti-idolatria. Não atribuir a Deus e
à sua vontade o que são construções nossas.
No final da vida, a partir
da sua experiência mística, disse: tudo o que escrevi me parece palha. A teologia
negativa livrou-o da idolatria das
concepções teológicas. Não era cepticismo. Como cantou, no seu
poema para a festa do Corpo de Deus, seguiu o princípio: atreve-te
quanto puderes. Não tinha o culto da humildade
ignorante, nem se contentava com repetir um credo ortodoxo. Escreveu: “é
necessário que aqueles que buscam as raízes da verdade se apoiem em razões e se
esforcem por saber como é verdade aquilo que afirmam. De outro modo, se o
mestre se contenta com resolver a questão com o recurso a autoridades, poderá
assegurar, sem dúvida, ao ouvinte, o que está certo na fé, mas este não adquire
ciência nem compreensão e ficará de cabeça vazia” [4].
A teologia cristã e a verdadeira espiritualidade são fruto da
mente e do coração no
interior da dinâmica da fé teologal, cujo termo não são os
artigos da fé, mas o infinito mistério de Deus amado e conhecido. A
oração faz parte da investigação teológica, como mostrou Sto. Anselmo, na
perspectiva de Sto. Agostinho: “Não procuro, Senhor, penetrar na tua
profundidade... Mas quero compreender, ainda que seja um pouco, a tua verdade
que o meu coração crê e ama. Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender,
pois, bem sei, se não creio, não compreenderei” [5].
Nunca podemos prescindir do conhecimento científico nem do
questionamento filosófico. Se não virmos que, pelo lado de Jesus Cristo, corre
a vida e o sentido último da nossa história, não poderíamos acolher a sua
graça. A graça não substitui a natureza, antes a reforça.
Uma teologia sadia nasce e desenvolve-se dentro de uma espiritualidade
aberta à acção evangelizadora. Uma prática evangelizadora exige e desenvolve
uma vida e uma teologia mística. Karl Rahner insurgiu-se, com razão, contra
uma teologia kerigmática que desprezava a investigação científica [6]. Uma teologia
pastoral sem investigação é um engano. Uma teologia que pretende ser científica
e não cheira a povo perde-se no vazio, como diz o Papa Francisco.
2. Não
podemos crer sem interpretar. Edward Schillebeeckx, depois de todos os embates
que teve com o Vaticano, mostrou que tinham interpretações diferentes das
mediações humanas da fé. Elaborou, por
isso, os pressupostos e a ciência da interpretação. Parte da experiência da fé
na Bíblia, não como uma teologia da palavra, porque a palavra de Deus é a
palavra dos seres humanos que falam de Deus.
Dizer, sem mais, que a
Bíblia é a palavra de Deus, não corresponde à verdade. Só é a palavra de Deus
indirectamente. Os escritos bíblicos são testemunhos de homens e mulheres de
Deus, que viveram uma experiência e a exprimem. A sua experiência vem do
Espírito e, neste sentido, pode dizer-se, com razão, que a Bíblia é inspirada,
mas, ao mesmo tempo, é preciso não esquecer a mediação humana, histórica,
contingente. Nunca existe encontro directo de Deus, só a sós, com o homem.
Efectua-se sempre através de mediações. São os seres humanos que falam de Deus.
Não aceitar mediações históricas é cair, necessariamente, no
fundamentalismo [7].
3. Alegra-me que Aga Khan tenha dito que a religião ismaelita é uma
religião inteligente. Tem como premissas a paz, o bem-estar, a sabedoria e o
desenvolvimento [8]. Parece querer recuperar, na actualidade, o que
foi uma das correntes criadoras do Islão medieval. Uma religião que não pensa,
ou que só pensa o já pensado, cai inevitavelmente no fundamentalismo e na
violência.
Terá sido uma iniciativa inteligente a criação de um Estado judaico?
Não irá aumentar o anti-judaísmo? Não será um Estado de exclusão?
Não ficam mal, a nenhuma religião que queira ser inteligente, as
observações do Papa Francisco:
Uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos
faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé
sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que
deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Acrescenta também: existe o perigo real de deixar às gerações
vindouras escombros, desertos e imundices [9]. Boas férias e até Setembro.
[1] A estranha
ordem das coisas, Temas e Debates, Lisboa, 2017, p. 332
[2] 1P 3, 15-16; Rm 8,
26-27
[3] S.Th.,
I, q.3, prólogo (cf. q. 12 e 13)
[4] Quodlibet, IV,
q.9, a.3
[5] Proslogion, 1
[6] Karl Rahner, Le
courage du théologien, Paris, Cerf, 1985, pp 43
[7] Maria Clara
Bingemer, Experiência de Deus na contemporaneidade,
Lisboa, Paulinas 2018. A autora teve em conta Karl Rahner, mas esqueceu-se de
Edward Schillebeeckx, Je suis un théologien heureux, Paris,
Cerf, 1995
[8] Revista do Expresso, 21.07.2018
[8] Revista do Expresso, 21.07.2018
[9] L’ Osservatore
Romano, O clamor angustiado da terra, 12.07.2018,
http://www.osservatoreromano.va/vaticanresources/pdf/POR_2018_028_1207.pdf
Frei Bento Domingues interrompe a
sua crónica em Agosto. Regressa como habitualmente no primeiro domingo de
Setembro
DA INTERNET:
Nicolau de Cusa, com sua mente neoplatônica, vai afirmar
uma verdade extraordinária: Todas as Formas desse mundo são uma perfeita
semelhança substancial com a Razão Eterna. Cada Forma e cada ser humano são a
palavra ou a intenção do Intelecto Divino. O título do livro de Nicolau de
Cusa, De Beryllo, significa “Os Óculos Intelectuais”. Através do uso desses
óculos intelectuais, Cusa afirma que você vai compreender o que é contrário e
diferente, e, com Deus te guiando, “você vai discernir tudo o que é humanamente
possível de se dizer."
Parte superior do formulário
Resenha da Suma Teológica de São Tomás de Aquino
A expressão máxima da Teologia Católica
Combinando a filosofia de Aristóteles com a doutrina católica, e unindo
para sempre a fé e a razão, a Suma Teológica é um livro obrigatório para
qualquer estudante sério de filosofia. É a maior obra de Teologia de
todos os tempos. Nesse primeiro
volume estão as famosas cinco provas da existência de Deus por Santo Tomás. Ele
afirma que a existência de Deus não é evidente por si mesma, mas existem dois
tipos de demonstração: uma pela causa e outra pelos efeitos. Sempre que um efeito é mais manifesto do que
sua causa, recorremos a ele a fim de conhecer a causa. Por qualquer efeito podemos demonstrar a
existência de sua causa, porque os efeitos dependem da causa e, estabelecida a
existência do efeito, necessariamente temos a preexistência de sua causa. Então, se a existência de Deus não é evidente
para nós, pode ser demonstrada pelos efeitos por nós conhecidos. Assim,
pelas obras de Deus , pode-se demonstrar sua existência, ainda que por elas não
possamos conhecê-lo quanto à sua essência.
Santo Tomás nega que
possamos ver a essência de Deus pois Santo Agostinho diz que “ninguém jamais
viu a Deus , nem nesta vida, tal como Ele é, nem na vida angélica, como os
olhos do corpo veem as coisas visíveis. E nem um intelecto criado porque o
conhecimento de todo aquele que conhece é segundo o modo de sua natureza. Santo
Agostinho escreveu: ” os objetos sublimes das ciências não podem
ser vistos se não são iluminados por seu Sol”, isto é, por Deus. Não é
necessário para ver algo intelectualmente, ver a essência de Deus. Porém nesta
vida podemos conhecer a Deus pela razão natural. O homem não pode a partir do
conhecimento das coisas sensíveis, conhecer todo o poder de Deus, nem ver sua
essência. No entanto podemos conhecer a Deus SE É, e conhecer aquilo que é
necessário que lhe convenha como à causa primeira universal.
Uma questão muito importante
para o homem moderno (principalmente os estudantes universitários) é o que
seria a verdade? Primeiro Santo Tomás analisa se a verdade está no intelecto ou
nas coisas. Vejam como o pensamento de Santo Tomás é atual e como o erro de
ontem é repetido hoje. O erro dos filósofos
antigos seria terem dito que tudo o que parece é verdadeiro. Então teríamos proposições contraditórias
que seriam simultaneamente verdadeiras desde que parecessem a diversas pessoas
como verdadeiras. É o moderno cada um com sua opinião. Mas Aristóteles no livro
da Metafísica diz que o verdadeiro e o falso não estão nas coisas, mas no
intelecto. A prova é que o juízo
sobre uma coisa não se faz em razão do que lhe é acidental e sim do que lhe é
essencial. Uma coisa é verdadeira segundo a relação com o intelecto de que
depende. Santo Tomás diz que as coisas naturais são verdadeiras na medida em que
se assemelham às representações que estão na mente divina. Assim, a verdade
está principalmente no intelecto. A definição de verdade do filósofo persa Ibn
Sina ( Avicena), de que a verdade é a adequação do intelecto ao objeto é a
mais perfeita de todas. Deus é a verdade, pois não só seu Ser é conforme seu
intelecto, como Ele é a sua própria intelecção.
Resenha da Suma Teológica, Volume III
A Bem-Aventurança,
os atos humanos e as paixões da alma
São Tomás de Aquino é uma das
minhas referências na filosofia, mas em teologia ele é de longe o maior teólogo
de todos os tempos. Na escolástica, a
filosofia e a teologia andavam juntas, de maneira que não havia a separação
entre as duas conforme Guilherme de Ockham estabeleceu décadas após São Tomás. O Aquinate tem como referências diversos
teólogos da igreja, filósofos muçulmanos e, principalmente, Santo Agostinho e
Aristóteles. Nesse volume III, São Tomás escreve sobre a
bem-aventurança e o que é necessário para alcançá-la. Para São Tomás, a
bem-aventurança pode ser alcançada pela visão da essência de Deus, mas não
agora, já que nesse mundo o homem só pode conhecer que Deus existe, mas não
conhecê-lo quanto à sua essência. Aristóteles havia escrito em sua Ética a
Nicômaco que a felicidade é uma forma de contemplação, mas não conseguiu ir
além disso e dizer que o fim último era Deus. A filosofia cristã vai definir
essa mesma contemplação da verdade tendo em vista o Deus criador,sua existência
e os efeitos que Ele permitiu que nós conhecêssemos. O mesmo Aristóteles disse
que para alcançar à felicidade seriam necessários certos bens materiais e
amigos. São Tomás diz que os bens não são necessários, mas acrescenta que
são necessários algumas disposições como a retidão da vontade. Outro problema que é discutido nesse volume
é se para a bem-aventurança e a contemplação da essência divina é necessário o
corpo. A explicação é que nessa vida é necessário, obviamente, o corpo. A alma
dos mortos podem contemplar à essência divina, mas ainda restará nelas o desejo
de reassumir o corpo no dia da ressurreição, quando então sua felicidade
crescerá em extensão. Essa união da alma e do corpo é uma crença fundamental da
filosofia e teologia católica. Após
disso, a Suma Teológica passa ao tema do amor, do prazer e da tristeza. Na filosofia tomista esse tema do amor é difícil de ser separado do amor por Deus, mas em uma questão
podemos falar do amor por uma outra pessoa. Essa questão é sobre se oconhecimento
é a causa do amor. Santo Agostinho dizia que ninguém pode amar algo
desconhecido. São Tomás concorda e afirma que o amor requer uma apreensão do
bem que se ama. Se amamos uma pessoa de maneira intensa, ainda que não possamos
conhecê-la perfeitamente, ainda assim podemos dizer que a possuímos como o ser
que nos ama ( como a uma ciência). O amor vem pelo sentido da visão, mas
o amor mais belo é o amor espiritual quando contemplamos a bondade e a beleza
do ser. Isso me faz recordar os versos de Alain de Lille citados por Umberto
Eco no Nome da Rosa. Diz o teólogo francês:
” Todas as criaturas do mundo,
como se fossem livro ou pintura,
são para nós como um espelho.”
Todas as pessoas devem ser vistas assim conforme nos ensina a
filosofia escolástica. Para esse amor espiritual que sentimos por quem nós
amamos, devemos sempre olhá-las como um ser criado por Deus que reflete a
glória divina e a bondade da criação. Mas do que um amor carnal, o amor ao
próximo e à pessoa amada pela contemplação do bem das criaturas é o mais
intenso.
Resenha: Suma Teológica, Volume IV
Os hábitos
e as virtudes- Os dons do Espírito Santo-Os vícios e os pecados- a Lei antiga e
a Lei nova-A graça
A Suma Teológica é uma obra tão ampla e complexa e distante do estudante
universitário brasileiro, que ao escrever sobre ela, me vejo com uma
pequena missão de despertar os leitores
desse site uma abertura de espírito a uma das maiores criações da humanidade. A
Suma já foi comparada a uma catedral gótica e foi a base de Dante Alighieri
para compor sua Comédia. Esse volume IV, por exemplo, na parte que trata dos
vícios e das virtudes, foi o que inspirou Dante para situar os
condenados do Inferno e do Purgatório em suas respectivas penas. Essa
pequena abertura foi escrita para permitir uma descoberta por parte de quem lê
esse texto sobre a importância de São Tomás e de sua moral para a ética do Ocidente.
A definição dos valores morais de
São Tomás é tirada da Bíblia e da Ética a Nicômaco. Obviamente que quando você ler o texto vai
perceber que o Aquinate não faz a moral depender do Eu subjetivo. Há toda uma
série de citações dos santos da igreja, especialmente de Santo Agostinho, que
ele usa para demonstrar os valores que a igreja católica adotou. Passemos agora a ver como São Tomás entende
a virtude. Para ele, a “virtude é um hábito
que designa certa perfeição da potência”. Essa
definição vem de Aristóteles, em seu livro Do Céu, em que o filósofo grego
designa a virtude como “o último grau da potência”. A virtude sendo uma
potência que se presta indeterminadamente a muitas coisas, é considerada uma
perfeição em relação ao seu ato. Na Física,
Aristóteles define a virtude como ”
a disposição do que é perfeito para o que é ótimo.” Dessa
maneira, São Tomás afirma que o ótimo para qual o homem deve direcionar sua
virtude é o próprio Deus, com isso permitindo que sua alma se assemelhe com
Ele. O hilemorfismo da filosofia Tomista define o homem como uma união
de corpo e alma. A partir disso, São
Tomás diz que a virtude é uma potência exclusiva da alma e não do corpo. Mas
a virtude só pertence a hábitos apetitivos ou também pertence ao intelecto?
Segue o trecho em que São Tomás esclarece essa questão:
“Portanto,
como os hábitos intelectuais especulativos não aperfeiçoam a parte apetitiva
nem lhe dizem respeito, de algum modo, senão só à parte intelectual, é possível
chamá-los de virtudes enquanto acionam a faculdade dessa boa ação, que é a
consideração da verdade, pois essa é a boa obra do intelecto. Não são, porém,
virtudes no segundo sentido, ou seja, enquanto proporcionam o bom uso da
potência ou de um hábito. Na verdade, não é por se ter um hábito de uma ciência
especulativa que se tende a usá-la, mas se torna apto a contemplar a verdade
nas coisas das quais têm conhecimento. Que se use do conhecimento adquirido,
isso se dá por moção da vontade. Por isso a virtude que aperfeiçoa a vontade,
como a caridade ou justiça, também leva a usar bem desses hábitos
especulativos. Assim, pode haver mérito nas ações desses hábitos, se forem
feitas com caridade. Daí aquela palavra de São Gregório Magno: “a
vida contemplativa tem mais méritos do que a ativa.”
Para uma reflexão sobre a virtude intelectual segundo a filosofia
Tomista, pode-se tomar como exemplo o que você irá fazer com o conhecimento
adquirido quando lê uma verdadeira filosofia, como é o caso da de Aristóteles e
de São Tomás. Conhecendo o bem e a verdade, você deverá passar a praticar a
virtude como um ato de caridade, pois sem ela seu ato não passará de
filantropia. Praticando o bem, seu objetivo é fazer com que sua alma se
aproxime ao máximo da bondade divina. Cultivando a virtude do intelecto, você
terá como meta contemplar a verdade de Deus e utilizar bem do conhecimento que
possui. Com o mesmo espírito de caridade, aquele que possui o conhecimento da
verdade deve utilizar-se da caridade e comunicar o que sabe às pessoas de
seu círculo de amizade, ou quem mais estiver ao seu alcance. A vida contemplativa é a mais aprazível aos
deuses, segundo Aristóteles. No cristianismo, a vida contemplativa significa
ter a Deus como fim e sempre agir com a caridade, o que é algo que os gregos da
Antiguidade desconheciam.
Nem toda a virtude é moral, mas
só a que está na faculdade apetitiva, diz São Tomás. Da definição aristotélica de que “as virtudes se
definem por esta diferença: chamamos
umas de intelectuais e outras de morais”, São Tomás e sua doutrina da união do corpo e da alma nos recordam
de que a alma governa o corpo, por isso, afirma o Aquinate, ” houve quem
afirmasse que todos os princípios ativos existentes no homem se comportam dessa
forma com a razão. Mas se fosse assim, bastaria, para agirmos bem, que a razão
fosse perfeita e, como a virtude é um hábito que nos aperfeiçoa para agirmos
corretamente, ela estaria apenas na razão, e, portanto, toda a virtude seria
intelectual, como pensava Sócrates.” Segundo esse filósofo grego o homem dotado de conhecimento não
podia pecar, e os que pecam o fazem por ignorância. Mas tudo isso é falso, nos
diz São Tomás. “A parte apetitiva obedece à razão, mas com certa
resistência”. Essa
afirmação é tirada da Ética a Nicômaco, pois Aristóteles bem observou o
comportamento das crianças e dos adolescentes. Nesse grupo também entram os
apaixonados e da maior parte dos homens que, segundo Aristóteles, “não podendo
alcançar as alegrias do espírito“, mergulham nos prazeres sensíveis. O mesmo Aristóteles afirma que
a “razão
rege a potência apetitiva com o poder político”, tal qual se governam pessoas livres que
têm certos direitos de oposição, segundo São Tomás. Sócrates só está certo “contanto que
o conhecimento se estenda ao uso da razão no caso de uma opção em particular”. Portanto,
segue Tomás, o apetite se distingue da razão, assim como a virtude moral de
distingue da intelectual.
Para terminar, existe um conceito de virtude que os antigos
desconheciam, mas que a filosofia cristã desenvolveu. É o da virtude moral infusa. Deus
além das virtudes teologais, também infunde virtudes morais e intelectuais que
correspondam a essas virtudes teologais. Albert Plê, um dos
comentaristas da Suma, afirma que Deus não apenas infunde as virtudes
teologais, mas também as intelectuais e morais que, “sem nada perder de
seus objetos específicos, são super-elevadas, por efeito de uma finalidade
supra-motivante, que é o próprio Deus imediatamente” (p.185). Seria a virtude adquirida
pela repetição da mesma espécie que a virtude infusa? ( artigo 4, questão 63)
São Tomás nos dá um exemplo. Pela regra humana, a alimentação não deve ser
prejudicial nem à saúde do corpo nem ao ato da razão. Mas pela regra da lei divina, diz São Tomás, exige-se do homem que castigue
seu corpo e o mantenha submisso. Ou
seja, a temperança infusa e a temperança adquirida são diferentes. Aristóteles
diz na sua Política que a virtude dos cidadãos se ajustam às diferentes formas
de governo. Dessa maneira, as virtudes infusas fazem do homem cives sanctorum et domestici Dei, ou
seja concidadãos dos santos e da família de Deus.
O
Mistério da Encarnação
“A semelhança da criatura com
Deus É tão imperfeita que não chega a ser O gênero comum, comum Pois certos
nomes que implicam relação de Deus com a criatura Deles se predicam
temporariamente E não são eternos, não são eternos e não são eternos Por isso
dobro os meus joelhos Diante do pai de nosso Senhor Jesus Cristo Do qual toda
sua sábia paternidade Tomou nome nos céus e na terra.”
Jorge Ben Jor, Assim falou Santo Tomás de Aquino
Nessa parte da Suma Teológica,
São Tomás de Aquino escreve sobre a Encarnação
de Cristo. Essa foi necessária, pois como disse Plotino e
Dionísio, o bem se difunde e é comunicativo. Deus, encarnando-se, realizou aquilo que é mais excelente, que é
a união do Verbo, da alma e da carne, como disse Santo Agostinho. São
Tomás acredita que Deus produziu um ato de suma bondade unindo-se ao corpo
humano para a salvação do homem. Deus
uniu-se à natureza corpórea e mutável mas não assumiu o mal de culpa. A
Encarnação foi necessária para a restauração do gênero humano e para o
progresso do homem no caminho do Bem, de maneira que Santo Agostinho dirá que
no ato da Encarnação, Deus instituiu a fé. Deus dessa maneira ensinou ao
homem a dignidade da natureza humana, removeu sua presunção, libertou-o da
servidão e deu-lhe força para suportar a própria fraqueza, algo que um simples
humano não poderia fazer, diz São Tomás. A Encarnação não teria de forma alguma se realizado se Adão não tivesse
pecado, pois o homem teria mantido sua natureza íntegra e seria iluminado pela
natureza divina. Uma questão que sempre me intrigou era o porquê de Deus
ter vindo à Terra naquele momento e não antes. São Tomás responde que a Encarnação teve que esperar o pecado, mas não
exatamente logo após esse, pois era necessário que o ser humano se humilhasse e
reconhecesse que necessitava de um libertador. O bem, diz ele, sempre vem do
imperfeito para o perfeito. A Encarnação também não poderia esperar por muitos
séculos ainda porque se esse momento se estendesse muito tempo, a fé poderia
desfalecer.
No momento em que Cristo veio à Terra, sua natureza era composta pela
união de alma e corpo, ou seja, Cristo assumiu a carne e sua natureza. Sua
forma não poderia existir sem o corpo, por isso Cristo foi um homem perfeito.
Ele possuiu um corpo verdadeiro e não imaginário e tornou-se semelhante aos
outros homens quanto à forma corporal, porém a distinção de sua natureza foi
mantida. Em relação ao conhecimento
que Jesus Cristo possuía, São Tomás afirma que Ele conhecia a ciência dos
homens além da divina. Cristo deveria levar os homens à perfeição, por
isso era conveniente que ele fosse perfeito. A alma de Cristo possuía a ciência
dos homens e essa era aumentada pela luz da ciência divina. São Tomás diz que
na alma de Cristo está impressa uma ciência infusa. Essa ciência é infundida do
alto e é natural aos anjos. Ele também possuía a ciência dos Bem-Aventurados na
qual a própria essência de Deus é contemplada, porém de modo algum Jesus Cristo
compreendeu a essência divina, uma vez que a perfeição divina não poderia estar
reduzida à natureza humana, diz São Tomás. Assim, segundo a Suma Teológica, Cristo conhecia toda a ciência humana e a revelação divina; entretanto,
a essência divina não foi dada a Ele conhecer. Segundo Aristóteles, existem
dois modos de adquirirmos a ciência, que são através da descoberta e da
aprendizagem. Cristo adquiriu a ciência através da descoberta, diz
São Tomás. Mesmo que Cristo não tenha experimentado tudo, ainda assim pelo
pouco que conheceu chegou ao conhecimento de tudo. Esse conhecimento se deu
através dos sentidos pelo qual a ciência todas as coisas foi alcançada pelo
conhecimento de apenas algumas. Apesar disso, São Tomás afirma que Cristo não
conheceu os singulares passados ou futuros.
Jesus Cristo tinha duas vontades: a thelesis,
chamada de vontade da natureza; e a boulesis,
chamada de vontade da razão. Esses
dois conceitos São Tomás tirou de São
João Damasceno. A existência
dessas duas vontades não prescinde o livre arbítrio. Sua vontade nem
sempre era a mesma que a do Pai, pois sua natureza humana, que Ele assumiu com
toda a humildade, muitas vezes queria o contrário o que o Pai desejava. Vemos
isso quando era vontade do Pai que seu Filho sofresse com o castigo corporal e
a morte na cruz; Cristo queria algo diferente, mas disse que tudo teria que ser
feito segundo a vontade do Pai.
Na minha opinião, um dos pontos
mais elevados de toda a filosofia de São Tomás está na questão 8, artigo 3,
que é a pergunta: Cristo é a cabeça de todos os homens? Ora, segundo a infeliz encíclica de Pio XII, Mystici Corporis, somente fazem parte
da igreja os fiéis católicos que tomam o
sacramento. Cristo não seria, portanto, a cabeça de todos os homens. No
entanto, no século XIII, São Tomás já havia dado uma solução
extraordinariamente humana para essa questão. O Corpo Místico de Cristo abrange toda a humanidade ao mesmo tempo,
pois todos podem fazer parte dele em potencial. Mesmo assim, alguns nunca o serão em ato. O
mais importante da doutrina tomista é a seguinte afirmação que faço: todos os
seres humanos são importantes, não importa sua origem ou religião, pois todos
pertencem ao Corpo Místico de Cristo em potencial ou através de seu
livre-arbítrio, como diz São Tomás. O Santo admite que mesmo aqueles que vivem
em pecado mortal são potencialmente membros. A doutrina católica tal como
apresentada por São Tomás é de uma caridade e humanidade que impressionam. Devemos
nos preocupar com toda a humanidade e não desesperarmos de ninguém, pois todos
poderemos ser potencialmente salvos mesmo que nunca tenhamos ouvido falar de
Cristo ou da Igreja.
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