Julgo que o nosso PR se julga
“um grande gato” e talvez tenha razão, depois de assistirmos a tanto esbanjar
de momices e poses nas selfies da sua imortalidade, como também Domingo Lopes o retrata, com humor, por quem a essas poses se sujeita a cada passo, indiferente a um sentido do ridículo,
e em paralelismo tonto com o seu homólogo Donald Trump, este, todavia, mais do
estilo gatarrão, movido por uma arrogância comandada pela sua presunção de
força e talvez da loura beleza capilar, chamariz primeiro da sua saliência
terrena, mau grado o ridículo poseur.
Mas a referência aos gatos do
título tem a ver com o texto de Miguel
Esteves Cardoso a respeito das expressões portuguesas que criámos para “Gato”, enriquecedora
lição sobre a nossa língua, e as divergências semânticas que, à maneira da
fábula clássica, os provérbios recriam em tradução subjectiva do temperamento
animal.
Por isso me lembrei também de citar “Os Gatos” de Fialho de Almeida, verrinosa visão da sociedade do seu tempo, à
maneira de “As Farpas” da dupla Eça-Ramalho, estas de uma fantasia crítica bem
mais parodiante – reunida a participação específica de Eça em “Uma Campanha
Alegre”. O excerto do “Prefácio” de “Os Gatos” transponho-o da Internet, como
lição igualmente enriquecedora, como alegoria, através de mais um curioso
retrato desses felinos, aplicável ironicamente aos cidadãos do seu tempo. De
todos os tempos.
E não podemos esquecer a obra-prima de Colette, “La Chatte”, personagem
absorvente de um “ménage à trois”, incitador de ciúme facinoroso na
recém-casada preterida.
I - OPINIÃO
Marcelo foi à Volta
Fiquei à espera para ver se
Marcelo espetaria dois beijos, um em cada bochecha do feliz galego. Conteve-se.
PÚBLICO, 5 de Agosto de 2018, 15:35
Marcelo foi à Volta e voltou à
natação. No caso da Volta apareceu-nos casa adentro, sorridente, a comentar a
vitória do ciclista da W52-FC Porto, Raúl Alarcón. Fantástico. Fiquei à espera
para ver se Marcelo espetaria dois beijos, um em cada bochecha do feliz galego.
Conteve-se. Sim, conteve-se; o calor, que não o calo, explicará a contenção do
mais alto magistrado da nação.
Poderá haver quem não
compreenda esta súbita atracção de Marcelo pelo ciclismo, mas ele explicou a
uma velhinha de Figueiró dos Vinhos que era uma coisa de família; um seu bisavô
gostava de pedalar e daí ele achar que no seu gene está inscrita essa
característica e era a explicação que tinha para o caso.
Por falar em família, Marcelo
não fez como São Tomás, virou-se para Santana e de forma muito subtil
defendeu que não se abandona a família, que é coisa feia. Ele próprio, pai e
filho do PPD/PSD, nunca o abandonou, nunca não, suspendeu a sua ligação à
família. Suspendeu. Ele ligou para Pedro Passos e deve ter dito – vou suspender
os meus passos para aí. Vão todos para Belém. E assim fez ele.
Santana, ao que consta, disse a
quem o ouviu comentar o comentário, grande coisa fez ele, era o que eu fazia
se me apoiassem na família e fosse parar a Belém que é uma parte da minha
identidade em matéria de ambições; já fui presidente do Sporting, não vejo que não
pudesse ser de Portugal. Aliás, falei deste assunto muitas vezes com Sá
Carneiro e se Deus quisesse até podia ter-se dado o caso e então sim eu
suspendia-me, sim senhor.
Consta que depois daquele
brutal esforço ou antevendo-o, Marcelo, em férias, lado a lado com as voltas da
Volta, foi surpreendido por “ene” jornalistas, sobretudo das televisões, a dar
uns mergulhos nas praias fluviais de localidades atingidas por fogos no ano
passado. Imagino o sacrifício do nosso Presidente para dar umas braçadas, só no desempenho de altas funções é que o
imaginamos a nadar...
Pode haver quem não
compreenda esta atracção pela Volta, porque não tem ADN na família para a
pedalada e para suspender a família, nunca abandoná-la. Só ele.
II - OPINIÃO
Fazer gato-sapato
Porque é que são depreciativos
todos os ditados que mencionam o gato?
PÚBLICO13 de Julho de 2018
Porque é que são
depreciativos todos os ditados que mencionam o gato? Será por termos inveja dos
gatos? Gostaríamos
de ter a independência que eles têm mas, como não podemos ter, dizemos que são
egoístas e só fazem o que querem. Esquecemo-nos convenientemente que ser
independente é muito difícil para quem não seja egoísta e não faça o que quer.
"Não pode com um gato pelo rabo" é um apelo à violência.
Sugere que não é preciso muita força para levantar um gato pelo rabo.
Emparelha bem com a expressão inglesa "not enough room to swing a cat".
De "comprar gato por lebre" nem vou falar.
"De noite todos os gatos são pardos" não é verdade. Morrendo
de inveja das muitas cores que têm os gatos durante o dia tem-se a consolação
mesquinha de soprar "espera que venha a noite e vais ver". Pode
também ser inveja da visão nocturna dos gatos, claramente superior à humana.
Em contrapartida "gato escondido com o rabo de fora"
é infelizmente verdade. Os gatos julgam-se mais invisíveis do que são e
parecem não ter consciência da ponta do rabo. Se calhar é um isco perverso,
para nos incitar ao fracasso de tentar apanhá-lo ou um manifesto de
indiferença: eu cá não preciso de me esconder.
"Gato escaldado de água fria tem medo" faz sentido
mas é despropositado. Os gatos gostam de usar as patas-termómetras para aferir
o grau exacto dos líquidos.
"Não é por aí que o gato vai às filhós" é um raro elogio
porque o gato escolherá um caminho bem mais surpreendente.
Quanto ao caçar com gato, good luck with that.
III - Os Gatos (fragmento) de Fialho de Almeida
Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à
semelhança do gato. Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o
assopro, o ronron e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e
ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura,
e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com
agressores e adversários.
Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada céptico
perante as coisas consagradas: achando a quase todos os deuses pés de barro,
ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas
travessas. – Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém
lhe atire, ou seja, um tratado, ou seja, um código.
Paciente em aguardar; manso e apagado, com um ar de mistério, horas e
horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez
caçada a presa, por fazer da agonia dela, uma distracção: ora enrolando-a como
um cigarro, entre as patinhas de veludo: ora fingindo que lhe concede a
liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela
e moendo-a, de a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o asno, o cão e o gato – isto é: o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – por que, não escolhemos nós, o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Desde que nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o asno, o cão e o gato – isto é: o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – por que, não escolhemos nós, o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Razão por que nos achará aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre
e não temendo nunca.
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