terça-feira, 7 de agosto de 2018

Gatos, gatinhos e gatarrões

Julgo que o nosso PR se julga “um grande gato” e talvez tenha razão, depois de assistirmos a tanto esbanjar de momices e poses nas selfies da sua imortalidade, como também Domingo Lopes o retrata, com humor, por quem a essas poses se sujeita a cada passo, indiferente a um sentido do ridículo, e em paralelismo tonto com o seu homólogo Donald Trump, este, todavia, mais do estilo gatarrão, movido por uma arrogância comandada pela sua presunção de força e talvez da loura beleza capilar, chamariz primeiro da sua saliência terrena, mau grado o ridículo poseur.
Mas a referência aos gatos do título tem a ver com o texto de Miguel Esteves Cardoso a respeito das expressões portuguesas que criámos para “Gato”, enriquecedora lição sobre a nossa língua, e as divergências semânticas que, à maneira da fábula clássica, os provérbios recriam em tradução subjectiva do temperamento animal.
Por isso me lembrei também de citar “Os Gatos” de Fialho de Almeida, verrinosa visão da sociedade do seu tempo, à maneira de “As Farpas” da dupla Eça-Ramalho, estas de uma fantasia crítica bem mais parodiante – reunida a participação específica de Eça em “Uma Campanha Alegre”. O excerto do “Prefácio” de “Os Gatos” transponho-o da Internet, como lição igualmente enriquecedora, como alegoria, através de mais um curioso retrato desses felinos, aplicável ironicamente aos cidadãos do seu tempo. De todos os tempos. 
E não podemos esquecer a obra-prima de Colette, “La Chatte”, personagem absorvente de um “ménage à trois”, incitador de ciúme facinoroso na recém-casada preterida.
I - OPINIÃO
Marcelo foi à Volta
Fiquei à espera para ver se Marcelo espetaria dois beijos, um em cada bochecha do feliz galego. Conteve-se.
PÚBLICO, 5 de Agosto de 2018, 15:35
Marcelo foi à Volta e voltou à natação. No caso da Volta apareceu-nos casa adentro, sorridente, a comentar a vitória do ciclista da W52-FC Porto, Raúl Alarcón. Fantástico. Fiquei à espera para ver se Marcelo espetaria dois beijos, um em cada bochecha do feliz galego. Conteve-se. Sim, conteve-se; o calor, que não o calo, explicará a contenção do mais alto magistrado da nação.
Poderá haver quem não compreenda esta súbita atracção de Marcelo pelo ciclismo, mas ele explicou a uma velhinha de Figueiró dos Vinhos que era uma coisa de família; um seu bisavô gostava de pedalar e daí ele achar que no seu gene está inscrita essa característica e era a explicação que tinha para o caso.
Por falar em família, Marcelo não fez como São Tomás, virou-se para Santana e de forma muito subtil defendeu que não se abandona a família, que é coisa feia. Ele próprio, pai e filho do PPD/PSD, nunca o abandonou, nunca não, suspendeu a sua ligação à família. Suspendeu. Ele ligou para Pedro Passos e deve ter dito – vou suspender os meus passos para aí. Vão todos para Belém. E assim fez ele.
Santana, ao que consta, disse a quem o ouviu comentar o comentário, grande coisa fez ele, era o que eu fazia se me apoiassem na família e fosse parar a Belém que é uma parte da minha identidade em matéria de ambições; já fui presidente do Sporting, não vejo que não pudesse ser de Portugal. Aliás, falei deste assunto muitas vezes com Sá Carneiro e se Deus quisesse até podia ter-se dado o caso e então sim eu suspendia-me, sim senhor.
Consta que depois daquele brutal esforço ou antevendo-o, Marcelo, em férias, lado a lado com as voltas da Volta, foi surpreendido por “ene” jornalistas, sobretudo das televisões, a dar uns mergulhos nas praias fluviais de localidades atingidas por fogos no ano passado. Imagino o sacrifício do nosso Presidente para dar umas braçadas, só no desempenho de altas funções é que o imaginamos a nadar...
Pode haver quem não compreenda esta atracção pela Volta, porque não tem ADN na família para a pedalada e para suspender a família, nunca abandoná-la. Só ele.
II - OPINIÃO
Fazer gato-sapato
Porque é que são depreciativos todos os ditados que mencionam o gato?
PÚBLICO13 de Julho de 2018
Porque é que são depreciativos todos os ditados que mencionam o gato? Será por termos inveja dos gatos? Gostaríamos de ter a independência que eles têm mas, como não podemos ter, dizemos que são egoístas e só fazem o que querem. Esquecemo-nos convenientemente que ser independente é muito difícil para quem não seja egoísta e não faça o que quer.
"Não pode com um gato pelo rabo" é um apelo à violência. Sugere que não é preciso muita força para levantar um gato pelo rabo. Emparelha bem com a expressão inglesa "not enough room to swing a cat".
De "comprar gato por lebre" nem vou falar.
"De noite todos os gatos são pardos" não é verdade. Morrendo de inveja das muitas cores que têm os gatos durante o dia tem-se a consolação mesquinha de soprar "espera que venha a noite e vais ver". Pode também ser inveja da visão nocturna dos gatos, claramente superior à humana.
Em contrapartida "gato escondido com o rabo de fora" é infelizmente verdade. Os gatos julgam-se mais invisíveis do que são e parecem não ter consciência da ponta do rabo. Se calhar é um isco perverso, para nos incitar ao fracasso de tentar apanhá-lo ou um manifesto de indiferença: eu cá não preciso de me esconder.
"Gato escaldado de água fria tem medo" faz sentido mas é despropositado. Os gatos gostam de usar as patas-termómetras para aferir o grau exacto dos líquidos.
"Não é por aí que o gato vai às filhós" é um raro elogio porque o gato escolherá um caminho bem mais surpreendente.
Quanto ao caçar com gatogood luck with that.
III - Os Gatos (fragmento) de Fialho de Almeida
Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronron e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários. 
Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada céptico perante as coisas consagradas: achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas. – Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja, um tratado, ou seja, um código. 
Paciente em aguardar; manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela, uma distracção: ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo: ora fingindo que lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, de a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o asno, o cão e o gato – isto é: o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – por que, não escolhemos nós, o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Razão por que nos achará aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca. 



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