quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Mundo do crime



Afinal, é num mundo de atropelo que vivemos hoje, incendiários que somos, num viver de egoísmo, de presunção, de maldade, de frieza, de cinismo, de insanidade. Podemos falar dos governantes, sim, tal como o fez Vicente Ferreira da Silva, porque até nos convém alijar a água do nosso capote, e assinalar apenas os muitos pontos negativos de um governo de “extraordinariedade”, que se considera isento de culpa e insiste nos mesmos erros no tratamento dos fogos, contente de si e iludindo, desde sempre, o povo, ao impor a sua presença através da trafulhice impune. Mas o povo aceitou a trafulhice, com que desculpou a sua própria, useiro e vezeiro em idênticos esquemas de falta de lisura, de as pregar pela calada, de aparentar nobreza, nobreza de colarinho e gravata, sobretudo, mas também sem gravata, finório, nos seus esquemas de impunidade geral, incendiando, atropelando, descuidando a ética, descurando o amor, excepto, naturalmente, o amor de si próprio. Um povo de rezas, de crenças, de trapaça, substrato do qual partem governantes que, se são ponderados e rígidos, pela força maior da necessidade de salvar um país afogado em dívida, travando-a, logo são vilipendiados e substituídos pela fraude que os pontapeia e substitui. Mas não somos melhores do que eles, ateando os fogos sem que ninguém veja, quer na floresta, quer no trabalho de exploração e tantas vezes inépcia, quer no foro caseiro, de crescente violência e crime, que os noticiários expõem e os cemitérios acolhem. Terrorismo? Sim, ele abunda, como abundam os que dele querem livrar-se e tantas vezes morrem afogados nos naufrágios da sua fuga, ou queimados ou despojados dos seus bens, ou despidos de princípios que as mudanças de regime político permitiram calcar, lembrando tolamente uma liberdade descontrolada e generalizada a todo o bicho humano irrefreável, tal como os ventos alastradores dos incêndios e da perdição.
Dos governantes extraordinários /premium
Vicente Ferreira da Silva
14/8/2018
Fazer a mesma coisa esperando resultados diferentes é a definição de insanidade. António Costa insiste na mesma metodologia há anos e continua à espera de resultados distintos. É a extraordinariedade.
Há muito que os deuses abandonaram o Olimpo sem que ninguém os tenha substituído. Porém, novos salvadores apareceram. Residem agora noutra morada, Olisipo, de seu nome. E na sua sobrenatural clarividência, desprovidos de quaisquer complexos, demonstram diariamente aos portugueses a sua extraordinariedade.
Poderão estar a indagar de onde provém esta fenomenal qualidade? Da ausência do erro. Assim, como o erro é revelador do humano, a inexistência dessa lacuna é denunciadora do ultranatural. É por isso que a observância de determinados articulados jurídicos – como o Código de Conduta dos Trabalhadores da Autoridade Tributária e Aduaneira ou o Código do Procedimento Administrativo e todos aqueles que se referirem a responsabilidade dos titulares de cargos públicos – não lhes são aplicáveis. Daí que as oferendas dos mortais (lembram-se das viagens da Galp?) sejam perfeitamente normais. Para além disso, não sendo estas dádivas extraordinárias, são integralmente irrelevantes para qualquer conflito de interesses. Mas não fiquem em cuidado. Perturbados com a constatação da normalidade, os novos salvadores elaboraram um código de conduta deveras extraordinário e exclusivamente adequado ao seu comportamento sobre-humano. Porquê? Porque a lei só obriga os mortais. Ou seja, observar a lei é normal. Já a inimputabilidade é que é ímpar. Ou aparenta ser.
Esta extraordinariedade não possui apenas um cariz geral e abstracto. Também é possível aplicá-la em contextos específicos, intangíveis e tangíveis. Para ilustrar esta afirmação não há melhor exemplo do que o do Primeiro dos novos salvadores, António Costa, o qual, convicto do seu destino, persiste no autoproclamar das suas virtudes e glória. Que não haja dúvidas nesse sentido. Tanto a sua acção como a sua retórica são extramundanas. Ora vejamos.
Em 2016, com uma pompa e circunstância inaudita, António Costa disse que o clima do Verão não era um factor a ter em conta porque “não é por haver vento ou calor que há incêndios”. Apesar da irrelevância destes factores, o Primeiro dos novos salvadores também defendeu uma floresta mais resistente e sustentável, i.e., uma reforma e reestruturação das florestas (provavelmente através de inovações biotecnológicas que estariam para além da nossa compreensão).
Em 2017, tudo correu mal. 107 mortos nos incêndios! Porquê? Porque apesar dos relatos da descoordenação generalizada os pressupostos de resposta não foram alterados. Todavia, António Costa já não responsabilizava apenas o comportamento humano. Os demónios eram agora o clima, que se manifestou numa escala até então desconhecida (tinha de ser extraordinária!), a GNR, a protecção civil, etc. Enfim, tudo e todos, menos qualquer um dos governantes extraordinários.
Em 2018, naquilo que só pode ser uma actualização dos métodos de outrora (diz-se que os deuses do Olimpo manipulavam os mortais através da mente e da vontade), o Primeiro dos novos salvadores twittou-se a controlar os trabalhos da frente de combate ao fogo através de um painel onde, pela ponta dos dedos, expressava a sua vontade. Simultaneamente, ou quase, exemplificando a plenitude da sua extraordinariedade, deu uma entrevista aos órgãos de comunicação social. A indumentária e o marcador de cronos (Hermès) utilizados provam-no. E claro, apesar de estarmos a ter um Verão atípico, no incêndio de Monchique as temperaturas foram excepcionais.
Fazer a mesma coisa ininterruptamente esperando resultados diferentes é a definição de insanidade. António Costa persiste na mesma metodologia há anos e continua à espera de resultados distintos. Fá-lo desde a famosa reforma da Protecção Civil (2006), cujo pináculo de eficiência pode ser demonstrado pelo SIRESP e pelos Kamov, que, por razões incompreensíveis, considera como a joia da coroa da sua veia reformista. Se este comportamento não é extraordinário, então desconheço o que o seja.
Esta postura é reveladora de teimosia e de falta de humildade. Falou-se de luto nacional. Acho muito bem. Falou-se de honrar as vítimas. Ainda melhor. Já a manutenção dos pressupostos é inaceitável. Voltar a defender um modelo que não funciona é indesculpável. Ainda bem que este ano não houve mortes. Mas para verdadeiramente honrar as vítimas dos incêndios anteriores é urgente reflectir, reconhecer os erros e ter humildade para os corrigir. Isso é que seria extraordinário!
Contudo, conforme conselho do Primeiro dos novos salvadores, é melhor tirarmos o cavalinho da chuva. Há coisas que não mudam. Este ano foi criado o Observatório do Pinhal do Rei. Tudo indica que para o ano, após as chamas que irão fustigar novamente o nosso país, quiçá no Gerês – oxalá assim não aconteça – será criado o Observatório da Serra de Monchique. E também em 2019, tal como ouvimos agora, será afirmado que as declarações de António Costa foram deturpadas e descontextualizadas. Não duvidem. Trata-se da 2ª norma do guião da gestão comunicativa destes governantes: “Jamais reconheças”.
P.S. Portugal não necessita de políticos perfeitos. Portugal precisa de políticos responsáveis e responsabilizáveis. Em situações mais ou menos análogas, a Leonor Beleza e o Jorge Coelho assumiram as responsabilidades políticas e demitiram-se. Que fez ou fará António Costa?
Politólogo, Professor convidado EEG/UMinho

Nenhum comentário: