É bom que os haja. Tão arredios andamos de um ensino realmente
enriquecedor, que pôs de parte os estudos clássicos, fonte primeira do
conhecimento do Homem, que toda a análise literária, por expressiva que seja,
perde realmente em densidade e penetração, por lhe faltar aquele convívio
primeiro proporcionado pelos escritores gregos e latinos, ainda que fosse só em
tradução de pequenos excertos comprovativos de uma eterna similitude dos homens
e da infinita variedade das suas inspirações, mergulhando no fundo dos tempos.
Por isso tais recitais deveriam ser bastante assinalados e os alunos das
escolas convidados a assistir, como processo de lhes abrir o gosto literário e o
entendimento da arte literária. O texto de Nuno
Pacheco - A poesia para ouvir ganhou um lugar ao
sol – revela um grande
entusiasmo no desenvolvimento de projectos de audição de poemas, embora acrescida
da música de conhecidos cantores. Julgo que a simbiose “poesia – música”, apesar
de rica em termos festivaleiros, perde, em parte, o sentido pedagógico, que
seria mais enriquecedor como objectivo formativo. Os poemas ou os poetas
apresentados, deveriam, antes, ser precedidos de algumas reflexões sobre os
seus conteúdos temáticos e originalidade formal.
E como o texto refere David Mourão Ferreira, (omitindo, contudo Miguel Torga,
outro gigante, na sua condição humana desafiante), procurei na Internet alguns
poemas de David Mourão Ferreira, que me parece ser expoente maior, nos
seus versos de uma aparente simplicidade, na sua configuração rítmica clássica ou
vulgar e conteúdo social ou sensual tão expressivos, e, tantas vezes, feitos de
conceituosas sínteses de um virtuosismo humanista pleno de profundidade:
David
Mourão-Ferreira
Portugal
24 Fev 1927 // 16 Jun 1996
Poeta/Escritor
24 Fev 1927 // 16 Jun 1996
Poeta/Escritor
I - Natal, e
não Dezembro
Entremos,
apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal
II – PENÉLOPE
Mais
do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.
E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.
Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.
E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.
Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.
III - Elegia
do Ciúme
A
tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.
Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.
Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.
E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.
Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.
Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.
E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"
OPINIÃO
A poesia para ouvir ganhou um
lugar ao sol
Natália Correia dizia que a
poesia era para comer. É verdade, e sem risco de indigestão.
PÚBLICO, 9 de Agosto de 2018
Nas últimas três décadas, a
poesia dita ao vivo ou gravada ocupou apenas um pequeno nicho, em salas quase
clandestinas ou em ínfimas prateleiras das lojas. Mas o panorama tem vindo a mudar.
Graças a projectos como a Lisbon Poetry Orchestra, por exemplo, que junta
música e palavra dita numa bem conseguida simbiose (que já fizera escola no
projecto Wordsong); ou ao
renascimento da aposta discográfica em poesia, juntando aos discos resistentes
nas prateleiras de casas como a CNM, ao Chiado (e lá estão Almada, Ary, Carlos de Oliveira, João Villaret), reedições que juntam às
vozes dos próprios poetas leituras mais contemporâneas dos mesmos poemas. É o
caso da série …Dizem os Poetas, da Valentim de Carvalho, que
editou este ano, em CD, David-Mourão Ferreira e Alexandre O’Neill
e tem na calha, para breve, Mário Cesariny, António Gedeão e depois Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Natália Correia e Ary dos Santos. Se não é tempo de edições mais
luxuosas, como aquelas (da Presença, em livro-disco) em que Luís Miguel Cintra
gravou Fernando Pessoa (a Mensagem) ou Ruy Belo, em 1993, é pelo menos um sinal de renascimento de um género que andou tantos
anos arredado.
Não só nos discos.
Até um festival popular como O Sol da
Caparica reserva, este ano, aliado ao projecto Debaixo da
Língua (coordenado por Rui Miguel Abreu), um espaço para poesia dita
ao vivo, com música, assegurado pelo Poetry Ensemble (Alex Cortez, Filipe
Valentim, Luís Bastos e Tiago Inuit), ligado à Lisbon Poetry Orchestra. E no Porto, no Pinguim Café,
há anos que há sessões de poesia bastante concorridas, com vozes como as do actor, encenador e diseur Rui Spranger. Isto enquanto nos discos de cantores e
compositores a atracção pelo universo dos poetas continua a revelar-se
profícua. Ainda recentemente a RTP2 transmitiu a gravação de um espectáculo de Mísia (CCB, Maio de
2017) intitulado Mísia e os Seus Poetas. A
lista, neste caso, se fôssemos inventariar os poetas musicados em discos nos
últimos anos, era enorme. E qualitativamente muito interessante, com os altos e
baixos do costume. Mas tem havido discos inteiramente dedicados a um só poeta.
Exemplos recentes disso são Pérolas D’Alma, com Nuno Rodrigues (Banda do
Casaco) a cantar Florbela Espanca; ou O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis, com
poemas de Manuel da Fonseca a darem corpo a canções de Paulo Ribeiro (cantor
bejense ligado ao grupo Tais Quais).
Há
ainda, mais recentemente, neste domínio, um regresso a Fernando Pessoa. O Trio Caixa de Pandora com o Quarteto
Vocalónimus desenvolveram, com composições de Rui Filipe e Paulo Borges, o
tema Apocalipse de Fernando Pessoa e Ofélia Queirós,
que surgem na capa desenhados num fundo negro; e os professores da Escola
Superior de Teatro e Cinema Armando Nascimento Rosa (também dramaturgo) e
António Neves da Silva (pianista) passaram a disco o projecto de ambos O Piano em Pessoa (com Pessoa na capa, num
conhecido desenho de Almada Negreiros aqui encimado pelas teclas de um piano).
Factor de acrescido interesse neste último é o historial, feito por Nascimento
Rosa no livrinho que acompanha o disco, dos “Primórdios de Pessoa musicado”.
Onde se lembram “as várias criações pioneiras de Fernando Lopes-Graça (…) partir de 1934
(repare-se, ainda em vida do poeta)”, para depois assinalar que “a primeira
composição original na música popular portuguesa, com um poema de Pessoa, é de
José Afonso, em 1972: No comboio descendente.”
Depois, a lista vai engrossando, dos brasileiros Secos & Molhados (de Ney Matogrosso) a
várias fadistas (Maria do Rosário Bettencourt, Teresa Tarouca, Maria Teresa de
Noronha), passando por nomes como António Variações, Rádio Macau, Janita Salomé
ou João Braga, isto além dos discos
brasileiros Mensagem (1986)
e A Música em Pessoa (1985). Mas há mais
compositores atraídos por Pessoa. Muitos no fado, como atesta o Livro-CD O Fado e a Alma Portuguesa (2103), com
Pessoa cantado por várias vozes. Mas também musicaram Pessoa autores como
Amélia Muge (Nevoeiro e Quinto
Império), Ana Deus e Luca Argel ou
o cantor sardo Mariano Deidda, que já
dedicou quatro discos inteiros à obra de Pessoa e ainda não parou. Até a poesia
em inglês de Pessoa já foi objecto, em Portugal, de pelo menos dois projectos: Alexander Search (do grupo formado por
Salvador Sobral e Júlio Resende) e Echoes (da cantora Sofia Vitória). E há o
belo documentário brasileiro (o vento lá fora), de Marcio Debellian, onde a
professora Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia lêem e discutem
Pessoa ao vivo…
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