domingo, 24 de junho de 2018

A causa maior



O tema da liberdade sobre o qual António Barreto com tanta arte  e penetração se debruça, tem sido focado literariamente ao longo dos tempos, em contextos vários, na nossa língua. Mesmo Gil Vicente o explora, acerca da condição feminina de enfiada em casa, “como panela sem asa que sempre está num lugar”, o casamento sendo a única alternativa para uma Inês Pereira se livrar desse estado, mas só o conseguindo à segunda tentativa, depois de morto o “cavalo” – Brás da Mata - que a maltratava e prendia em casa, o “asnoPero Marques, segundo marido, levando-a às costas ao encontro do “ermitaño” da sua “liberdade” de praticar adultério sem inibições. O próprio Fernando Pessoa refere essa característica de Liberdade, como ânsia do espírito de quebrar as convenções de cumprimento do dever, em função do prazer de o não fazer, já que “livro é maçada / estudar é nada”, assim contribuindo em larga escala para esta panorâmica da idiotia do puro gozo da vida tão relevante no ensino dos nossos tempos. Mas, num contexto de sofrimento pelas atrocidades da guerra, surgiu o extraordinário poema de Aragon, como, entre nós, o pobre Bocage, preso pela Inquisição, durante o regime apertado de Pina Manique, também escreveu sobre ela, a Liberdade, em mais do que um poema do seu desespero. É entre esses que coloco o  magnífico texto de António Barreto, de jogo conceituoso em torno da interdependência entre liberdade e igualdade que as doutrinas dos actuais prazeres ideológicos mascarados de fraternidade ou solidariedade, erguem como bandeiras desfraldadas aos ventos, não da guerra e opressão, mas da paz e inacção, desencadeadoras, estas, do escape de velhos recalcamentos impulsionadores de outras guerras, talvez de não menor alcance, porque de destruição irrecuperável.
LIBERTÉ
Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom
Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom
Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom
Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom
Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom
Sur l’absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom
Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.
Paul Eluard
Poésie et vérité 1942 (recueil clandestin)
Au rendez-vous allemand (1945, Les Editions de Minuit)

Igualdade e liberdade
ANTÓNIO BARRETO
DN, 24/6/18
Qual é o valor mais importante, a igualdade ou a liberdade? Faz sentido pensar que existe um valor superior? Apesar de estar no centro dos debates políticos e filosóficos há décadas ou séculos, a questão das relações entre liberdade e igualdade nunca foi resolvida.
A verdade é que em cada momento importante de legislação, de acção ou de confronto político, o peso de cada uma, igualdade ou liberdade, é reavaliado. A resolução de tal contenda não é de carácter científico. Não se trata de ciência exacta. A resolução é uma preferência política, doutrinária e cultural.
Para uns, a liberdade não faz sentido sem igualdade. Para que serve a liberdade a um desempregado, pobre, analfabeto e sem abrigo? Só depois de estabelecidas condições de igualdade social será possível usufruir da liberdade. Considerar que a liberdade é o valor essencial significa deixar correr as lutas sociais, os afrontamentos, a competição entre pessoas e classes e permitir que uns ganhem e outros percam, eventualmente que os que ganham o façam à custa dos que perdem.
Para outros, a igualdade é impossível, nem sequer aconselhável, dado que o mérito gera desigualdade e a condição natural das sociedades é a da diferença. Considerar que a igualdade é o valor primordial exige intervenção da autoridade e o estabelecimento de condições à liberdade, a fim de impedir que esta gere desigualdade. Aceitam a igualdade de oportunidades, à partida, ou a igualdade de condição, mas não a igualdade imposta pelo poder ou pela força.
Estas discussões são interessantes. Na verdade, alimentam os debates sobre políticas públicas. Muita gente, tanto à esquerda como à direita, admite facilmente que o sistema educativo universal e obrigatório foi concebido para criar, promover e fazer progredir a igualdade social. Errado. O sistema educativo universal e obrigatório foi feito para criar um Estado ou uma nação, ajudar ao estabelecimento do serviço militar e de defesa nacional e facilitar o desenvolvimento da indústria. Nesse sentido, foi concebido para fazer progredir toda a gente, promover os melhores, alargar a base de selecção dos mais capazes, fazer trabalhar toda a gente, obter o maior número possível de talentos e acalmar a desordem... No máximo, o sistema educativo faz progredir toda a gente ao mesmo tempo, mantendo a desigualdade de origem. No pior, o sistema educativo agrava as desigualdades, pois permite escolher os melhores que acabarão por ser recompensados. Os bons estudantes, os melhores técnicos e os mais qualificados saberão melhor defender-se e subir na vida. Os piores ficarão aquém. São estes os destinos dos sistemas de educação universal e obrigatória.
O mesmo se poderá dizer dos sistemas públicos de saúde. Não são feitos para promover a igualdade. São feitos para defender e desenvolver a saúde e a vida de toda a gente! No máximo, o sistema de saúde público e universal mantém as desigualdades sociais, apesar de melhorar a saúde de toda a gente. Pode todavia admitir--se que os serviços de saúde têm um efeito social interessante: são vitais para as classes desfavorecidas, enquanto as classes com mais meios teriam sempre a possibilidade de recorrer à saúde privada. Nesse sentido, a saúde pública, sem promover a igualdade, combate os efeitos da desigualdade. Mas, no essencial, a saúde pública cura a doença, não a desigualdade.
Os serviços públicos de saúde, educação e segurança social, assim como outros sistemas, muito especialmente o de Justiça, não são concebidos para promover a igualdade, mas sim para ajudar a generalizar oportunidades aos cidadãos. Depois, são as escolhas políticas que promovem ou não a desigualdade! Que promovem ou não a igualdade.
Com liberdade, a desigualdade pode crescer. Certo. Mas com liberdade, pode a desigualdade ser corrigida. Sem liberdade, não. Pelo contrário, com igualdade, pode a liberdade desaparecer. E nascer a tirania. Quem cede em liberdade para obter a igualdade está no caminho do despotismo. Tal via dificilmente abre a porta a reformas. Quem cede em igualdade a fim de obter a liberdade corre o risco da injustiça, mas não reprime quem luta pela justiça social. A igualdade não gera a liberdade. Mas a liberdade pode gerar a igualdade.
As minhas fotografias
Pormenor da Porta de Ishtar, Babilónia Esta porta chegou a ser, ainda na Antiguidade, uma das setes maravilhas do mundo (substituída mais tarde, nessa lista, pelo Farol de Alexandria). Foi mandada construir por Nabucodonosor seis séculos antes de Cristo. Havia gravuras desta Porta nos livros de escola e nas revistas de aventuras da minha adolescência. Em 1975, integrei uma comitiva portuguesa de visita oficial ao Iraque. Nessa altura, Saddam Hussein era apenas vice-presidente, mas já o homem forte do ditador Al-Bakr. Num dia de repouso, pedi para visitar a Babilónia. Queria ver a famosa Porta. Era Inverno. Chovia. Estava frio. A chegada à Babilónia foi uma desilusão. Não havia Porta. Nem sequer ruínas decentes. Apenas lama e umas muralhas. Vim-me embora com a tristeza de um leitor do Tintin enganado. Dias depois, noutra viagem oficial, desta vez a Berlim, visito o Museu de Pérgamo, na ilha dos museus. De repente, depois do Altar, aparece, deslumbrante, uma enorme secção da Porta, de que este é apenas um pormenor! Parábola para o Ano Europeu do Património... Fotografia de António Barreto
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.


Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha… Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!
Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.
Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!
Bocage





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