Trata-se de uma entrevista,
saída na SÁBADO de 21 de Junho, a VASCO PULIDO VALENTE, com
TEXTOS de Eduardo Dâmaso e Maria Henrique Espada e FOTOS de Alexandre
Azevedo.
Vasco Pulido Valente
não podia ter parado de escrever, e esta entrevista traz-no-lo de volta, espécie
de fogo fátuo de clarificação fugaz, mas sempre ansiada, copo de água refrescante,
na nossa seca e na nossa sede. E lembrei-me de festejar esta sua aparição, com o
poema de Alberto Caeiro sobre Cesário Verde, com
muita “pena”, dele e nossa, igualmente. Porque deixámos de o ler, na sua
distância, talvez na sua indiferença, de quem parece estar doente e não
abandona o cigarro. Cesário, esse, “bebia cálices de absinto”. Mas ambos
figuram como pontos luminosos neste nosso universo português, criador, apesar
de tudo de tanta beleza. Como o Fado, que nos é propício. E com este optimismo,
vou ao encontro do optimismo de Vasco Pulido Valente, que acha hoje a sociedade
portuguesa muito mais evoluída e talvez tenha razão, apesar do défice assustador nas estatísticas sobre os resultados dos exames e apesar da invasão dos
comentadores futeboleiros nos canais televisivos do nosso estupor. Eis Cesário, pela “voz” de Alberto Caeiro, festejando uma ressurreição, ainda que breve:
Cesário Verde
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
Como a “Sábado”
não me deixa transpor a entrevista, pela Internet, terei que a ir copiando, da
revista que a minha irmã me trouxe, tarefa difícil, para guardar uma vez mais os
seus conceitos e o “modo como olha para as casas, e as ruas e as cousas”,
que Pulido Valente parou de nos mostrar, abandonando-nos a uma espécie de
orfandade saudosa. Sempre me encantaram as suas opiniões suavemente certeiras, com
alguns laivos contraditórios, por vezes, e de uma serenidade fictícia porque
mordaz, pairando alto sobre os, de nós, que somos joguetes de artifícios de
sobrevivência, de aparência mais frutuosa e real, é certo, próprios de um povo,
afinal, bastante ardiloso como conquistador de espaços – “cada um é seus
caminhos”. Só podemos desejar a Vasco Pulido Valente a saúde necessária
para continuar, de vez em quando, a apresentar os seus breves retratos
políticos, de que a entrevista da SÁBADO dá conta, sérios e didácticos, embora
já não consiga “castigare mores”, quer “ridendo” quer “plorando”,
característica, esta última, fora do seu propósito de literato e mentor, embora
mais brando hoje. Mas lamentamos a desistência. Copiemos, pois, como esteio nosso,
e recreação:
Foi você que pediu
acidez? O mais duro cronista político português serve-a em doses generosas, em
entrevista à SÁBADO.
“Tem 76 anos e há um
que deixou de escrever as crónicas mais mordazes da imprensa. Não deixou de
pensar sobre a política, o País, mas recusa ser pessimista. Mordaz, ainda é.
E nem Marcelo Rebelo de Sousa escapou às críticas. Que pode ler na
edição Nº 738 da SÁBADO, nas bancas dia 21.”
Voltou à escrita com um livro, Do
Fundo da Gaveta, em que recupera dois episódios históricos do séc. XIX. Porque
é que acha que têm paralelismo com a actualidade?
O primeiro, não. Pode
talvez mostrar as diferenças na descolonização portuguesa, na forma como
perdemos a colónia do Brasil e como perdemos o resto das colónias. Esse
primeiro ensaio é um fragmento de uma história que eu nunca escrevi. E o outro
fragmento resolvi publicar porque há paralelos muito claros com o que se passa
hoje, esse sim. É sobre as reivindicações e os movimentos da classe média e da
baixa classe média e o papel do Estado nesse conflito. E o papel da pobreza
nacional. Os movimentos políticos em Portugal dessa natureza esbarram nos
problemas do défice e da dívida do Estado.
É uma constante?
É. Quando se reivindica, há
mais défice. Se a classe política depende do Estado, e está a reivindicar uma
parte maior do rendimento nacional, vai aumentar o défice. Os défices
acumulados dão a dívida. O problema da bancarrota ameaça sempre toda a parte
produtiva e comercial da economia.
E tivemos esse concentrado nos
últimos anos: a pré-bancarrota com Sócrates, depois o discurso antidívida e
agora esta libertação. É um labirinto histórico?
As pessoas não têm memória
histórica, mas isso é o que se passou no século XIX: tivemos várias
bancarrotas. O Estado faliu rotundamente em 92 -93 e esteve sempre em
pré-falência pelo meio. Faliu em 34, em 51, em 46... Isso aconteceu sempre. Tendo
em conta essa dimensão histórica, Passos Coelho foi quem se aproximou mais de
um certo realismo sobre a situação do País?
Foi muito acusado de apelar ao
empobrecimento.
Passos Coelho foi
demonizado em benefício da coesão da geringonça. A geringonça precisava de um
inimigo, foi Passos Coelho. Foi uma das pessoas mais vilificadas na política
portuguesa, o que é absolutamente impensável. Tenho o maior respeito e
consideração por Pedro Passos Coelho. Fez o que era preciso. Se não tivesse
feito o que fez provavelmente teria havido uma crise social violenta. As
consequências de ele não ter feito o que fez teriam sido gravíssimas, como as
que teve a Grécia. Teria condenado as pessoas não a três ou quatro anos de
relativa pobreza, mas talvez a 10 ou 15. Ele evitou uma crise social e deixou
os fundamentos para a restauração de uma certa normalidade – não digo
bem-estar, mas uma certa normalidade – que permitiu depois acompanharmos o
crescimento da Europa.
Acredita no discurso do virar de página da austeridade?
Não. Não acredito nada
neste discurso. É pura propaganda política. O que o António Costa fez foram
pequenos ajustamentos de uma situação que tende a ficar bloqueada. O que se
discute é 1% do défice. 1,5% do défice mais 2% de aumento, de aumento para
estes ou para aqueles.
Inventou a palavra geringonça. Que é algo, por definição, periclitante.
Esperava que aguentasse tanto tempo?
Esperava. Acho que os
problemas podem vir de outros lados, mas não dos que normalmente se diz que
vêm. Ou seja, não do PCP, mas do BE. O PCP era uma aliança impossível para o PS
até ter desistido de tomar o Estado português. O PCP era um partido
revolucionário, foi sempre, no sentidon que a sua política principal foi sempre
tomar o Estado português. Mas depois do que aconteceu à URSS e do isolamento
diplomático e cultural em que acabou por ficar, o projecto de tomar o Estado
português ficou fora de questão. A partir daí a aliança com o PS era
perfeitamente natural.
Com o BE é diferente?
Com o BE é diferente, mas
isso levava-me a outro assunto, que é o que eu penso da sociedade portuguesa
como ela está hoje.
E o que é que pensa?
Houve algumas grandes mudanças
que as pessoas não estão a tomar em conta quando falam de política. Para mim,
que tinha 32 anos quando foi o 25 de Abril, a sociedade portuguesa, como está
hoje – e costumam dizer de mim que sou um pessimista , não sou nada um
pessimista – é um milagre. Ninguém em Portugal, quando eu tinha 20, 25 anos,
conseguia imaginar sequer que pudéssemos um dia viver numa sociedade democrática-
com desigualdades de vária ordem, é verdade - , mas liberta da pobreza horrivel
daquele tempo. Os progressos que fizemos são enormes, não há nenhuma
possibilidade de ser pessimista.
Onde é que O BE se vem encaixar nessa nova sociedade, a partir dessa
mudança?
Toda a gente diz: ”ah,
pessimista”. Não há nada pessimista - acho que, apesar de tudo, se fizeram
coisas extraordinárias. Conseguiu-se fazer um Serviço Nacional de Saúde (SNS) e
educar a população - talvez mal. Eu sempre critiquei os ministros da Educação,
que não queriam deixar ninguém fora do sistema educativo, o que produziu um
declínio da qualidade.Tenho pensado muito nisso, ainda não decidi se era eu ou
eles quem estava errado. Mas meteram toda a gente no sistema de Ensino e
começamos a ter uma população altamente educada.Todos os anos entram 30 mil
alunos para a faculdade. E as profissões que antes não eram qualificadas hoje
são altamente qualificadas.
Está quase a convencer-nos de que é mesmo optimista.
Não, isto não tem grande
optimismo, vai ver .E por um lado , as profissões tradicionais da classe média,
os advogados, arquitectos, estão a ser proletarizados. Já muito poucas pessoas
podem pôr uma tabuleta à porta e dizer ”eu sou médico, advogado, arquitecto”. Temos
grandes ateliés de arquitectos, grandes escritórios de advogados, e os médicos estão
proletarizados. Há uma uma massa de pessoas que dependem do seu trabalho para
viver. São muitas e cada vez mais qualificadas. Mesmo as profissões que já
existem têm uma muito maior densidade técnica. Toda a gente diz “nova classe
média”, eu quando digo, é disto que estou a falar. Se pensar na sociedade
portuguesa com a forma de uma pêra, há uma tira gorda no meio, formada pelos de
cima, que caíram, e os baixos, que subiram - e há ainda uma base mais pequena
mas relativamente larga…
E essa tira grossa é importante politicamente?
É decisiva, faz uma diferença
histórica: nunca antes uma mudança envolveu uma parte tão grande da população. Mas
esse desenvolvimento português teve vários defeitos. Foi desequilibrado, houve
uma transferência da população para o litoral como nunca tinha havido, e há uma
sociedade moderna no litoral e numa parte no interior norte, centro, menos, e
no Algarve. Mas ficou uma sociedade arcaica, que não participou da
modernização.
É mesmo o interior esquecido?
Foram precisos os incêndios
para as pessoas se aperceberem de que afinal havia uma sociedade arcaica. E
falam do desenvolvimento do interior… nós temos uma sociedade arcaica que não
pode sobreviver. Uma agricultura quase de subsistência, uma industria de pequeníssima
produção, pouca capacidade para se transformar, e uma sociedade que não tem
condições para acompanhar a evolução da sociedade.
Marcelo tornou-se o porta-estandarte dessa sociedade, ao ponto de quase
ter feito um ultimato político ao governo, dizendo “se houver repetição dessa
tragédia”…
Marcelo tira selfies e dá
beijinhos a toda a gente, por amor de Deus…
Mas essa explosão emocional está ligada a esse interior que referiu.
O tipo de pessoa que Marcelo é
permitiu que fosse dar abraços e beijinhos a todas as velhinhas de Portugal que
estvam a chorar, e eram muitas. Isto não é uma poíítica. Isto não é sequer uma
representação. Ele não ficou a representar aquelas pessoas. O que é que ele
representa? Ele não representa nada.
Mas ficou a ideia, que ele conseguiu projectar, de que se a política
não serve para resolver ist , então não serve para nada.
Mas ele não representa uma
solução. Nem sequer uma direcção política.
Como é que vê a popularidade que ele tem nas sondagens, por exemplo , e
que é maior do que a de qualquer presidente anterior?
Como não representa nada, não
há razão nenhuma para uma pessoa qualquer, de qualquer ponto da sociedade, não
gostar dele. Eu não gosto,não desgosto, acho que ele é um presidente
implausível.
E um Presidente implausível é um bom ou mau presidente?
É um presidente divertido. Eu
conheço a personagem há muito tempo. Acho o espetáculo divertido.
Dizia que a nova classe média proletarizada altera a situação política.
Como é que altera?
Já pensou em quem vota essa
classe média? Isso nunca foi estudado. Há umas vagas sondagens que dizem que
dos 30 anos para baixo, 70% das pessoas se abstêm. Mas acho que dessas pessoas,
os que votam, devem votar no BE e uma pequena parte no CDS. Porque o PSD é cada
vez mais um partido do Norte rural e força opositora do Sul, o que é uma coisa de
que eu não gosto.
Vê isso em Rui Rio?
Não só no Rui Rio , mas em
todas as pessoas que o cercam. São presidentes de cÂmaras municipais do Norte,
são, calculo, o grupo com que o Rui Rio se reunia ao Sábado, em Leça ou num
sítio assim…
Rio parece procurar alguns consensos com António Costa, fala em
reformas. Tenta com isso libertar o PS dos seus parceiros na gerigonça, cujo
pensamento sobre a sociedade é mais radical?
O BE não tem pensamento
nenhum sobre a sociedade. Por isso digo, ou desconfio, que essa massa de gente
vota no BE. Porquê? Primeiro porque estão revoltados com a sua situação social.
As competências que têm não têm correspondência entre uma coisa e outra. Estão
zangados, e vivem em conflito com a forma como a sociedade está organizada, e
votam no BE porque é um partido de reivindicação, radical, mas inconsistente. Querem
mudanças radicais.
Mudanças que o PS agora parece querer abandonar.
O PS já não representa essas
pessoas, mas o BE representa e a ala esquerda do PS - o que é indistinguivel do
BE e que tem o seu lider, o Pedro Nuno Santos – quer representar. E a solução
que Pedro Nuno Santos dá a grande parte dessas pessoas é uma intervenção do Estado
maior. Estatizando por exemplo, todo o SNS, onde se deve mexer com pinças ,
porque é a única coisa que nos distingue. É a maior façanha portuguesa dos
últimos 40 anos. A proposta de PNS é acabar com a participação dos privados no
SNS e que os médicos estejam a tempo inteiro no Estado. Faz essa proposta na saúde
e no ensino. Acho que essa direcção seria muito má.
E a tensão que existe dentro do PS neste momento.Como é que acha que
vai acabar?
Este universo da esquerda do
PS está a aproximar-se cada vez mais do BE e juntos podem trazer grandes
mudanças ao panorama político português. O António Barreto deu uma
entrevista em que diz que a pessoa com maior futuro na política portuguesa é
Pedro Nuno dos Santos. Eu direi que se calhar é, mas é um péssimo futuro para
os portugueses. Nas próximas eleições vai-se pôr o problema: o PS governa
sozinho ou governa com o BE? Com o PCP não.
E com o PSD?
Acho que não.
Porque o PS não vai querer?
Acho que o PS se comprometia
para o resto da sua existência se fizesse um bloco central. A única pessoa até
hoje no PS que podia ter feito, foi a que o fez, foi Mário Soares. Porque era
uma personagem tão grande que cobria tudo. O António Costa não é uma personagem
da dimensão de Soares. E mesmo Soares acabou com 8% no arranque do MASP (Movimento
de Apoio Soares à Presidência). Toda a gente sabe isso no PS. Nunca se vão
aliar ao PSD. Ninguém acredita nisso, no
PS ou na esquerda.
E no PSD acha que acreditam?
O PSD que está agora não
percebe as realidades políticas. É um partido de provincia. É gente do Norte,
que está entricheirada e é contra Lisboa. Rui Rio tem o escritório no Porto.
É dai que vem a frieza do PSD para com Assunção Cristas, é mais uma
Lisboeta?
Não vou falar de Assunção
Cristas… (Risos) Não é para rir, não vou falar mesmo. Não sei em que
direcção é que ela vai. Acho que fez uma boa campanha para a Câmara de Lisboa,
teve 20%, de resto ainda não se percebeu o que ela quer.
Ela diz que quer disputar com o PSD a liderança do centro-direita.
E o que é que isso significa? Quando
ela sai de casa todas as manhãs, o que é que isso significa? E para o cidadão
comum ? Absolutamente nada.
É uma declaração ambiciosa mas vazia?
É vácua. Na política, para se
fazer alguma coisa, tem de se saber com quem, a quem é que nos estamos a
dirigir, para fazer o quê. Nada disso foi dito, não me posso pronunciar. Como é
que isto está organizado e quem é quem, e quem é que tem o poder de fazer quem.
Por exemplo, as universidades privadas andam por aí a distribuir diplomas das
maneiras mais extraordinárias e as pessoas servem-se disso - e bem - para
avaliar os políticos. Como o Sócrates, que fez um exame ao domingo, e o outro
que tirou 14 cadeiras a uma terça-feira, mas e as universidades a que
pertencem? Fizeram inquéritos?
Toda essa questão dos cursos feitos ao Domingo, os secretários de
estado que aceitam viagens pagas por empresas para ir ao futebol, representam
todo um caldo cultural de uma siciedade que não sabe respeitar as exigências…
Não é as exigências, são as
instituições. A vida das pessoas e a política são cada vez menos institucionais.
Os partidos não são instituições, são agregados de pessoas que não têm respeito
nem veneração por nada. Veja-se o caso do PS, que teve como secretário-geral e
primeiro-ministro José Sócrates, durante seis anos. Por amor de Deus, eu
percebi quem era aquele senhor nos primeiros minutos… Não era preciso ser um
génio.E aquele partido nem hoje é capaz de dizer: ”Este senhor fez muito mal a
esta instituição.”
O PS teve um silencio cúmplice?
Isso mostra que a política
portuguesa é cada vez menos instituicional. Os partidos não são instituições. Um
partido não pode estar à mercê como o PSD por exemplo, do senhor que vem e faz
três andares de conselheiros, porta- vozes, ministros-sombra… Isto é respeito
institucional? O que é? As pessoas chegam aos partidos e fazem estas barafundas?
Disse que qualquer pessoa percebia em 10 minutos quem é Sócrates mas
alguns dos que trabalharam com ele, e estão no Governo, não perceberam ou
fecharam os olhos? O que se passou ali?
O que se passou ali é que ele
tinha um programa de televisão! Foi a primeira pedra com que eu fiquei no
sapato. Foi a própria maneira como ele foi escolhido. Isto continua a suceder. Um
programador de televisão - que nós não conhecemos e se guia por regras que nos
são estranhas - escolhe uma pessoa porque tem boa imagem de televisão, boa
cara, bom cabelo, uma boa voz, e cria um programa. Só por acaso é que acertam
numa pessoa com carácter. Num bom líder político o carácter vem antes da
inteligência e de todas as qualidades que ele precisa de ter.
O António Costa teve um programa de televisão, é dado com hábil,
pergunto: para si, tem carácter?
Acho que ainda não foi posto à
prova. Como governante não tomou uma grande decisão. Para mim, é um homem do
aparelho, incaracterístico, que está a administrar uma situação de bloqueio. Não
percebo é porque é isso passa por habilidade.
Chegou a dizer que a geringonça não seria repetível e que isso abriria
uma crise de regime. Ainda acha isso?
Pode haver um grande
solavanco… Quando falei da mudança de regime estava a pensar numa mudança dos
partidos e na distribuição do voto por eles. O que eu acho é que vai haver um
problema sério com o PS, que terá uma escolha muito difícil entre governar com
o Bloco ou não. A questão passa por saber se vai haver uma aliança de governo
com o BE e se há membros do BE que vão para o governo: se o BE é absorvido pela
ala esquerda do PS ou se há saídas desta para o BE. Não sei o que se passa no PS,
mas sei que o Pedro Nunes dos Santos
disse numa entrevista ao Público , e foi o único, que há um proletariado
de classe média a que o PS tem de se dirigir. Foi o único que percebeu que há
essa nova força enorme na sociedade. São professores, enfermeiros,
informáticos, gestores, advogados, médicos, analistas, arquitetos, técnicos de
diagnóstico, fisioterapeutas, etc. Com as mesmas características: alta
qualificação técnica mas sem prestígio social que antes lhe correspondia. Estão
frustrados poque desceram ou não subiram socialmente, e têm uma coisa comum a
todos, que é a brutal precariedade na vida deles. Normalmente as pessoas falam
em precariedade no emprego. Mas há uma precariedade mais importante: a da
situação social. Quando me formei fiquei com um estatuto para a vida: abaixo de
certo nível, já não caía. Agora não é assim. As pessoas podem estar
formadíssimas, ter mestrados, ter douturamentos e ganhar 800 euros por mês, mas
amanhã estarem desempregados ou encalacrados numa estagnação salarial e de
carreira. Essa precariedade é terrível. Exige às pessoas muito mais coragem. Vivem
numa ansiedade maior. É preciso que alguém se diriga a essas pessoas. A única
pessoa que até hoje o disse foi o Pedro Nuno Santos.
Concorda com ele?
Ele disse isso preconizando um
aumento do Estado - na Educação, na Saúde, etc. Ora eu acho que se deve fazer o
contrário - não na saúde e na educação - deve-se abrir uma carreira ao mérito,
como se dizia no séc. XVIII. Essa é que deve ser a grande reeinvidicação
Portuguesa: mérito de instituições, de pessoas, e que isso seja recompensado e
protegido pelo Estado.
António Costa não percebeu essa mudança social de que fala?
Eu não especulo sobre o que o
dr. António Costa pensa. Parece-me pessoalmente desinteressante. Nasceu na
esquerda, tem uma mãe e um pai altamente considerados na esquerda, nasceu ali, foi
muito bem educadinho, é um primeiro-ministro de esquerda, pronto… Não é uma
personagem surpreendente e, nesta altura ,talvez seja bom que não o seja.Mas
também não acho que seja particularmente habilidoso. O Centeno, o Santos Silva,
Vieira da Silva, o Eduado Cabrita, os grandes homens da administração mantêm o
barco, António Costa é o árbitro disso.
Vê alguém no actual panorama político que lhe mereça admiração política
e intelectual?
Nenhum político. Ainda há uma
ou duas pessoas por quem tenho admiração intelectual, como o embaixador José
Cutileiro.
Mas já disse que tem uma relação ,não digo de admiração, mas de respeito
por Passos Coelho.
De grande respeito. É uma
extraordinéria pessoa que foi um grande primeiro-ministro e ainda se vai
reconhecer isso.
Ainda há um caminho político para ele na política portuguesa?
Não sei o que ele quer.
Mas acha que vai recuperar o seu prestigio político e ser candidato a Belém?
Isso é automático, já
recuperou grande parte e vai recuperar muito mais. Quando a gerigonça começar a
desfazer-se, ele vai aparecer como de facto é e como de facto foi.
Vai escrever as suas memórias?
Não. Isso implica falar de
pessoas e eu não sou muito bom com pessoas genericamente – compreendo-as mal, trato-as
mal - de maneira que não. Acho que sairia tudo trocado.
Teve duas passagens, mais próximas, pela política…
Eu tive duas participações na
política. A de deputado não conta. Eu fui para lá e senti-me envergonhado
durante os três meses que lá estive. Aquilo era uma ociosidade organizada. Trabalham
as direcções dos partidos que depois comunicam às pessoas como votar. As pessoas
vão para lá, lêem os jornais, tomam dois cafés e depois vão para casa. Isso é
vida para alguém? Eu quando fui deputado tinha um sentimento esquisito que já
tinha sentido e não identificava. Quando é que tinha tido? Depois descobri: era
quando faltava às aulas no liceu. Eu fiz duas incursões na política: uma foi
com Sá Carneiro, outra com o Mário Soares, que dependeram directamente de um e
de outro. Não das organizações. Como já disse, eu sou muito mau com as pessoas
e nunca teria progredido num partido.
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