Eu só me pergunto porque é que
os países de maior envergadura – cultural, económica, social – não andam, como
nós, assanhados em torno de uma prática de arrogância inqualificável sobre a
manipulação da vida humana para efeitos de liquidação desta, quando representa
estorvo definitivo. Como nos não envergonhamos e tentamos mascarar o crime sob uma
capa de falsa misericórdia, quando o que isso denota é uma real insensibilidade
e frieza de especulação, a par, evidentemente, da nossa qualidade irremediável
de pobretanas, que não vêem outra solução para os problemas de uma economia
degradada, a não ser a de desfazermo-nos do que estorva e já não produz, além
de incomodar?
Realmente, pensei outra coisa de João Miguel Tavares. O seu artigo,
sobre a eutanásia, que apontava para o referendo, entre outras coisas, de
repente revelou-se alinhado com a opinião que é a favor da tal eutanásia. Isso mereceu-lhe vários comentários críticos, entre
os quais destaco alguns aclaradores da questão. Tenho pena de João Miguel
Tavares, tão vivo e sensato e de repente alinhando entre os avançados do
progresso, não sei se para não ser taxado de Velho do Restelo, o que seria
desprimoroso para a sua juvenilidade, que gosta, acima de tudo, de provocar
para se distinguir. Que pobreza! Que desilusão!
Destaco, é claro, o artigo de , de
um bom senso e clareza irrefutáveis, que nos devia envergonhar, se fôssemos
capazes dessa vergonha. Mas a tal “democracia” liberalizadora livrou-nos dela,
da vergonha, ao encher-nos de arrogância, própria, decididamente, da nossa pobreza
de espírito, a par da outra, da pobreza económica, que nos atou à cadeira de
rodas da nossa impotência desavergonhada.
OPINIÃO
O “sim” à eutanásia perdeu – mas vai ganhar
Se os referendos não foram
inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas
quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 31 de Maio de 2018
Sim, é só mesmo uma questão
de tempo, mas em democracia é importante que as coisas sejam feitas da forma
certa, no momento certo. Mais cedo que tarde, a prática da eutanásia vai ser
legalizada em Portugal, pela simples razão de que quem a deseja luta por ela
com muito mais energia e afinco do que quem não a deseja. Já aconteceu assim
com a legalização do aborto. Contudo, a aprovação da eutanásia no
Parlamento em 2018 estaria sempre ferida de falta de legitimidade democrática,
e chumbá-la foi a decisão certa: o tema não constava dos programas eleitorais
dos maiores partidos; não foi convocado um referendo; o debate não foi tão
alargado e profundo quanto o tema merecia; há dúvidas fundamentadas de
constitucionalidade que têm de ser esclarecidas; e Marcelo Rebelo de Sousa iria
certamente vetar a lei se ela fosse aprovada pela margem mínima. Para quê,
então, fazer as coisas mal e atabalhoadamente, se se podem fazer bem e de forma
ponderada?
E fazer bem feito
significa fazer assim:
Em primeiro lugar, os
partidos devem manifestar a sua posição em relação ao tema nos seus programas
eleitorais, para que aquelas pessoas que são como Cavaco Silva – ou seja, que
recusam votar em partidos que apoiem a legalização da eutanásia; ou que, por
outro lado, recusem votar em quem não a apoia – possam dirigir-se às urnas
devidamente esclarecidas.
Em segundo lugar, deve
ser promovido um referendo sobre esta matéria. Se os referendos não foram
inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas
quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem. Como explicou Luís
Aguiar-Conraria no Observador, não faz sentido que um socialista que se oponha
à eutanásia seja obrigado a votar no CDS ou no PCP só porque não concorda com
um ponto do seu programa. Tal como um comunista ou um democrata-cristão deve
poder votar no PCP ou no CDS, mesmo discordando das opções dos seus partidos
nesta matéria. A solução para este impasse (e para as angústias do professor
Cavaco Silva) passa obviamente pelo referendo.
Em terceiro lugar, deve
existir um debate muito alargado e muito bem esclarecido sobre aquilo que está
em causa. Eu já referi isto no meu texto de terça-feira e volto a insistir,
porque é um aspecto fundamental, que não vejo sequer estar a ser posto em cima
da mesa. Não é admissível estarmos constantemente a ouvir falar em
“descriminalização” ou em “despenalização” da eutanásia e depois sermos
confrontados com a instituição de um verdadeiro direito à morte assumido pelo
Estado e subsidiado pelo Sistema Nacional de Saúde. São duas coisas totalmente
diferentes. E há pessoas, como eu, que concordam com a primeira parte (a
descriminalização) e discordam profundamente da segunda (a subsidiação).
A nossa primeira
obrigação nestas matérias é manter a clareza da linguagem e a resistência às
demagogias – e tão demagogos são aqueles que para criticar a legalização da
eutanásia inventam espantalhos que pura e simplesmente não existem na lei
(tipo: a aniquilação de todos os doentes incómodos); como são aqueles que
enchem a boca com os grandes méritos da descriminalização, quando aquilo que na
prática estão a fazer é criar uma estrutura estatal e um mecanismo burocrático
de execução de doentes a pedido, dentro dos hospitais públicos. Não se pode
invocar o liberalismo para dizer “deixem passar a eutanásia, porque só a
pratica quem quer”, e depois, no final, requisitar os impostos de toda a gente
para pagar a conta.
Alguns Comentários:
Gustavo Garcia, 01.06.2018: Que lamentável
artigo. Descobrimos que JMT considera, e bem, moralmente aceitável que se
pratique a eutanásia (e, portanto, se despenalize) mas moralmente inaceitável
que se permita a um cidadão ter acesso à mesma através de um SNS que esse mesmo
cidadão também paga! Só para que não sejam os tostões de JMT a
"subsidiar" (não é nada disso, ainda por cima) a decisão de um outro
cidadão. Absolutamente ridículo.
José P., Lisboa 01.06.2018: Que
pena... Quando li o subtítulo apeteceu-me dizer: "tão esperto, o
rapaz". Depois comecei a ler e pensei: Boa, até me identifico com o
exposto. Debate, clarificação, referendo. Que pena ter acabado tão mal. JMT
acha que deve haver debate e referendo, ok, mas vai dizendo que, para ele, o
importante é saber quem é que paga a conta. Pena não ouvir, por exemplo, a
opinião de Manuela Ferreira Leite. Entenderia que, neste caso, se há variável
que não deve entrar na equação, é essa. O estado deve estar para ajudar a lutar
pela vida, ou para aquilo que o coletivo considerar necessário, num quadro
social "frágil e de pessoas pobres". Rever-se-ia JMT numa eutanásia
dos ricos em Portugal? Os pobres que se atirem da ponte? Não consigo entender
esse nível de egoísmo.
tiago_volkov, 31.05.2018: Tenho sérias
dúvidas neste assunto, e, como cidadão, quero ter algumas dúvidas esclarecidas.
Porquê eutanásia? Porquê agora? O que despoletou essa necessidade? O que é
morrer com dignidade? Porque é que viver com sofrimento permite-se eutanasiar?
Como medir o sofrimento que justifique eutanasiar? Qual a diferença entre
eutanásia e suicídio? Quem está a pedir a eutanásia, sãos ou doentes à espera
que a doença os leve? E tenho mais dúvidas, mas por agora estas. Se alguém
puder explicar ou ajudar a entender. Por princípio e porque tenho dúvidas, voto
não.
…………..
A ‘morte digna’ da eutanásia /premium
OBSERVADOR, 2/6/2018
Nova votação sobre a
eutanásia?! Porque não repetir também o referendo do aborto?! Para alguns
antidemocratas, as derrotas são precárias, mas as vitórias são definitivas.
Não se percebe a
indignação dos defensores da eutanásia pelo facto de os projectos-lei, que
propunham a sua legalização, terem sido rejeitados pela Assembleia da
República, no passado dia 29. Não só porque foi uma decisão democrática, mas
também porque os ditos projectos-lei tiveram, como os defensores da eutanásia
propugnam, uma morte rápida e sem dor, ou seja uma ‘morte digna’. Mas, voltar à
carga, já na próxima legislatura, não será um caso de ‘distanásia’ legislativa,
ou de ‘encarniçamento’ antidemocrático?!
Alguém escreveu:
“Direita chumba. Esquerda avisa que vai ter de repetir, até passar”. É salutar
esta persistência, quando se trata do insucesso escolar, mas não a propósito de
uma decisão democrática. Ou será que só são democráticas as votações que se
ganham?! Será também de repetir o referendo sobre o aborto?! Para alguns
antidemocratas, as derrotas são sempre precárias, mas as vitórias definitivas …
Esta vitória não foi da
direita nem da esquerda, mas de todo o povo português, pois esteve prestes a
ser traído pelos seus políticos que, sem o seu consentimento, nem sequer
tácito, se propunham tomar uma decisão da maior transcendência. É curioso que,
aqueles que consideraram esta questão como sendo de consciência, não tenham
achado que, precisamente porque não tinha sido consultada a consciência dos
seus eleitores, os não poderiam representar nessa decisão. Ou será que, a única
consciência que conta, é a dos deputados?! Como só na próxima legislatura será
possível voltar a propor a despenalização do homicídio a pedido, nenhum partido
político, quando se apresentar às próximas eleições legislativas, poderá evitar
esta questão, nem comodamente relegar o tema para a consciência de cada
deputado. De facto, para que serve um partido que, em questões destas, não toma
partido?!
Só dois partidos
assumiram institucionalmente a defesa da vida: o CDS e o PCP. O primeiro,
porque se reconhece nos princípios do humanismo cristão; o segundo, porque
defende a inviolabilidade da vida humana – foi aliás o PCP que propôs este
princípio na Constituição – e não ignora os efeitos sociais catastróficos que a
legalização da eutanásia acarreta e que os pouquíssimos países europeus que a
legalizaram – Holanda, Bélgica, Suíça e Luxemburgo – conhecem por experiência
própria.
O partido do governo,
ainda mergulhado na profunda crise moral que resulta do caso Sócrates e não só,
posicionou-se à margem do humanismo, alinhando com o extremismo do Bloco de
Esquerda, seu parceiro na coligação parlamentar. Tendo em conta que a quase
totalidade dos seus deputados votaram a favor da eutanásia, pergunta-se: há
coerência num católico que vota num partido que defende teses tão anticristãs?!
A matriz
social-democrata do PSD era, em Sá Carneiro, compatível com os princípios do
personalismo cristão e da Doutrina Social da Igreja, em que o fundador do
partido se revia. Não assim o seu actual presidente que, não só é partidário da
eutanásia, como também fez campanha pela sua legalização, colaborando
activamente na publicação que, em prol desta causa fracturante, o
ex-coordenador nacional do Bloco de Esquerda patrocinou. É sintomático que a
própria bancada parlamentar do PSD não tenha acompanhado, nesta sua opção, o
presidente do partido, cuja liderança ficou assim ainda mais fragilizada. Não
parece que essa sua opinião pessoal, que não foi partilhada pela maioria dos
seus deputados, seja a da maioria do seu eleitorado, nem consta que tenha sido
legitimada por nenhuma instância partidária.
De facto, só duas
deputadas do PSD votaram a favor dos quatro projectos-lei que propunham a
despenalização do homicídio a pedido, as mesmas que votaram também a favor de
outras causas fracturantes, como as barrigas de aluguer e o aborto, sendo uma
delas a responsável pela humilhante derrota do partido em Lisboa, nas últimas
eleições autárquicas. Se, nas próximas eleições legislativas, o presidente do
PSD se mantiver favorável à legalização da eutanásia, ou o respectivo grupo
parlamentar não se empenhar na defesa da vida, é previsível que, como Cavaco
Silva já disse, o que resta do seu eleitorado cristão emigre definitivamente
para outro partido, ou opte pela abstenção.
Estão também de parabéns
os médicos portugueses que, pela voz autorizada do seu bastonário e de todos os
que o precederam nesse cargo, rejeitaram liminarmente a eutanásia. Outro tanto
se diga do ‘Stop eutanásia’ e outros movimentos cívicos, como “Toda a vida tem
dignidade”, que promoveram debates sobre esta questão, não obstante a
parcialidade pró-eutanásia de quase todas as televisões e jornais de
referência.
Embora de forma pacata e
sem se envolver nas lutas partidárias, também a Igreja católica está de parabéns,
sobretudo pelo seu sereno e fundamentado contributo para o esclarecimento de
todos os cidadãos e, em especial, dos seus fiéis, como é sua indeclinável
obrigação. Foi muito oportuno e pertinente o documento a este propósito
divulgado pela Conferência Episcopal Portuguesa, em 2016, com o título
“Eutanásia: o que está em jogo? Contributos para um diálogo sereno e
humanizador”, com um muito pedagógico “Anexo” com “Perguntas e respostas sobre
a eutanásia”. Também foi muito enriquecedor o contributo público de vários
sacerdotes, nomeadamente os jesuítas P. Miguel Almeida e P. Miguel Gonçalves
Ferreira.
Mas, não é verdade
também que alguns ‘católicos’ não só se manifestaram publicamente a favor da
eutanásia como até foram proponentes de algum dos projectos-lei a favor da
legalização do homicídio a pedido?! Certamente, mas a identidade cristã não se
afere pelo que cada um possa dizer de si mesmo, mas pelos seus actos porque,
como diz São Tiago, é pelas obras que se conhece a verdadeira fé (cf. Tg 2,
14-26).
A este propósito,
recorde-se a parábola dos dois filhos: um diz que sim, mas faz o contrário,
enquanto o outro diz que não, mas depois arrepende-se e faz o que deve (cf. Mt
21, 28-32). Nos Actos dos Apóstolos narra-se também a exemplar punição do casal
que, fingindo ser cristão, o não era nas suas palavras e acções (cf. Act 5,
1-11). O Catecismo da Igreja Católica, ao mesmo tempo que desautoriza a pena de
morte (cf nº 2267 e “A Igreja e a pena de morte”, no Observador de 4-3-2017),
também afirma que, “quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia
directa”, que “consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou
moribundas”, é sempre “moralmente inaceitável” (nº 2277). Portanto, quem a
defenda consciente e deliberadamente, mesmo que tenha sido baptizado,
obviamente não é católico. Mas está sempre a tempo de se arrepender e converter
ao Evangelho da vida.
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