Não posso dizer que não gostei do artigo de Alberto Gonçalves. Gosto
sempre dos seus textos, mesmo quando me ferem a susceptibilidade. Como este de
hoje, impecável na sua análise em que se admira uma inteligência deslumbrante e
ferina, construindo uma argumentação de fim do mundo, onde ninguém se salva,
pois não é essa a pretensão do seu autor por todos nós, já na esteira de Eça, pela
voz inflamada de Ega, que nos considerava «a mais miserável raça da
Europa», expressão que pegou e se
nos colou ao cachaço vergado.
Está, de facto, uma
argumentação de arromba, e repito o ponto
de vista abrangente de Alberto Gonçalves «Enquanto a esquerda sonha em subjugar a natureza humana à lei, a
“direita” reza para que a lei a limite, o que não sendo o mesmo é igualzinho.
Uns querem aval do Estado, os outros a objecção do Estado».
Não, não escapa ninguém, e todos, direita e
esquerda, se apoiam no Estado, para resolver a questão da eutanásia. A
esquerda, para torcer um costume que tem proibido os assassínios, punidos, até
aqui, por lei. A direita porque, preguiçosamente, nunca tinha pensado nisso nem
estudado o caso, baseando-se numa lei consuetudinária, e numa moral ancestral
que respeita o dom da vida, nas suas contingências.
Alberto Gonçalves, como não se
dispõe a denunciar o que lhe vai na alma, na questão da eutanásia, prefere
atacar tudo e todos, condenando, e muito bem, a “pornografia confessional
em voga”, apoiados que somos no direito à “liberdade individual”,
característica humana que justifica todas as infracções, a começar no bullying
que se pratica nas escolas e se trata com muita deferência para com os
infractores, em defesa da mesma liberdade individual estabelecida aquando da
mudança para a democracia, e cada vez mais empenhadamente seguida, com esta
aliança das esquerdas em que vivemos. O certo é que a esquerda manda e muito já conseguiu, como muito
bem informa Alberto Gonçalves, no seu texto de uma argumentação paralelística,
por antitética que seja, e que conflui, como sempre, na sua visão negativa
sobre tudo e todos.
Mas quando leio tantos comentadores de direita, ou ouço Lobo Xavier, na
Quadratura do Círculo, nas suas objecções à tal despenalização da
eutanásia, não penso que os seus argumentos enfermem de vícios que levam
Alberto Gonçalves a incriminar uns e outros. É claro que a lei pretendida
depende do Estado, e por isso a direita recorre à objecção desse Estado,
tal como a esquerda o faz, esta por puro sonho de lixar, a coberto de uma visão
falsamente piedosa.
É por esse motivo, porque acredito na racionalidade distintiva dos seres
humanos, e na sinceridade dos bons princípios, impressos na repugnância pelo
acto de matar, que o artigo inteligente e hábil de Alberto Gonçalves desta vez
me ofendeu. E lamento que não se defina em termos de carne ou de peixe, de sim
ou de sopas, a respeito da eutanásia, quanto mais não fosse, para também fazer
parte da escumalha.
EUTANÁSIA O direito a viver sem
dignidade /premium
ALBERTO
GONÇALVES
OBSERVADOR, 2/6/2018
Enquanto a esquerda sonha em subjugar a natureza humana à lei, a
“direita” reza para que a lei a limite, o que não sendo o mesmo é igualzinho. Uns querem aval do Estado, os outros a
objecção do Estado
Não tenho opinião definitiva, ou sequer provisória, sobre o suicídio
assistido. Se tivesse, provavelmente não a divulgaria aqui, já que não sou
grande adepto da pornografia “confessional” em voga. Em toda a recente
histeria, o único pormenor notável foi a pretensa equivalência, mais ou menos
unânime, entre a eutanásia e a liberdade individual. A sério? Repare-se
nos partidários da despenalização: o Bloco em peso, o PS quase em peso,
a ala marxista do PSD e aquele deputado entregue à bicharada (quanto ao
PCP, que jamais se preocupou com a morte de uma só alminha exterior ao culto,
votou contra por pirraça e exibição de “força negocial”). Não parece
esquisito que a defesa da liberdade individual dependa de alucinados que ocupam
as respectivas vidas a tentar suprimi-la? Se parece esquisito, é porque é
esquisito. E certamente falso.
Na eutanásia, como nas legalizações do
casamento homossexual, da “interrupção voluntária da gravidez”, do consumo de
drogas leves, da prostituição e do que calha de ser considerado “fracturante”,
recorre-se ao isco da “liberdade” para consumar o que afinal é um processo de
nacionalização dos comportamentos. Na vastíssima maioria das situações, as pessoas conseguem
matar-se, dormir com pessoas do mesmo sexo, abortar, injectar silicone,
consumir haxixe ou terebentina e frequentar casas de meninas às segundas,
quartas e sextas sem obstáculos relevantes e, sobretudo, sem necessitar que o
Estado seja informado a respeito. E é esse pormenor que apoquenta a
esquerda.
A esquerda, por tradição e vício, nunca se ofendeu com o constrangimento
das acções de cada cidadão: o que a ofende é que o cidadão as pratique à
revelia de um poder idealmente ominipresente, para não dizer totalitário. Não importa o que os sujeitos podem ou não
podem fazer, contanto que não o façam fora de um quadro normativo, e
ideológico, tutelado por ministérios, comissões, direcções-gerais e geral
entulho administrativo criado para empregar os eleitos (digamos) e fiscalizar a
ralé. A coberto de um suposto entusiasmo face à possibilidade de “escolha”, a
esquerda procura garantir que a escolha é nula, ou no mínimo legitimada por
dois ou três decretos, com assinaturas reconhecidas, facturas, taxas e
emolumentos. Abortar numa clínica particular? Horror inominável. Abortar no SNS
do dr. Arnaut? Proeza cívica e avanço civilizacional. As “causas” da
esquerda não visam libertar o próximo, mas submetê-lo ao seu arbítrio.
E, perguntam-me (façam de conta que sim), as “causas” da direita, ou
daquilo que em Portugal passa por direita? No fundo, no fundo, no fundo, não
diferem muito. Por razões que me escapam, ou que prefiro que me escapem,
boa parte da “direita” disponível também se preocupa imenso com a conduta
íntima do semelhante. No caso, detesta que criaturas que não conhece de lado
algum durmam com criaturas de sexo idêntico, abortem, tomem drogas, amputem a
pilinha ou se desgracem de outras maneiras – e, em público ou em privado,
reclama proibições apropriadas. Enquanto a esquerda sonha em subjugar a
natureza humana à lei, a “direita” reza para que a lei a limite, o que não
sendo o mesmo é igualzinho. Uns querem o aval do Estado, os outros querem a
objecção do Estado. Do Estado, e da regulamentação quotidiana a seu cargo, é
que ninguém se livra.
Falta apurar se alguém, neste manso país de patuscadas e bola, gostaria
de se livrar. Umas
dúzias de excêntricos, talvez. Isto são demasiados anos de dependência larga e
trela curta. E por isso há uma espécie de ironia em ver tanta gente exigir
morrer com dignidade enquanto vive sem dignidade nenhuma.
Notas de rodapé
1. O eng. Guterres, personalidade que em boa hora depositámos na ONU,
anunciou um dia de jejum “em solidariedade com os muçulmanos de todo o mundo”.
Em vão. Por um lado, porque além de durar um mês, não é a dieta o exercício que
mais distingue e exalta (em ambos os sentidos) os muçulmanos actuais. Por
outro, porque ficar, por uma vez, sem comer até ao pôr-do-sol – lapso que por
esquecimento ou preguiça eu próprio cometo com frequência – é manifestamente
insuficiente para controlar o colesterol desse grande estadista, cuja saúde tanto
nos aflige. Só descansaremos quando o vazio no estômago se comparar ao que lhe
vai na cabeça. De qualquer modo, é óbvio que o homem nasceu para o cargo que
ocupa. E, com dietas assim, ocupa é o termo. 2. Enquanto se sucedem maravilhosas notícias
sobre a economia caseira, o jornalismo que temos prefere ocupar tempo e espaço
com futebol. Assim nunca iremos a lado nenhum. E se formos não o saberemos
por falta de informação. 3. Parece que a sra. Merkel passou por Portugal. Quase não se deu por
nada, e há motivo para a discrição: ao contrário de visitas – ou simples
menções do nome – anteriores, a esquerda não organizou uma manifestação, um
protesto, uma vigília, uma rábula cómica, um murmúrio sequer contra a outrora
conhecida como “a Gorda”. Restaram apenas as imagens da submissão risonha de
Costa, o Esbelto, e a enésima confirmação de uma gente tão peculiar que
qualquer insulto pecaria por defeito.
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