sexta-feira, 22 de junho de 2018

Chegada a Calecut


Após uma viagem tempestuosa entre Melinde e Calecut, tempestade naturalmente urdida pelo invejoso Baco, conquanto finalmente amainada por Vénus e as suas ninfas sedutoras, que enlaçaram a fúria dos ventos, soltos por Éolo por cunha de Neptuno, amigalhaço de Baco, Calecut abriu-se na manhã clara e deleitosa - ao contrário da brumosa Avalon, refúgio final do rei Artur, mas não efectivamente do Gama ainda, pois leio na Internet que este morreria na Índia, sim, mas em Cochim, vitimado pela malária, era então, por breve espaço, o 2º vice-rei da Índia. Aliás, Vasco da Gama foi cumulado de benesses, após o seu estrondoso feito, como transcrevo da minha fonte principal de conhecimento: 1.º Almirante-Mor dos Mares da Índia; 1.º Conde da Vidigueira; 2.º Governador da Índia; 6.º Governador da Índia; 1.º Senhor da Vidigueira; 1.º Senhor da Vila de Frades
E foi por tais motivos que Camões se lembrou, também em homenagem de admiração, de concluir o seu Canto VI, após os agradecimentos a Deus, do Gama ajoelhado e de mãos religiosamente erguidas - aliás desconhecedor do protagonismo de Vénus e companheiras no feliz desenlace (e por tal motivo não podendo ser acusado de ingratidão ao não as incluir no agradecimento) – se lembrou, digo, de concluir este Canto VI com um comentário sobre o mérito do esforço próprio para o horizonte que se pretende atingir, que António Gedeão define como “Sonho” nos nossos tempos, também em sentido crítico, (mas do regime) na sua “Pedra Filosofal”.

Tal conclusão, após um narrado de maravilhosos artifícios e primores, que abarca os vários planos da Narração em alternância - o da Viagem, com as despedidas e festejos em Melinde, o dos Deuses, com o deslumbrante  Consílio dos Deuses Marinhos concitado por Baco, o da História, novamente, com a recitação, por Fernão Veloso, do episódio romanesco dos Doze de Inglaterra e o seu Magriço, para entretenimento dos nautas, novamente o plano da Viagem com a poderosa tempestade real, o Plano dos Deuses a seguir, com as manobras de Vénus desfazedoras das maroscas de Baco, e finalmente, após a chegada à sua “Avalon” pretendida, o ponto de vista ético e crítico do poeta, Excurso Pessoal de tanta agudeza e nobreza, que transcrevo, como ponto final coerente nessa narrativa poderosa em vários ângulos. Ponto de vista ético e crítico de um Homem tão experimentado e sabedor, que bem precisavam os alunos do 9º ano de ler, e muitos dos portugueses de rever, como regras de orientação moral dos nossos tempos, tal como teriam soado aos ouvidos de D. Sebastião e mais cortesãos, aquando da leitura, por esse Homem extraordinário, do seu poema extraordinário de engenho e saber, mas também acusatório, por ser ele próprio menosprezado na pátria ingrata, hoje ainda, e segundo Almada Negreiros, “A pátria onde Camões morreu de fome / e onde todos enchem a barriga de Camões”.

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Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
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Não cos manjares novos e esquisitos,
Não cos passeios moles e ociosos,
Não cos vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não cos nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude
Pera alguma obra heróica de virtude;
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Mas com buscar, co seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado com um árduo sofrimento;
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E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o pelouro ardente que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.
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Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baixo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.

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