Pertence à colecção
“Biblioteca de Verão”, livro, pelo seu volume ínfimo, bom para praia ou cabeceira,
nº 8 entre os 27 da escolha do DN, entre os quais se contam alguns autores portugueses
– Herculano, Fialho, Eça, Eduardo Pitta, todos eles de leitura expressiva, a
par de outros nomes consagrados.
Este – de Patrick Süskind
era-me totalmente estranho, e a surpresa foi grande, pela originalidade,
riqueza temática e psicológica, que se vai impondo gradualmente através do
discurso da personagem, despretensioso e entusiasta, mas uma enriquecedora
lição de música, e de conceitos de vida, na vulgaridade da semelhança entre os
homens de todas as esferas, afinal, de sonhos que se concretizam ou não, de
penúrias, de amores e paixões e raivas e entusiasmos e decepções, e angústia, na banalidade das vidas.
Trata-se de uma peça
dramática, com uma só personagem – um contrabaixista de uma orquestra - num só
espaço – um quarto – num monólogo em discurso directo, dirigido a possíveis
interlocutores subentendidos – o público do espaço teatral, no caso da sua
representação, os múltiplos leitores que se limitam a lê-la. As didascálias
constam de breves anotações cenaristas ou sobre a movimentação da personagem,
que vai abrindo garrafas e bebendo cervejas e escutando do gramofone música
clássica, ou tocando-a no seu contrabaixo, ao sabor das suas explicações.
Uma figura um tanto azougada e
bastante sincera, que se lhe nota na expressão corrente da linguagem, despretensiosa
e directa, de quem não tem papas na língua a respeito da sociedade em que se
integra, nem puritanismos sobre as suas intimidades de ocasião, no espaço do
quarto, que denuncia uma vida de solteirão, que a música ocupa com entusiasmo.
É
vasto o leque dos assuntos do seu monólogo, em que o contrabaixo ocupa a fase
inicial e recorrente sempre, denunciando uma perfeita junção de afectos, de
paixão e desprezo, o pesado instrumento ganhando caricatural configuração
humana - objecto de estorvo a merecer temporário azedume, por avassalador de espaço
e assistente mudo de amores clandestinos, mas instrumento de arte bem-amado,
que lhe merece constante carinho e protecção, chegando a cobri-lo com o seu
casaco para aquele não empenar com a chuva, e colhendo, em resultado, forte
constipação. Além das calosidades que, por ser pesado, provocou nas mãos
deformadas do contrabaixista, pretexto para uma invasão entrecortada no campo
da música clássica, quer a respeito dos compositores, quer a respeito do
posicionamento dos músicos na orquestra - o do contrabaixista renegado sempre para os lugares de sombra,
aparentemente sem classe e, no entanto, imprescindível, podendo até substituir
o maestro na orientação dos músicos. E o monólogo directo ganha divertida
frescura, na componente irónica da visão humana hierárquica sempre, até mesmo ao nível do
posicionamento orquestral.
Os
amores e ciúmes por uma cantora de ópera, mulher e voz de sonho, contrastando
com o tosco som roufenho do seu contrabaixo, e o sonho caricato de lhe oferecer
o mesmo prato de peixe caro num restaurante caro, como fez um director musical
que a lá levou. E as suas reservas por uma infância de desamor e de ódio ao pai,
e os sonhos por uma estabilidade no trabalho, e os conceitos sobre os
compositores desmistificados, mas vivamente admirados e bem seus conhecidos por
os tocar e estudar.
Uma
obra em que se mistura, afinal, o cómico de farsa à seriedade analítica, desprovida, por vezes, do preconceito admirativo. Uma personagem que se poderá tomar como um genérico
social, recolhido entre aqueles que se prezam e têm consciência do seu valor,
geralmente menosprezado por uma sociedade com outros parâmetros de avaliação,
afinal uma personagem representante de todo o ser humano, com as suas
experiências, complexos, expectativas, e esforços de mediana ou superior ambição.
Uma linguagem despretensiosa, ao sabor dos copos que vai bebendo, rica de
referências culturais mas logo interrompidas por quem atribui aos outros iguais
saberes. Uma obra de leitura fácil, de um discurso que segue ao sabor das
evocações ou entusiasmos do protagonista, sem o pedantismo, tão comum, de
rebuscada e tortuosa complexidade na mistura de planos. E no entanto rica e esclarecedora sobre a
psicologia humana, nos seus sonhos e rancores e afectos e angústias e
complexos, que quase poderíamos simbolizar na expressão de “O Grito” de
Edvard Munch.
Um
breve excerto exemplificativo:
«Espero que não estejam a pensar que eu sou invejoso. A inveja é um
sentimento que me é estranho, pois eu sei o que valho. Eu, de qualquer forma,
sou uma pessoa justa e acho que há qualquer coisa que não vai bem no mundo da
música. O solista é abafado pelo aplauso do público, facto que este assume hoje
em dia como uma autopunição, caso não lhe seja permitido bater palmas à
vontade. O maestro recebe ovações, cumprimenta o primeiro violino pelo menos
duas vezes; às vezes toda a orquestra é convidada a pôr-se de pé…enquanto que,
como contrabaixista, uma pessoa nem tem ocasião de estar de pé a sério. Como
contrabaixistas, perdoem-me a expressão, somos, deste ponto de vista, uma
autêntica merda!»
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